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quarta-feira, 30 de maio de 2012

Direito e bom senso

"Salvo em casos extremos em que certa sutileza é inevitável, o Direito não é outra coisa que a mais alta expressão do bom senso; um espírito bem formado deve advinhá-lo antes de conhecê-lo".
(Bétolaud, citado por Andrés Toulemon. El menosprecio de los contratos y la crisis. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1045,  p.9)

quarta-feira, 23 de maio de 2012

acerca da constitucionalização do direito privado.

Vicenzo Roppo, um dos grandes autores do direito italiano, escreveu no início desta década um ensaio acerca das perspectivas do direito contratual para o novo milênio. Ao falar da aplicação das normas constitucionais no direito privado, disse ele que:


"A época de ouro, neste sentido, foi a dos anos 70 do século XX. Neste momento a doutrina determinava com generosidade a possibilidade da incidência, no plano das regras contratuais, do princípio da solidariedade do artigo 2º da Constituição Italiana, ou dos princípios da socialização do inciso 2º, artigo 51 da Constituição, perguntando se deles poderiam surgir diretamente causas de impugnação ou invalidez.
...omissis....
Mas foi um período breve. Passados os anos 70 e os primeiros anos dos 80, aquela classe de jurisprudência começava a rarear, para depois desaparecer. Por outra parte, esta visivelmente esgotado – inclusive na doutrina – o empenho por ter as normas constitucionais como fonte do direito contratual..... "
(ROPPO, Vincenzo. El contrato del dos mil. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2005, p. 20. A tradução é minha).

A preocupação hoje do direito europeu é com a incorporação das regras comunitárias. A constitucionalização do direito privado já saiu de moda lá, mas continua fazendo sucesso aqui - ao menos até que uma nova moda a substitua.....

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Sigilo bancário x função social do contrato


Para a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o banco tem dever geral de colaboração com o Judiciário e deve fornecer o endereço do emitente de cheque sem fundos, se determinado pela Justiça. Ordem nesse sentido não viola a privacidade do consumidor nem o sigilo bancário.
O credor, um despachante, ingressou com ação de exibição de documentos contra a instituição financeira. A ação foi julgada procedente em primeira e segunda instâncias. Mas o banco recorreu ao STJ argumentando que a ordem violava o sigilo bancário e normas de proteção ao consumidor.
Sigilo e colaboração O ministro Luis Felipe Salomão, porém, rejeitou os argumentos da instituição. O relator apontou que o sigilo bancário é norma infraconstitucional e não pode ser invocado de modo a tornar impunes condutas ilícitas ou violar outros direitos conflitantes.
Além disso, para o relator, os terceiros têm um dever geral de colaboração com o Judiciário. No caso, o fornecimento dos dados cadastrais do cliente serve à preservação da autoridade jurisdicional, à utilidade do processo e ao resguardo do direito fundamental de ação do autor.
Proteção e boa-fé
Salomão também afastou a alegação de que a medida viola direitos do consumidor. Apesar de o Código de Defesa do Consumidor (CDC) alcançar os bancos de dados bancários e considerar abusiva a entrega desses dados a terceiros pelos fornecedores de serviços, o CDC impõe que se compatibilizem a proteção ao consumidor e as necessidades de desenvolvimento econômico.
“O contrato só cumpre a sua função social com o adimplemento das obrigações convencionais, meio pelo qual é obtida a circulação de riquezas e mantém-se a economia girando”, afirmou o relator, em referência à doutrina de Cavalieri Filho. Ele citou precedente do Supremo Tribunal Federal (STF) tratando exatamente a questão da proteção ao consumidor e a privacidade do cliente bancário. Conforme o Supremo, a norma constitucional que impõe a defesa do consumidor é de eficácia limitada, e não é incompatível com a norma infraconstitucional que não contraria ou inviabiliza claramente a disposição programática da Constituição.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

insegurança jurídica não pode ser tolerada

Tornou-se lugar comum, na doutrina, a afirmação de que temos no Brasil, hoje, um sistema de precedentes.
A jurisprudência estaria a mostrar toda sua força e importância. Muitos autores, nesse contexto, entendem que estaríamos nos aproximando do que ocorre em outros países, que adotam o modelo de common law. Estudar o tema, repentinamente, tornou-se algo quase que obrigatório. Autores expressivos que escrevem sobre a criação judicial do direito em tais sistemas passaram a ser estudados – ou, ao menos, seus nomes tornaram-se conhecidos – entre nós.
É inegável: a jurisprudência está no centro das atenções. Muitos falam sobre a jurisprudência como fonte de direito, e isso é algo forte. Não se pode falar em jurisprudência como fonte de direito sem algum cuidado. Esse necessário cuidado tem chamado a atenção de parte doutrina. Há escritos interessantes, produzidos por autores que se dedicam ao estudo da teoria do direito, do direito constitucional e direito processual civil.
A experiência colhida em países como Estados Unidos da América e Inglaterra, creio, pode nos ajudar nesse “processo de transformação” da importância da jurisprudência no direito brasileiro. Pensar que vivemos em um modelo de common law, no entanto, parece algo exagerado e descabido. O modelo de precedentes brasileiro deve encontrar suas bases no modelo constitucional brasileiro, ainda que a experiência colhida no direito comparado possa nos auxiliar, aqui e ali.
Há, também, a “onda de princípios”. Repentinamente, parece que tudo deve ser explicado em razão de um princípio. Mas não há consenso acerca do que deve ser considerado um princípio jurídico. Não raro, autores estrangeiros que têm visões diferentes a respeito do tema são citados para justificar a opção por um sentido de princípio, como se pensassem de um mesmo modo... Devemos nos preocupar com o significado de princípio, se se trata de algo diferente ou não das regras e dos valores, e há vários estudos na doutrina brasileira a respeito. Mas, quando se trata de dizer que “isto” é um princípio, parece que estamos distantes de um acordo. Mais ainda: depois de se afirmar que algo é um princípio, o passo seguinte – e mais perigoso – parece ainda mais incerto, entre nós. Afinal, o que pode um juiz fazer com o disposto no art. 1.º, III da Constituição, que estabelece a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República brasileira? Se tomarmos por base a construção jurisprudencial recente do Supremo Tribunal Federal, arrisco-me a dizer: praticamente tudo. Mas é certo que seja assim?
Acompanhamos – alguns com entusiasmo, outros com temor – o avanço da jurisprudência sobre temas totalmente novos – alguns deles, inclusive, que sequer são jurídicos, para alguns. Um exemplo recente é o relativo ao abandono afetivo. Os fundamentos do acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça são muito interessantes. Trata-se do cuidado como valor jurídico, de como o ser humano precisa cuidar do outro “para realizar sua humanidade, para crescer no sentido ético do termo”. O cuidado como valor jurídico é, de acordo com o referido julgado, incorporado pelo artigo 227 da Constituição. Aí está: o texto constitucional, de algum modo, refere-se ao “dever de cuidado”. Fico apenas neste exemplo, que demonstra que valores antes pertencentes à “moral” foram incorporados ao Direito. Não se trata, pois, de discutir sobre a diferença entre direito e moral, mas de saber como decidir e aplicar essa norma constitucional.
Exige-se algo mais do intérprete/aplicador do direito. É muito fácil cair na tentação de decidir, em situações como a descrita, não com base na norma jurídica, mas no que o próprio juiz pensa, a respeito daquele valor alçado ao nível de norma jurídica. Não surpreende que, em casos assim, as decisões judiciais citem como fundamento trabalhos científicos de outras áreas (no exemplo citado, há transcrição de um livro de psicologia). Há uma sensação de que a norma jurídica trouxe para dentro de si valores para os quais o discurso jurídico ainda é insuficiente, e é necessário buscar algo “fora” do direito para resolver os problemas humanos.
Interpretar/aplicar a norma jurídica não é apenas método; é também arte.
Mas, se o direito é mesmo construído pela jurisprudência, que precedente pode ser extraído do julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, sobre abandono afetivo? Quais as condições que deverão estar presentes, para que seja observado em casos futuros? A orientação firmada é forte, e influenciará decisões vindouras, ou tende a ser abandonada? Enfim, deve haver um labor com o intuito de se extrair a orientação (ou orientações) a ser(em) seguida(s) – o que, grosso modo, seria o precedente – pelo próprio tribunal ou pelos demais tribunais do país (ou stare decisis vertical e horizontal, para usar termos de common law). Interessa, por outro lado, conhecer os trechos dos julgados que efetivamente contribuíram para a formação do precedente (ratio decidendi, excluindo os obiter dicta), para, com isso, compreender o efetivo sentido do precedente, a fim de que o mesmo seja aplicado a casos idênticos, e não aos diferentes (distinguishing), bem como de que o entendimento firmado no precedente seja corrigido, ou superado (overruling).
Aqui começam outros problemas. Os tribunais superiores devem se preocupar com a coerência e a estabilidade da jurisprudência, não há dúvida. Há exemplo muito recente, em que o Superior Tribunal de Justiça admitiu a apresentação de documentos que demonstrem a ocorrência de feriado local, com o intuito de afastar preliminar de tempestividade (alinhando-se, quanto ao ponto, à orientação mais recente do Supremo Tribunal Federal), mas, logo em seguida, voltou atrás. Tem-se, assim, exemplo de incoerência que pode haver entre as orientações firmadas entre os dois tribunais superiores, e de instabilidade interna da jurisprudência de um tribunal.
É desnecessário invocar-se o modelo de precedentes de common law para censurar a incoerência e a instabilidade, enfim, a falta de integridade da jurisprudência. Fiquemos com nossa boa norma constitucional: se vivemos em um Estado Democrático e de Direito, a insegurança jurídica é intolerável – o direito, afinal, se tornaria (ou tem se tornado?), ele próprio, fator de insegurança.
José Miguel Garcia Medina é professor, advogado, mestre e doutor em processo civil e autor de livros sobre o tema. Escreve às quartas-feiras na ConJur. Acompanhe-o no Twitter, no Facebook e em seu blog.
Revista Consultor Jurídico, 12 de maio de 2012