Powered By Blogger

terça-feira, 26 de julho de 2011

ANULAÇÃO. VENDA. ASCENDENTE. DESCENDENTE. INTERPOSTA PESSOA.

A venda de bem de ascendente a descendente realizada por intermédio de interposta pessoa, sem o consentimento dos demais descendentes e ainda na vigência do CC/1916 é caso de negócio jurídico simulado que pode ser anulado no prazo quadrienal do art. 178, § 9º, V, b, do referido código, mostrando-se inaplicável a Súm. n. 494-STF. Contudo, anote-se que esse prazo deve ser contado da data da abertura da sucessão do alienante e não da data do ato ou contrato, isso com o intuito de evitar que os descendentes litiguem com o ascendente ainda em vida, o que certamente causa desajuste nas relações familiares. Seria, também, demasiado exigir que os descendentes fiscalizassem, além dos negócios realizados pelos ascendentes, as transações feitas por terceiros (a interposta pessoa). Outrossim, não convém reconhecer a decadência para a anulação parcial do negócio ao contar o prazo a partir do óbito do ascendente virago, relativamente à sua meação, pois isso levaria também ao litígio entre os descendentes e o ascendente supérstite, o que justifica a contagem do prazo a partir da abertura da sucessão dele, o último ascendente. Ressalte-se que esse entendimento não se aplica às alienações assim realizadas na vigência do CC/2002, pois o novo código trouxe a nulidade do negócio jurídico simulado, não prevendo prazo para sua declaração (vide arts. 167 e 169 do mesmo codex). Precedentes citados do STF: RE 59.417-BA, DJ 15/4/1970; do STJ: REsp 151.935-RS, DJ 16/11/1998, e REsp 226.780-MG, DJ 2/9/2002. REsp 999.921-PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 14/6/2011.

COMPRA E VENDA. IMÓVEL. ASCENDENTE. DESCENDENTE.

Trata-se de ação anulatória de venda de imóvel urbano em que a alienação foi realizada entre o pai dos autores (irmãos por parte de pai) e o neto (filho de outro irmão por parte de pai já falecido). Ressalta o Min. Relator que o entendimento doutrinário e jurisprudencial majoritário considera, desde o CC/1916 (art. 1.132), que a alienação feita por ascendente a descendente é ato jurídico anulável, sendo que essa orientação se consolidou de modo expresso no novo CC/2002 (art. 496). Explica que, no caso dos autos, regido pelo CC/1916, não há dúvida a respeito dos três requisitos objetivos exigidos, ou seja, o fato da venda, a relação de ascendência e descendência entre vendedor e comprador e a falta de consentimento dos outros descendentes, o que já demonstra presente a nulidade. Os demais requisitos, a configuração de simulação ou, alternativamente, a demonstração de prejuízo, que também estão presentes no caso, são resultantes da evolução da doutrina e jurisprudência, mas ainda sob a regência do CC/1916. Assim, para o Min. Relator, o que era de início apenas anulável consolidou-se nos autos como nulo, devendo subsistir o julgamento do TJ de que a transmissão de bens do ascendente ao descendente, se onerosa, deverá obedecer ao mandamento contido no art. 1.132 do CC/1916 e, em seguida, obrigará o donatário a colacionar, no inventário, aquilo que recebeu (art. 1.785 do CC/1916). Diante do exposto, a Turma negou provimento ao recurso do neto. Precedentes citados: REsp 476.557-PR, DJ 22/3/2004; EREsp 661.858-PR, DJe 19/12/2008, e REsp 752.149-AL, DJe 2/12/2010. REsp 953.461-SC, Rel. Min. Sidnei Beneti, julgado em 14/6/2011.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Acordo de doação de bem não pode ser anulado por arrependimento

Doação decorrente da livre manifestação de vontade, realizada por instrumento particular homologado judicialmente é válida, eficaz e plenamente executável, caso o doador se negue a efetuar a escritura pública
Fonte | TJSP - Quinta Feira, 21 de Julho de 2011

A 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo negou recurso proposto por M.G.O. que pretendia anular o acordo de doação de parte de um imóvel aos dois filhos menores de idade, firmado em processo de separação consensual.
M.G.O. homologou o acordo em ação de dissolução de união estável com P.S.M.S. Logo depois de homologado em juízo, arrependeu-se da 'promessa', motivo pelo qual, não efetuou a outorga da escritura pública. Ajuizou ação de anulação de ato jurídico e requereu a nulidade da doação, alegando que a diminuição patrimonial acarretaria efeitos negativos em suas finanças.
A sentença da 1ª Vara Cível de Barueri julgou extinto o processo sem resolução do mérito. Em sua decisão, a juíza Graciella Salzman entendeu que não se trata de promessa de doação, mas sim de acordo de doação homologado em juízo. “Tanto a manifestação de vontade quanto o próprio ato de doar foram homologados em Juízo, não mais sendo permitido ao doador reaver a doação, unicamente por estar arrependido. O ideal seria que o doador já houvesse realizado a doação através da escritura pública. Entretanto, a doação na forma realizada, qual seja, o instrumento particular homologado judicialmente, é sim, válida e plenamente executável, caso o doador se negue a efetuar o respectivo registro no cartório de imóveis. Se a doação impossibilitou a mantença do autor, nada restou comprovado neste sentido. De qualquer forma, a mera diminuição patrimonial não justificaria a nulidade do ato. Não há nenhum indicativo nos autos de ter havido vício do ato jurídico. Diante do exposto, indefiro a inicial.”
Insatisfeito, M.G.O. apelou da decisão. Requereu a anulação da doação sob o argumento de que, depois do arrependimento, não outorgou a escritura pública, requisito formal necessário à validade da transferência de direitos reais sobre o imóvel.
O relator do processo, Galdino Toledo Júnior negou provimento ao recurso baseado no argumento de que doação decorrente da livre manifestação de vontade, realizada por instrumento particular homologado judicialmente é válida, eficaz e plenamente executável, caso o doador se negue a efetuar a escritura pública. Ainda de acordo com o magistrado “o mero arrependimento decorrente de dificuldades econômicas momentâneas não constitui motivo válido para anular o ato jurídico perfeito e acabado”, concluiu.
Também participaram do julgamento os desembargadores Viviani Nicolau e Antonio Vilenilson, que acompanharam o voto do relator.
Apelação nº 0034746-69.2009.8.26.0068

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Regras para uma aula de contratos em Harvard

Scott Turow é um advogado militante, famoso pelos vários livros que escreveu, todos envolvendo questões jurídicas – os denominados “suspenses de Tribunal”. 
No seu livro “o primeiro ano” ele narra como foi o início do seu curso de Direito em Harvard (uma das mais conceituadas escolas do EUA).  Observe que no sistema da common law o ensino jurídico se faz através do case system - os alunos são apresentados a uma decisão judicial para que ela seja analisada e extraídas as questões jurídicas relevantes. A doutrina, tal qual a estudamos, é secundária. Em especial, vejamos as orientações dadas por seu professor de contratos, disciplina do primeiro ano em Harvard:


“creio que é desnecessário dizer que espero que comprem o livro novo. Estudaremos o livro causa a causa. De vez em quando poderemos saltar uma ou duas. Neste caso, eu os informarei com antecedência ou encontrarão um comunicado no quadro de avisos. Devem estar sempre três causas na frente, todos os dias.
...
Vamos estudar o direito das obrigações, os contratos, transações comerciais, o direito das promessas. É o curso mais difícil que farão no ano.  Contratos é tradicionalmente o campo do direito de maior complexidade intelectual. A maioria dos grandes comentaristas jurídicos do século passado era de estudiosos de contratos.
....
Espero que estejam muito bem preparados, todos os dias. Quero ser absolutamente claro nesse ponto. Nunca ouvi a palavra “passo”. Não sei o que significa “despreparado”. De vez em quando, é claro, há problemas pessoais - todos os temos, às vezes -, que tornam impossível uma preparação plena. Se for esse o caso, quero que um comunicado por escrito seja entregue à minha secretária pelo menos duas horas antes da aula.”

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Revogada doação de imóvel por ingratidão dos beneficiados

Fonte | TJRS - Sexta Feira, 15 de Julho de 2011 - Apelação Cível nº 70042358457

Por conta da ingratidão e da inexecução do encargo, a Justiça Estadual revogou a doação de imóvel, com reserva de usufruto, feita por uma idosa em favor de um casal do interior do Estado em troca de companhia e cuidados. A decisão unânime dos integrantes da 17ª Câmara Cível do TJRS confirmou a sentença proferida em 1º Grau na Comarca de Marcelino Ramos. Com a decisão, os autores da ação, uma idosa e seus filhos, conseguiram anular a escritura pública de doação.
Caso
Os autores ajuizaram ação anulatória contra um casal que veio a residir, na condição de usufrutuário, em área de propriedade da matriarca da família. Segundo os autores, a genitora e seu esposo possuíam três imóveis rurais, sendo que sobre um deles foi construída uma casa. Após o falecimento do cônjuge, coube à esposa, em razão de sua meação, além da moradia, partes de dois lotes.
Por conta do falecimento do marido, a esposa e os filhos permitiram que os requeridos passassem a residir na propriedade. Com a anuência dos filhos, a idosa doou aos requeridos, com reserva de usufruto, os bens que lhe pertenciam. Nesta linha, destacaram que por determinado período os demandados dispensaram certa dedicação à doadora.
No entanto, com o passar do tempo, o comportamento deles mudou radicalmente, tendo a doadora de sair de casa para morar com os filhos, razão pela qual os autores promoveram ação de notificação e de reintegração de posse.
Segundo os autores, embora a escritura pública seja omissa nesse ponto, a doação com reserva de usufruto vitalício deu-se sob a condição e encargo de que os donatários deveriam cuidar da doadora. Suscitaram a ocorrência de ingratidão do donatário e inexecução do encargo, nos termos do artigo 555 do Código Civil. Assim, invocaram a nulidade da doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência, forte no artigo 548 do Código Civil. Pleitearam a procedência da ação, pretendendo seja revogada a doação.
Citados, os beneficiados com a doação (donatários) contestaram alegando, em suma, que respeitam a posse da autora, porém discordaram das acusações de maus tratos. Sustentaram que o pedido de revogação foi motivado por ciúmes e inveja dos filhos da doadora. Afirmaram que sempre buscaram a reconciliação, sendo que todas as tratativas restavam frustradas em decorrência da má-fé dos autores. Sustentaram que a doação com reserva de usufruto não possuía encargo algum, assim como nunca houve nenhum ato de ingratidão. Neste sentido, destacaram, ainda, a inocorrência de doação inoficiosa, prevista nos artigos 548 e 549 do Código Civil, uma vez que a doação ocorreu com a anuência de todos os herdeiros.
Sentença
Em 1ª Instância, o juiz de Direito Eduardo Marroni Gabriel julgou procedente a ação anulatória a fim de revogar a doação. O magistrado destacou que a doação somente pode ser revogada por ingratidão do donatário ou por inexecução do encargo, conforme disciplinado pelo artigo 555 do diploma civil.
Neste contexto, a própria requerida reconheceu, em seu depoimento pessoal, a existência do encargo, no sentido de que deveria cuidar da doadora, o que, por si só, tornaria desnecessária a exigência de outras provas acerca da questão, conforme regra contida no artigo 334, inciso II, do Código de Processo Civil.
Diante desse quadro, é possível concluir que houve a inexecução do encargo, consistente na incumbência dos requeridos em cuidarem da demandante, diz a sentença. Os depoimentos trazidos aos autos permitem concluir que a doadora era maltratada pelos réus, fato confirmado pelas comunicações de ocorrência acostadas ao feito e pela necessidade de ajuizamento de ação de reintegração de posse para retomada do imóvel pela idosa.
Inconformados, os réus recorreram ao Tribunal sustentando, em preliminar, a nulidade do depoimento prestado em audiência pela ré sob o argumento de que fora tomado de forma diversa da prescrita em lei. No mérito, sustentaram estar equivocado o entendimento do Juízo de origem uma vez que na escritura pública de doação nenhum encargo foi estipulado, o que torna impossível sua revogação por inexecução do ônus.
Apelação
No entendimento da relatora, Desembargadora Elaine Harzheim Macedo, o recurso não merece ser provido. Segundo ela, a preliminar de nulidade do depoimento da ré deve ser rejeitada diante do silêncio da parte ou seu procurador quando da realização do ato. Como se tratava de audiência, caberia à parte prejudicada, a teor do parágrafo 3º do art. 523 do CPC, manifestar o seu inconformismo imediatamente, na forma oral, através do agravo retido, diz o voto. Nada disso foi feito, estando a questão abrigada pela preclusão.
Quanto ao mérito, a relatora ressaltou tratar-se, infelizmente, de mais um caso em que alguém vulnerável do ponto de vista emocional e até físico, dependente de afeto e já com idade avançada, resolve doar seu patrimônio, ou parte dele, a pessoas em quem confia, sob o compromisso de prestar-lhe atenção e cuidado. É importante destacar ser possível o reconhecimento do encargo estipulado verbalmente entre as partes e o seu descumprimento e, em decorrência, a anulação do ato jurídico. Para tanto, indispensável apenas prova inequívoca da estipulação do encargo e de seu descumprimento, diz o voto.
No caso em tela, não só a prova documental, mas principalmente a oral produzida nos autos, demonstra, de forma cristalina, que a autora efetivou doação com encargo verbal, bem como o desatendimento do ônus por parte dos destinatários, afirmou a relatora. O que se verifica é o descaso dos réus para com a doadora, conduta que caracteriza descumprimento do encargo assumido. Assim, demonstrado o descaso com que foi atendida nas suas necessidades (encargo de cuidar, acompanhar e dar atenção), outra não pode ser a solução que não reconhecer a procedência do pleito de revogação de doação e de anulação de escritura pública de doação.   


quinta-feira, 14 de julho de 2011

Clóvis Beviláqua: o grande civilista da segunda metade do século XIX

Começamos essa série de biografias de notáveis juristas brasileiros com o mais importante da primeira metade do século XIX, Teixeira de Freitas. Na segunda metade desse mesmo século, o jurista de maior destaque no Brasil, sem dúvidas, é Clóvis Beviláqua. Reconhecido por ser o autor do Código Civil de 1916, Beviláqua dominava como poucos a arte das ciências jurídicas.
Nascido em Viçosa, no Ceará, em 4 de outubro de 1859, era filho de José Beviláqua, deputado provincial, e de Martiniana Aires Beviláqua. Inicia seus estudos na própria cidade natal, ingressando, em 1872, no então chamado Ateneu Cearense. Três anos depois, transfere-se para o Colégio Oficial de Fortaleza. No ano seguinte, com 17 anos, embarca para o Rio de Janeiro, onde prosseguiu seus estudos no Externato Gaspar e no antigo Mosteiro de São Bento. Em 1878, vai para o Recife, a fim de iniciar o estudo das ciências jurídicas na segunda mais antiga escola de direito do país. Durante o curso, funda e trabalha em diversos periódicos, atuando ativamente como jornalista e defendendo idéias republicanas. Em 1882, conclui o bacharelado em Direito, tendo sido escolhido orador da turma.
Em 1883, inicia a carreira no judiciário, sendo nomeado promotor público de Alcântara, no Maranhão. Após a proclamação da República, é eleito deputado para a Assembléia Constituinte pelo Ceará, sendo este o seu único cargo público eletivo, em toda sua longa carreira. Já casado com Amélia de Freitas, presta concurso para professor de Filosofia da Faculdade de Direito do Recife, depois de ter trabalhado como bibliotecário da mesma faculdade. Em 1891 torna-se titular da cátedra de Legislação Comparada, dando início a sua grande produção bibliográfica. Torna-se, ainda, membro-fundador da Academia Brasileira de Letras, ocupando a sua cadeira de número 14, desde 1897.
Clóvis Beviláqua já era conhecido nacionalmente em virtude da excelência e qualidade de sua obra. Suas publicações em direito civil e direito comparado [com destaque para: Teoria geral do direito civil (1890), Lições de legislação comparada sobre o direito privado (1893), Direito das Obrigações (1896) e Direito de família (1896)] mereciam respeito e admiração da comunidade jurídica da época. Tal consistência científica, além do grande conhecimento em direito estrangeiro, foram fundamentais para o evento que o tornou imortalizado para a história do direito brasileiro: em 1899, é convidado pelo então ministro da Justiça, e futuro Presidente da República, Epitácio Pessoa a elaborar o anteprojeto do Código Civil Brasileiro.
Após transferir-se para o Rio de Janeiro, em março de 1900, Beviláqua conclui em apenas seis meses os seus trabalhos, entregando oficialmente o seu Projeto de Código Civil para o Congresso Nacional em outubro de 1900. Não é de desconhecimento geral que o legislativo brasileiro demorou mais de quinze anos para aprová-lo, após inúmeras discussões e disputas, principalmente no tocante à redação do Código.
Em 1906, é nomeado pelo Barão do Rio Branco consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores, cargo que ocupou até 1934, quando foi aposentado compulsoriamente pela Constituição de 1934. Em 1920 passa a fazer parte do Comitê dos Juristas no Conselho da Sociedade das Nações. Concomitantemente, suas publicações jurídicas continuam bastante volumosas, principalmente no que resulta a sua principal obra, os Comentários ao Código Civil, em seis volumes.
Fato pitoresco ilustra seu afastamento da Academia Brasileira de Letras: em 1915, na sucessão de Sílvio Romero na cadeira 17 da ABL, elegeu-se Osório Duque-Estrada. A Academia designa Clóvis Beviláqua para recebê-lo, ignorando que o novo acadêmico, pouco antes da sua eleição, havia publicado uma nota violenta diminuindo os méritos literários de Amélia de Freitas Beviláqua, esposa do nosso maior legislador. Clóvis Beviláqua recusa-se a recebê-lo, não mais freqüentando Academia desde então, apesar de continuar sendo seu membro. Tal versão é mais plausível do que a mais propagada, de que o jurista deixou de freqüentar a Academia quando esta recusou o pedido de inscrição que fez sua esposa para concorrer à vaga de Alfredo Pujol, alegando que mulheres não podiam ser acadêmicas. Ou seja, seu afastamento já teria se dado antes desse lamentável episódio com a sua mulher.
Em 26 de julho de 1944, falece Clóvis Beviláqua, após mais de 60 anos dedicados ao estudo do direito.
Tratar da obra de Beviláqua é, mais especificamente, examinar o seu principal trabalho, ou seja, o Código Civil brasileiro de 1916, talvez a mais monumental tarefa que pode ser dada a um jurista. Escolhido em virtude de sua obra já publicada, Beviláqua era realmente dos mais capazes para esse trabalho hercúleo.
Sua formação na Escola do Recife reflete claramente no conteúdo do seu Código. Seus conhecimentos de direito estrangeiro permitiram que a obra estivesse em consonância com os recentes códigos feitos na Europa. Vale lembrar, ainda, que era titular de uma cátedra de Legislação Comparada em um tempo em que a ciência do direito comparado apenas engatinhava.
Ademais, sua admiração e seu conhecimento dos autores alemães, também típicos da Faculdade do Recife, levaram a tomar como modelo maior o BGB, o Código Civil alemão, então, recentemente promulgado. É por isso que nossa compra e venda, por exemplo, não gera automaticamente a transferência do direito de propriedade, mas apenas o dever de fazê-la, e também temos uma "Parte Geral" no Código, com regras e princípios aplicáveis para todo o direito civil. Tudo isso é criação da doutrina alemã do século XIX, mentora do Código Civil alemão.
Sem diminuir a importância da valorosa atuação de Ruy Barbosa, o então Senador que foi o grande responsável pelo extenso trabalho realizado no Congresso Nacional em cima do Projeto Beviláqua, cabe ressaltar que tais alterações apenas atingiram o redação do Código, pouco influenciando em seu conteúdo. São de Beviláqua os créditos de um Código que norteou o direito brasileiro por quase um século e ainda o faz, uma vez que o Código Civil de 2002 nada mais é do que uma atualização dele.

Alessandro Hirata, Jornal Carta Forense, segunda-feira, 4 de julho de 2011

terça-feira, 5 de julho de 2011

Inquilino preterido pode pedir indenização

Primeiro na fila de preferência para a compra do imóvel, o inquilino preterido pode pedir indenização por violação de seu direito mesmo que o contrato de locação não tenha sido averbado no cartório de registro imobiliário. Com a tese, uma empresa de fundição do Rio Grande do Sul teve um recurso julgado de forma favorável pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça.
Os donos da empresa contam terem sido descartados no processo de venda do imóvel onde mantinham sua unidade de produção de sucata. Como esse terreno ficava ao lado de outro imóvel, de propriedade da fundição, a empresa tinha interesse na compra. Caso os terrenos fossem unificados, o novo espaço teria 50 mil metros quadrados. O proprietário do imóvel ignorou o fato e a empresa transferiu a unidade de produção para outro local.
Segundo o pedido de indenização — rejeitado pela primeira instância e pelo Tribunal de Justiça gaúcho — a empresa sofreu prejuízos representados pelas benfeitorias que havia feito no imóvel, pelos gastos com a desocupação e a reinstalação da unidade em outro local, além dos aluguéis despendidos desde que lhe foi negada a possibilidade de exercer a preferência de compra.
De acordo com a segunda instância, a fundição não tinha direito à indenização por eventuais prejuízos decorrentes da inobservância do direito de preferência porque o contrato de locação não estava averbado perante o registro de imóveis. “O registro do contrato junto à matrícula do imóvel locado é pressuposto indispensável ao exercício da preferência”, afirmou a corte.
O entendimento foi modificado no STJ. A ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso, lembrou que a averbação do contrato de locação não é imprescindível para a reparação por perdas e danos. Ao tratar sobre o assunto, o artigo 33 da Lei do Inquilinato estabelece que o locatário preterido no seu direito de preferência poderá reclamar reparação por perdas e danos ou entrar com ação pedindo a adjudicação compulsória do imóvel — único caso que a averbação adquire importância.
De acordo com a ministra, “quando a pretensão é somente de índole reparatória, a averbação do contrato não é requisito para que o inquilino obtenha do locador o ressarcimento pelos prejuízos sofridos, pois, nessa hipótese, a violação do direito de preferência terá efeitos meramente obrigacionais”. Com informações da Assessoria de Comunicação do STJ.
REsp 1216009

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Doação de imóvel penhorado a filhos menores é fraude à execução quando gera insolvência do devedor

A doação de imóvel penhorado a filhos menores de idade caracteriza fraude à execução quando este ato torna o proprietário insolvente, ou seja, incapaz de suportar a execução de uma dívida. Esse é o entendimento da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ). 

Diante dessa posição, os ministros decidiram afastar a aplicação da Súmula 375/STJ, que condiciona o reconhecimento da fraude à execução ao registro da penhora do bem alienado ou à prova de má-fé de quem adquire o bem penhorado.

Para o relator do recurso especial que trouxe a discussão do tema, ministro Luis Felipe Salomão, a doação feita aos filhos ainda menores do executado, na pendência de processo de execução e com penhora já realizada, configura má-fé do doador, que se desfez do bem de graça, em detrimento de credores, tornando-se insolvente. Segundo Salomão, esse comportamento configura o ardil previsto no artigo 593, inciso II, do Código de Processo Civil.

“Não reconhecer que a execução foi fraudada em situações como a dos autos, apenas porque não houve registro da penhora e não se cogitou de má-fé dos adquirentes do imóvel, é abrir uma porta certa e irrefreável para que haja doações a filhos, sobretudo menores, reduzindo o devedor à insolvência e impossibilitando a satisfação do crédito do exequente, que também, ressalte-se, age de boa-fé”, alertou Salomão.

Superada a aplicação da Súmula 375/STJ, os autores do recurso, filhos dos executados, também pediram o reconhecimento da impenhorabilidade do imóvel por constituir bem de família e porque os pais teriam outros bens indicados à penhora.

O relator destacou que o caso é de execução contra fiadores em contrato de locação, circunstância que é uma exceção à proteção de penhora prevista na Lei n. 8.009/1990, conforme consolidado na jurisprudência do STJ. Quanto à existência de outros bens penhoráveis, Salomão observou que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais reconheceu que os doadores se tornaram insolventes com a doação do imóvel, conclusão que não pode ser revista sem reexame de provas, que é vedado ao STJ.

Seguindo as considerações do relator, todos os ministros da Quarta Turma negaram provimento ao recurso. 

Direito Econômico nos EUA dita regras de propriedade

Direito Econômico nos EUA dita regras de propriedade
POR ARNALDO SAMPAIO DE MORAES GODOY
A propriedade no direito norte-americano quantifica fundamentos legais do capitalismo, legitimando relações de uso e valor[1]. Identificada por conjunto de privilégios e responsabilidades[2], a propriedade configura direito exclusivo de controle de bem econômico[3]. Abstratamente outorgável a todo ser humano, cidadão ou não[4], a propriedade secciona concretamente o universo na axiologia do ter. Cria a categoria dohave e a sub-categoria do have-not, fragmentando o mundo entre proprietários e não proprietários.
Diz-se propriedade real, real property ou realty, quando é topicamente imóvel, a exemplo da terra. Chama-se propriedade pessoal, personal property, quando se caracteriza pela mobilidade física, a exemplo de livros, utensílios, ações; por exclusão, a propriedade pessoal é toda propriedade que não é real. Essa divisão, de aparente raiz romanística, finca-se, no entanto, na common law[5], e refere-se à dicotomia entre propriedade feudal e não-feudal[6], aquela primeira de caráter fundiário e de titularidade do valido do rei.
É tangível (tangible) quando plasma valores intrínsecos à existência da coisa, a exemplo de um automóvel. É intangível (intangible) quando não assume forma material, a propósito de uma cártula que traduza cota acionária[7], classificação que lembra divisibilidade entre coisas corpóreas e incorpóreas na tradição da civil law[8]. A propriedade pessoal também emerge na propriedade intelectual, dividida em direito de reprodução de obra (copyright), em marcas (trademark) e em patentes (patent).
O modelo norte-americano suscita a aquisição da propriedade pelo trabalho[9], pela sorte[10], pela compra[11] e pela posse[12], modalidades que são incentivadas pelo espírito empreendedor calvinista, como captado por Max Weber[13]. O trabalho seria apanágio da dignificação do homem, contemplado pela graça divina, fonte de inspiração e incentivo à realização material da terra, sinal de eleição para salvação na vida após a morte. A aquisição original (original acquisition) faz-se pela ocupação (occupancy), pelo encontro da coisa (finding), pela usucapião (adverse possession), por outorga pública (act of public authority)[14]. A aquisição derivada (derivative acquisition) faz-se pela venda (contract of sale), pela doação (donation), pela venda judicial (adjutication)[15]. São modos de transferência de propriedade e mais adiante alguns deles serão especificados.

O detentor de direito de propriedade nos Estados Unidos implementa direitos de posse, de uso, de exclusão e de alienação[16]. O detentor da propriedade real diz-se titular de umestate, ou de um interest. Essa qualidade divide-se em quatro aspectos, relativos ao nível de controle, à duração, ao espaço físico e divisibilidade do título[17].
Quanto ao nível de controle, diz-se que o proprietário absoluto, aquele que exerce o maior grau de poder sobre a coisa, detém um fee simple absolute[18]. Ele pode dispor da coisa por declaração feita em venda ou doação (deed)[19] e por disposição testamentária (will)[20]. Também detentor de elementos possessórios, pode dispô-los, por meio de contrato de aluguel (lease). Trata-se da outorga de direito de posse a outrém, que pode assenhorar-se da coisa por determinado período de tempo[21]. O locatário é chamado de lessee ou de tenant, o locador de landlord. Não há vedação estatutória à sublocação (sublease ou sublet), porém contratos mais recentes têm limitado substantivamente essa possibilidade[22].
O aluguel (leasing) pode ter finalidades residenciais ou comerciais. Não há também obrigação normativa de contrato formal[23], nem de uso de palavras particulares ou sacramentais. A intenção das partes[24], demonstradas pela autorização para uso da propriedade e regular pagamento de valores pactuados qualificam a situação. O preço combinado (rent) é pago nos valores e local indicados pelos contratantes[25], de acordo com limites e parâmetros de regulamentação estadual, dada a natureza local da norma de regência. Os negócios de locação (the landlord-tenant relationship) sofrem impacto de forças que variam do processo de urbanização para a emergência do interesse público vinculado à medidas erradicatórias de pobreza[26]. Surge equação determinadora de preços e fixadora de níveis de investimento, variando o nível de controle que o proprietário exerce sobre a coisa.
Na feição clássica da common Law, o direito de propriedade é topograficamente absoluto, espargindo-se do centro da terra para a altura dos céus, to the center of the earth up to the heavens[27], realidade mitigada com a invenção e popularização dos aviões[28]. O exercício do direito de propriedade não encontra limitações cliométricas, no tempo, projetando-se metafisicamente além da morte do titular original, por conta de heranças e legados[29].
A propriedade é exercida de forma singular (single ownership) ou conjunta (joint tenancy). Essa última modalidade subdivide-se em total (tenancy by the entirety) ou comum (tenancy in common). No primeiro caso temos marido e mulher, quando o cônjuge sobrevivente está intitulado a apoderar-se do quinhão total. No segundo exemplo exclui-se o direito do cônjuge superveniente herdar parcela absoluta, de exercer o direito de sobrevivência (right of survivorship)[30].
O proprietário tem direito potestativo de usufruir o sossego que a coisa suscita, o quiet enjoyment of the premises[31], com absolutos poderes para afastar invasores e perturbadores (trespassers)[32]. A propriedade é historicamente usufruída sob e sobre a superfície (below and above the surface of the land)[33], de modo que o titular tem direitos de explorar minerais, petróleo e gás natural.
O uso da água suscita regra geral. O proprietário, em princípio, tem direitos de usar as águas que se encontram em área sob seu domínio[34]. O detentor de direitos ripuários (riparian rights) vale-se de águas de rios. Usa-as para irrigação, energia, recreação. Disputas surgem quando proprietários discutem o aproveitamento de água de uso comum, porque captam a mesma em pontos diferentes do mesmo rio[35]. O direito norte-americano formulou solução que varia de acordo com a localização da área.
Nas regiões localizadas a leste do rio Mississipi, onde há mais umidade, caudalosidade e número de rios, o uso é comum[36], não há prioridade, e proprietários devem comportar-se com critérios de razoabilidade[37]. Nas áreas localizadas a oeste do rio Mississipi, que são mais secas, com poucos rios e pouca água, utiliza-se o critério de primeira apropriação (prior appropriation rule), priorizando-se os direitos daquele que chegara anteriormente[38]. A regra fora no passado pensada para incentivar a ocupação do interior; quem chegasse primeiro não se preocuparia com a falta de água[39]. Também há autorização legal para que o proprietário utilize águas vizinhas de mar, oceanos e lagos (littoral rights)[40].

Além do já mencionado contrato de locação, há outros modos de limitações consensuais de propriedade real. Através de permissão chamada de easement, usa-se a terra de outrem com propósitos específicos, a exemplo de companhias de gás que instalam tubulações em propriedade alheia. O contratante interessado no uso da propriedade (holder of an easement) detém privilégio de valer-se da mesma[41]. O easement também faz as vezes de servidão (servitude)[42], qualificando interesses possessórios individuais em propriedade pertencente a outrém. A prática suscita questões que indicam easementspermanentes e revogáveis, expressos e implícitos, formais e informais[43], com soluções casuísticas, especialmente porque a matéria é prioritariamente de competência estadual e consequentemente variável em seus contornos e desdobramentos. Tem-se também a licença (license), de conteúdo similar à easement, com a diferença de que pode ser revogada a qualquer momento[44]. De acordo com autor norte-americano:
Licenças são usualmente criadas de maneira informal. Algumas surgem por meio de declaração oral, do mesmo modo que se convida um amigo para um jantar. Outras estão implícitas; é o caso de quem abre uma loja e convida o público para que entre e compre os bens que estão à venda. Às vezes, no entanto, licenças são formalmente criadas por concessão ou acordo. Em tais casos, é muitas vezes necessário que se determine se o contrato indica licença mesmo ou algo mais, como um “easement”, um aluguel ou um outro pacto qualquer[45].
Entre os pactos que o direito de propriedade norte-americano registra há um que restringia o acesso de propriedade a minorias (racially restrictive covenant), vedando, por exemplo, venda de imóvel para pessoas de cor ou hispânicos[46]. A Suprema Corte julgou inválidos tais acordos em 1948, ao apreciar o caso Shelley vs. Kraemer[47].
O proprietário está subsumido a vários deveres, identificados em geral com o título denuisance, a exemplo da proibição de expelir gases tóxicos na atmosfera[48]. Não vivemos sozinhos, um bar pode ser barulhento, vizinhos querem dormir calmamente pela noite, adolescente pode pretender-se estrela da música popular e ouvir música alta a qualquer hora, um herbicida pode contaminar o lençol freático, proprietário pode alugar apartamento a traficantes de drogas, desvalorizando a vizinhança. Hipotéticos ou histriônicos, os exemplos acima, tomados de autor norte-americano[49], insinuam deveres do proprietário, que também se responsabiliza pela manutenção da tranquilidade de vizinhos e da comunidade. Para tanto, o proprietário subordina-se a regras gerais da localidade, detentora de poder de polícia (police power).
A propriedade real também enceta relações tributárias[50]. Impostos (taxes) incidentes sobre a propriedade são de competência estadual e local. O quanto a ser pago (assessed value) decorre de alíquota (tax rate) aplicada ao valor da propriedade (ad valorem taxes), fixação geralmente feita pela comunidade em votação geral[51]. Impostos pagos em razão da propriedade são dedutíveis do imposto de renda. O lucro obtido com a venda da propriedade, por outro lado, qualifica fato gerador de tributação sobre a renda. Há incidência também quando se faz a transferência da propriedade (transfer taxes on the sale of property)[52], de competência estadual.
A venda, através do purchase contract, documento escrito, determina a transferência da propriedade. A mecânica dos negócios no país geralmente promove a compra de imóvel por meio de financiamento (financing), vinculando banco e adquirente por contrato de hipoteca (mortgage loan)[53]. O comprador adianta um valor (down payment) ao vendedor, de dez a vinte por cento, e compromete-se com o banco por meio de três documentos. Pelo deed, adere ao negócio. Pela note, responsabiliza-se a pagar ao banco. Pela mortgage, dá a propriedade em garantia à casa financeira[54], que assume os direitos sobre a mesma, se o tomador do dinheiro não honrou as prestações (foreclosure action). A transferência da propriedade real também pode ser feita por meio de doações (gifts). O doador (grantor) implementa sua intenção de dispor da coisa (donative intent)[55]. A doação é transferência gratuita feita voluntariamente de uma pessoa para outra, sem consideração a nenhuma forma de pagamento[56].
A adverse possession é modalidade aquisitiva de propriedade real cujos contornos lembram a usucapião da tradição jurídica de base romana. A posse do interessado deve provar-se real[57], hostil aos interesses do proprietário, pública, notória[58] e contínua[59], por quinze a vinte anos, dependendo de regulamentação específica[60]. Além disso,
Como regra geral, nenhum ato específico indicativo de posse é requisito legal. Qualquer atividade na propriedade pode conduzir à posse adversa (usucapião) se indicativas de qualidades específicas. Entretanto, em alguns estados exige-se que o detentor interessado pague todos os impostos devidos em relação à propriedade[61].
Vendas judiciais (sheriff’s sales), modelos próximos a praças e leilões, de igual maneira transferem a propriedade[62]. A modalidade também se dá em matéria tributária, em âmbito de execução fiscal, que nos Estados Unidos é implementada de forma administrativa, caracterizada pela celeridade. Jornais diuturnamente estapam editais, que oferecem bons negócios, pelo que existe muito interesse na realização dessas hastas públicas.
A propriedade pessoal pode transferir-se (além das modalidades prescritas para a propriedade real) por meio do finding e do bailment[63]. No finding alguém (o finder) encontra item abandonado (abandoned) ou esquecido (mislaid). No primeiro caso a propriedade transfere-se para quem encontrara o objeto. No segundo exemplo a propriedade deve ser redirigida ao proprietário que esquecera a coisa[64]. Há máxima popular norte-americana que indica que quem encontra a coisa é dono, quem perdeu chora[65], próxima do clássico adágio habeus ut nanctus, quem acha é dono[66]. Nobailment o proprietário deixa a coisa em posse de outrem, para que cuide ou guarde[67]. Radica na common law e exige entrega do objeto e consentimento mútuo entre as partes[68].
A sucessão por morte também transfere a propriedade. Pode have haver disposição testamentária (testamentary) ou opera-se regime de quinhão ideal (intestate), quando o juízo do inventário indica administrador (administrator)[69]. A matéria é regulamentada por lei estadual e variações há, limitando-se a vontade do testador, favorecendos-se determinados herdeiros.
Em âmbito de transferência de propriedade o trust é figura típica do direito norte-americano. Um criador do trust (settlor) reserva propriedade (propriety) que será administrada por alguém pelo settlor indicado (trustee), que irá remunerar os beneficiários (beneficiaries)[70]. Segundo professor da universidade de Tulane:

O direito de propriedade confere ao titular a autoridade direta, imediata e exclusiva sobre a coisa. O proprietário pode usufruí-la, dirigí-la e dispô-la nos termos da lei. Entretanto, nem todas as pessoas são capazes ou estão interessadas em administrar suas propriedades. Assim, a lei permite que a administração do bem seja destacada da propriedade do mesmo. Isso pode ser implementado pelo uso de instrumentos corporativos, nomeadamente, a transferência da propriedade para pessoa jurídica, como uma corporação, uma sociedade ou uma fundação. Isso também pode ser feito sem interposição de pessoa jurídica entre pessoa física e propriedade, nos casos da administração de menores ou incapazes. Em sistemas de common law, a separação entre administração e propriedade faz-se através do trust. O trust é relação jurídica por meio da qual o trustee assume a obrigação de administrar a propriedade que controla, a saber, a propriedade do trust, pelo bem do beneficiário ou beneficiários, dentre os quais ele pode ser um deles. Todos os tipos de propriedade, real ou pessoal, tangível ou intangível, podem ser dadas em trust, porém o que se mais se vê são terras, títulos e ações[71].
A propriedade intelectual (intelectual property) é forma de propriedade pessoal e divide-se em direitos de reprodução (copyright law), de patentes (patent law) e de marcas (trademark law). A disciplina vincula-se e desenvolve-se com o gênio humano, que registra e tira proveitos de suas conquistas. Trivialização do tema dá-nos interessantes informações. Benjamin Franklyn inventara os óculos bifocais, pois odiava carregar dois pares de armações para o vidro mágico[72]. A empresa General Electric detém direitos sobre o maior número de patentes no mundo; mais de cinquenta mil[73]. A companhia fora fundada por Thomas Alva Edison e chamava-se Edison Electric Light Company[74].Em 1980 a Suprema Corte norte-americana determinou que organismos vivos podem ser patenteados[75]. Em 1912 Winifred Gugliemi (cujo nome artístico será Rodolfo Valentino) patenteou uma boneca de pano que inventara, e que servia como instrumento para limpeza de casa[76].
Copyright radica no latim copia que indica a ideia de muito, de reprodução, assumindo feição contemporânea de direito de copiar[77]. A divulgação indiscriminada dos poemas de Homero leva-nos a pensar que a ideia de proteção intelectual inexistia na Hélade pré-clássica[78]. Mosaicos dos monastérios cristãos na alta idade média recebiam certa forma de proteção, quanto à reprodução[79]. A invenção da imprensa na Alemanha e seu uso posterior em Veneza e nas demais cidades italianas suscitou preocupação com a proliferação de textos sem autorização do autor[80]. Foi só no século XVIII que estatutos ingleses mencionaram o tema[81], em regime que identificou tradição que foi transplantada para os Estados Unidos. Copyright é forma de proteção legal provida pelas leis norte-americanas outorgada a autores de obras originais, incluindo trabalhos literários, dramáticos, musicais, artísticos (...)[82].
A matéria é normatizada nos Estados Unidos pelo Copyright Act de 1976. Produziu-se a regra pelo Congresso com base no artigo I, parágrafo 8, cláusula 8, da constituição norte-americana. Diz o aludido excerto da constituição dos Estados Unidos que ao Congresso cabe promover o progresso das ciências e das artes, assegurando por limitado tempo aos autores o exclusivo direito em relação aos respectivos escritos e descobertas[83]. Sujeitam-se à lei do copyright trabalhos literários, dramáticos, científicos, musicais, artísticos, arquitetônicos, além de programas de computador[84]. Originalidade é o requisito exigido para proteção[85].
Proteção de direito autoral e de imagem são aspectos significativamente complexos em tempos das chamadas perspectivas conceituais pós-modernas. Andy Warhol reproduziu fotos de Elvis Presley, de Mick Jagger, de Marylin Monroe e das latas de soupas Campbell, além de expor caixas de bombril, de modo a lembrar que uma simples ida ao supermercado pode ser uma experiência artística. Um dos mais importantes e prolíficos artistas do século XX, Warhol morreu em fevereiro de 1987 de ataque cardíaco, após uma operação na bexiga. Seu túmulo é muito simples, indica apenas nome, data de nascimento e morte, duas mãos em posição de oração, conjunto muito diferente de seu estilo artístico e pessoal[86]. Ao reproduzir imagens de artistas e de outros símbolos da indústria pop, Warhol fixa inusitada forma de apropriação da chamada arena alheia.
Umberto Eco, escritor italiano, também se valeu de colagens e emendas de passagens clássicas, ao compor seu best-seller ambientado na idade média, O Nome da Rosa. A obra é repleta de referências, alusões. O detetive, William of Baskerville, é mistura de William(versão original inglesa de Guilherme de Ockham, filósofo que debateu a questão das universais) com Baskerville (que nos remete aos Cães de Baskerville, que inaugura as aventuras de Sherlock Holmes). O auxiliar do detetive, Adso de Merck, é referência aWatson, companheiro do famoso detetive inglês. O cego que toma conta da biblioteca é alusão a Jorge Luis Borges, escritor argentino que praticamente perdeu a vista, e que cuidava de uma biblioteca em Buenos Aires. Borges, por sua vez, também usou referências infinitas, ao escrever um conto a propósito de alguém que tudo fez para reproduzir o Dom Quixote de Cervantes, inclusive estudando novelas de cavalaria e espanhol antigo; as obras são exatamente iguais... Além disso, caracteres literários podem fugir do controle de seus criadores, a exemplo do Tarzan das Selvas, de Edgar Rice Burroughs, mistura de homem branco com o nobre selvagem de Rousseau[87]. E no cinema, literatura e música[88] ganham novas versões, surgindo produto novo e por vezes distinto[89].
Em regra, a proteção projeta-se até setenta anos depois da morte do autor[90], caindo depois disso no domínio público (public domain). A obra então poderá ser utilizada para quaisquer propósitos, inclusive comerciais. Autores que no início de suas carreiras, e ainda no anonimato, venderam direitos autorais de suas obras, têm direito de recapturarem tais direitos[91]. Infrações não se tipificam quando acusado de plágio desconhecia a obra que teria copiado[92]. Professores universitários detêm direitos sobre suas publicações, que não são propriedade das universidades[93].
A lei de patentes (patent law) radica no Federal Patent Act de 1953. Outorga-se direito de exclusão, que é garantido ao inventor. O segredo é revelado, e dado ao público, em troca da proteção que a patente oferece[94]. Segundo autor norte-americano:
As patentes têm duplo propósito nos Estados Unidos. As patentes incentivam o inventor e beneficiam a sociedade que ganha conhecimento da nova tecnologia, tornando o investimento no mercado mais atrativo. Na verdade, a patente é um monopólio de dezessete anos dado ao inventor pelo governo federal em troca de completa e total descrição de sua invenção[95].
São patenteáveis invenções caracterizadas pela novidade, utilidade e não obviedade. São registradas mediante requerimento e completa descrição junto ao U.S. and Trademark Office em Washington[96]. O controle de patentes é aspecto que qualifica a competição entre os grupos empresariais, ciosos das inovações no mercado, garantidoras de lucros e de crescimento.

As marcas (trademark) protegem nomes e símbolos distintivos. São exemplos os nomesSprite e Kentucky Fried Chicken, o símbolo da concha da Shell, as letras estilizadas daCoca-Cola, os desenhos em arcos cor de ouro da cadeia de restaurantes McDonald’s[97].Combate-se o erzatz, a imitação, quando se vende Adadidas por Adidas, ou quando troca-se a posição do pequeno jacaré da camiseta Lacoste. A trademark distingue bem ou serviço[98] e por isso reflete-se nas relações de consumo.
O desenvolvimento dos espaços cibernéticos (cyberspace) com concomitante proliferação do uso da web e da internet[99], tem criado instâncias normativas que se projetam em todos os campos do direito positivo. Soluções e perspectivas variam e são tomadas e sentidas casuisticamente. Esse é apenas mais um indicativo de que o direito de propriedade norte-americano acompanha o modelo econômico, comprovando que este último dita aquele, na relação entre superestrutura e infraestrutura, como previsto pelos críticos do modelo capitalista.
[1] John R. Commons, Legal Foundations of Capitalism, pg. 12.
[2] Werner Z. Hirsch, Law and Economics, an Introductory Analysis, pg. 21.
[3] A. N. Yannopoulos, Property, in David S. Clark e Tugrul Ansay (ed.), Introduction to the Law of the United States, pg. 209. Tradução e adaptação livre do autor. (…) an exclusive right to control an economic good.
[4] William Nelson, Property, in Alan B. Morrison (ed.), Fundamentals of American Law,pg. 264.
[5] Frederick G. Kempin, Jr., Historical Introduction to Anglo-American Law, pgs. 129 e ss.
[6] A. N. Yannoupoulos, ob.cit., pg. 218.
[7] William Burnham, Introduction to the Law and Legal System of the United States, pg. 459.
[8] A. N. Yannoupoulos, ob.cit., pg. 219.
[9] Edward R. Cohen, Materials for a Basic Course in Property, pg. 7.
[10] Edward R. Cohen, op.cit., pg. 17.
[11] Edward R. Cohen, op.cit., pg. 29.
[12] Edward R. Cohen, op.cit., pg. 43.
[13] Max Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, pgs. 155 e ss.
[14] A. N. Yannoupoulos, op.cit., pg. 211.
[15] A. N. Yannoupoulos, op.cit., pgs. 213 e 214.
[16] William Burnham, op.cit., pg. 454.
[17] William Burnham, op.cit., pg. 455.
[18] William Burnham, op.cit., loc.cit.
[19] Stephen H. Gifis, Law Dictionary, pg. 130.
[20] Stephen H. Gifis, op.cit., pg. 553.
[21] William Burnham, op.cit., loc.cit.
[22] William Burnham, op.cit., loc.cit.
[23] David S. Hill, Landlord and Tenant Law in a Nutshell, pg. 4.
[24] David S. Hill, op.cit., loc.cit.
[25] Roger H. Bernhardt, Property, Cases and Materials, pg. 203.
[26] Edward R. Cohen, op.cit., pg. 138.
[27] William Burnham, op.cit., pg. 456.
[28] William Burnham, op.cit., loc.cit.
[29] William Burnham, op.cit., pg. 457.
[30] William Burnham, op.cit., pg. 458.
[31] William Burnham, op.cit., pg. 459.
[32] William Burnham, op.cit., loc. cit.
[33] William Burnham, op.cit., loc. cit.
[34] William Burnham, op.cit., loc. cit.
[35] Joseph William Singer, Introduction to Property, pg. 125.
[36] William Burnham, op.cit., pg. 460.
[37] Joseph William Singer, op.cit., pg. 123.
[38] Joseph William Singer, op.cit., pg. 125.
[39] William Burnham, op.cit.,loc.cit.
[40] William Burnham, op.cit.,loc.cit.
[41] Roger Bernhardt, Real Property in a Nutshell, pg. 173.
[42] Joseph William Singer, op.cit., pg. 171.
[43] Joseph William Singer, op.cit., pg. 172.
[44] William Burnham, op.cit., loc.cit.
[45] Joseph William Singer, op.cit., pg. 174. Tradução e adaptação livre do autor. Licenses are usually created informally. Some are created by oral statements, as when you invite your friends for dinner. Others are implied; when you open a shop, you impliedly invite the public to enter the store to purchase the goods you have to sell. Sometimes, however, licenses are created formally by written grant or agreement. In such cases, it is often necessary to determine whether the interest should be interpreted as license or as something else, such as an easement or a lease or a covenant.
[46] William Burnham, op.cit., pg. 461.
[47] 334 U.S. (1948).
[48] William Burnham, op.cit., loc.cit.
[49] Joseph William Singer, op.cit., pg. 92.
[50] William Nelson, op.cit., pgs. 266 e ss.
[51] William Burnham, op.cit., pg. 463.
[52] William Burnham, op.cit., pg. 469.
[53] Roger H. Bernhardt, Property, Cases and Materials, pgs. 909 e ss.
[54] William Burnham, op.cit., pg. 468.
[55] William Burnham, op.cit., pg. 471.
[56] Barlow Burke, Personal Property in a Nutshell, pg. 286. Tradução e adaptação livre do autor. A gift is a gratuitous transfer made voluntarily by one person to another and made without consideration or payment of any type.
[57] Joseph William Singer, op.cit., pg. 137.
[58] Joseph William Singer, op.cit., pg. 140.
[59] Joseph William Singer, op.cit., pg. 141.
[60] William Burnham, op.cit., loc.cit.
[61] Roger Bernhardt, Real Property in a Nutshell, pgs. 350 e 351. Tradução e adaptação livre do autor. Generally no specified acts of possession are required. Any set of activities on land may lead to a finding of adverse possession if those activities have the right quality. However, some states require that the adverse possessor pay all taxes due on the property.
[62] William Burnham, op.cit., pg. 472.
[63] William Burnham, op.cit., loc.cit.
[64] William Burnham, op.cit., loc.cit.
[65] Barlow Burke, op.cit., pg. 158. Tradução e adaptação livre do autor. Finders keepers, losers weepers.
[66] Barlow Burke, op.cit., loc.cit.
[67] William Burnham, op.cit., loc.cit.
[68] Barlow Burke, op.cit., pgs. 196 e ss.
[69] William Burnham, op.cit., pg. 474.
[70] William Burnham, op.cit., pg. 475.
[71] A. N. Yannopoulos, op.cit., pg. 224. Tradução e adaptação livre do autor. The right of ownership confers on a person direct, immediate, and exclusive authority over a thing. The owner may use, enjoy, manage, and dispose of the thing he owns within the limits and under the conditions established by law. However, not all persons are capable or willing to manage their property, and the law permits management to be detached from ownership. This may be accomplished by the use of the corporate device, namely, the transfer of property to a juridical person, such as a corporation, a partnership, or a foundation. It may also be accomplished without the interposition of an artificial person between a human being and his property, as in cases of administration of the property of a minor or an incompetent. In common law jurisdictions, detachment of management from ownership is frequently accomplished by means of a trust. A trust is a legal relationship by which a trustee undertakes the obligation to deal with property over which he has control, that is, the property in trust, for the benefit of a beneficiary or beneficiaries, of whom he may himself be one. All kinds of property, real or personal, and tangible or intangible, may be held in trust, but the things most frequently so held are lands, stocks, and bonds.
[72] Frank H. Foster e Robert L. Shook, Patents, Copyrights and Trademarks, pg. 225.
[73] Frank H. Foster e Robert L. Shook, op.cit., pg. 226.
[74] Frank H. Foster e Robert L. Shook, op.cit., loc.cit.
[75] Frank H. Foster e Robert L. Shook, op.cit., pg.228.
[76] Frank H. Foster e Robert L. Shook, op.cit., pg. 229
[77] Richard Rogers Bowker, Copyright, its History and its Law, pg. 1.
[78] Richard Rogers Bowker, op.cit., pg. 8.
[79] Richard Rogers Bowker, op.cit., pg. 9.
[80] Richard Rogers Bowker, op.cit., pg. 13.
[81] Richard Rogers Bowker, op.cit., pg. 24.
[82] Frank H. Foster e Robert L. Shook, op.cit., pg. 145. Tradução e adaptação livre do autor. (...) Copyright is a form of legal protection provided by statutes of the U.S. government and is granted to authors of “original works of authorship”, including literacy, dramatic, musical, artistic (…)
[83] Constituição dos Estados Unidos, artigo I, § 8, 8. Tradução e adaptação livre do autor. To promote the Progress of Science and useful Arts, by securing for limited Times to Authors and Inventors the exclusive Right to their respective Writings and Discoveries.
[84] William Burnham, op.cit., pg. 478.
[85] William Burnham, op.cit., loc.cit.
[86] Vilis R. Inde, Art in the Courtroom, pg. 149.
[87] Dorothy J. Howell, Intellectual Properties and the Protection of Fictional Characters,pg. 132.
[88] Joseph Taubman (ed.), The Business and Law of Music.
[89] Ken Sutak, The Great Motion Picture Sound-Track Robbery: An Analysis of Copyright Production, pg. 3.
[90] William Burnham, op.cit., pg. 480.
[91] William Burnham, op.cit., pg. 483.
[92] William Burnham, op.cit., pg. 484.
[93] John D. McMillen, Intellectual Property- Copyright Ownership in Higher Education: University, Faculty, & Students Rights, pgs. 21 e ss.
[94] William Burnham, op.cit., pg. 485.
[95] Frank H. Foster e Robert L. Shook, op.cit., pg. 24. Tradução e adaptação livre do autor. Patents serve a dual purpose in the United States. Not only does a patent provide incentive for the inventor, but society benefits by gaining knowledge of new technology and making investment in its marketing more attractive. Actually, a patent is a 17-year monopoly granted to an inventor by the federal government in exchange for a complete and through description of his or her invention.
[96] William Burnham, op.cit., pg. 487.
[97] William Burnham, op.cit., pg. 488.
[98] Frank H. Foster e Robert L. Shook, op.cit., pg. 165.
[99] A. N. Yannopoulos, op. cit., pg. 227.

ARNALDO SAMPAIO DE MORAES GODOY é consultor-geral da União, doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP.