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quinta-feira, 27 de junho de 2013

Os juristas que não traíram a História

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

O jurisconsulto romano Papiniano foi condenado à morte pelo imperador Antonino Caracala em decorrência de sua negativa em fornecer argumentos para justificar o homicídio praticado pelo soberano de Roma contra seu próprio irmão.[1] A História romana está repleta de exemplos de crimes cometidos por governantes contra seus (muitas vezes supostos) adversários políticos ou contra servidores que se furtaram a cumprir ordens.
O exemplo de Papiniano, conhecido por suas sentenças, que até hoje são usadas nas aulas de Direito Civil e por integrar o famoso “Tribunal dos Mortos”, é digno de registro por exaltar a peculiar relação entre os juristas e o poder político. Especialmente em regimes de exceção, parece ser muito necessária a palavra abonadora de um expert em Direito para contestar leis ou medidas administrativas de caráter arbitrário. Ocasionalmente, essas pessoas são convocadas a assumir posições de grande relevo na estrutura de poder, para além do mero aconselhamento jurídico.
O jurista, em princípio, é um homem da retórica e não das armas. O poder, esse corruptor insidioso, detém a bolsa e a espada. Com elas, persuade as consciências ou as faz se dobrar pelo medo da morte física. São Thomas Morus, o lord chancellor [durante séculos, a mais alta autoridade judicial britânica] do rei Henrique VIII, foi decapitado após uma sentença iníqua, baseada no depoimento forjado de seu antigo assessor Richard Rich, que ganhou a Procuradoria-Geral de Gales como prêmio por sua desonra. Morus temia a morte e não queria ser martirizado, a despeito de suas inegáveis convicções católicas. Confrontado com a ordem para que jurasse fidelidade ao Ato da Supremacia, que, dentre outras regras, indicava o rei da Inglaterra como chefe máximo da Igreja nas Ilhas britânicas, ele silenciou diversas vezes, a fim de não ser acusado de alta traição. Em um dos diversos julgamentos iniciados contra ele, o procurador de Justiça afirmou que seu silêncio era a mais eloquente prova de sua rejeição ao Ato da Supremacia. Ele redarguiu: “É verdade que o ius commune diz que quem silencia parece concordar. Se meu silêncio prova algo, é a aprovação ao Estatuto”. O procurador, tomado de ira, vociferou: “Pois jure submissão ao Ato!”. Morus, então, simplesmente silenciava. Nada disso adiantou. Morreu executado, não sem antes dizer que morria leal servo do rei Henrique, mas de Deus primeiro.[2]
Se, em regimes democráticos, a hipótese da execução física é afastada, persistem outras modalidades de se constranger ou silenciar vozes dissonantes de uma suposta maioria conformista. Na maior parte dos casos, o julgamento histórico vem tardiamente e seus reparos não são suficientes. Resta, quando muito, tentar fazer alguma justiça, mesmo em relação aos mortos.
A esse propósito, quer-se prestar agora uma homenagem a seis juristas alemães, que se mantiveram fieis a algo indefinível. Honra? Altruísmo? Simples sentimento de dever ou de que realizavam nada mais do que lhes era exigido pelo cargo que ocupavam? Este colunista, até agora, não conseguiu decifrar o porquê de suas ações, tantas as possibilidades. Só sabe que foi algo bom. E isso é o bastante.
No final de janeiro de 1933, quando os nacional-socialistas chegaram ao poder na Alemanha, Hans Kelsen era diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Colônia. Ele corajosamente se manteve no cargo de catedrático, mas renunciou à direção. No entanto, com a promulgação da “Lei de Restauração do Funcionalismo”, de 7 de abril de 1933, ele viveu a seguinte situação: “Estava tomando o café da manhã e lendo o Kölner Stadtanzeiger [Diário de Colônia] quando minha mulher, que estava sentada diante de mim, disse: ‘O seu nome está no verso da folha!’ Era a notícia da minha demissão, da qual fiquei sabendo por esse meio”.[3] Como explica Mathias Jesteadt, na nota explicativa à Autobiografia 161, “[n]o mesmo dia também foram demitidos, entre outros, os renomados juristas Hermann Heller (1891-1933), Hermann Ulrich Kantorowicz (Gnaeus Flavius, 1877-1940), Karl Loewenstein (1891-1973) e Hugo Sinzheimer (1875-1945)”.
E o que fizeram seus colegas de Faculdade de Direito? Com uma exceção, o jurista Carl Schmitt, todos os catedráticos mantiveram-se ao lado de Kelsen. Não ficaram no apoio nominal. Elaboraram uma petição em favor de Hans Kelsen, dirigida ao comissário do Reich para o Ministério de Ciência, Arte e Educação da Prússia, ao qual se subordinava a Universidade de Colônia. Os subscritores destacavam que a demissão de seu colega seria uma perda sensível para a universidade, além de uma mancha indelével no prestígio da Ciência alemã. Kelsen foi destacado como uma pessoa humana superior e extremamente valiosa, para além da excelsa figura do jurista internacional.
Não satisfeitos, os colegas instaram Carl Schmitt a que assinasse a petição. Eles tinham consciência de que sua firma naquele documento era de mais valor que todas as outras ali postas. Ele se negou a fazê-lo, apesar de ter sido Kelsen quem mais lutou para que Schmitt obtivesse a cátedra em Colônia e não fosse injustamente preterido.
O decano (rectius, diretor) da Faculdade, Hans Carl Nipperdey, dirigiu-se de carro até Berlim, com o inútil propósito de demover o governo da demissão de Kelsen. Sem o nome de Schmitt, o documento foi protocolarmente recebido e arquivado.
A história desenrolou-se, porém, da melhor forma para Kelsen. Demitido, ele ainda conseguiu fugir da Alemanha, com a incrível ajuda de um anônimo servidor subalterno da Faculdade, que era membro do Partido Nazista. Tivesse sua petição sido acolhida, é provável que ele não houvesse sobrevivido com o recrudescimento do regime nos anos seguintes, como bem anota seu grande biógrafo Rudolf Aladár Métall.[4]
O paralelo entre o “jurista do regime” (Schmitt) e o “perseguido do regime” (Kelsen) é óbvio demais para ser explorado neste espaço. Interessa homenagear os corajosos nomes dos seis catedráticos de Colônia, “que subscreveram o documento, com elevado custo, no futuro, para suas carreiras (e suas vidas). Ao firmar esse pedido, eles se vinculavam a um homem caído em desgraça e atraíam para si as suspeitas do regime nazista, mas inscreviam seus nomes na História”.[5]
O primeiro deles é Hans Carl Nipperdey (1895-1968), professor da Universidade de Colônia, onde lecionou Direito Civil, Direito do Trabalho e Direito Comercial. Nipperdey foi um dos coautores da famosa coleção de Direito Civil dirigida por Ludwig Ennecerus, cuja tradução espanhola é muito difundida no Brasil, na edição da prestigiosa Bosch, de Barcelona. Nipperdey criou a teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais entre os particulares (Theorie der unmittelbaren Drittwirkung der Grundrechte), de grande divulgação no país. Após o fim do regime nazista, o governo da República Federal da Alemanha indicou-o como primeiro presidente do Tribunal Federal do Trabalho (Bundesarbeitsgerichts), equivalente brasileiro ao Tribunal Superior do Trabalho. Sua assinatura inaugurava a petição dirigida ao Ministério prussiano e sua ida até Berlim foi um ato de extrema coragem, seja sob a perspectiva da época, seja sob o olhar retrospectivo.
O segundo subscritor foi Heinrich Lehmann (1876-1963), professor e reitor da Universidade de Colônia. Lehmann também é muito conhecido pela condição de coautor da coleção de Direito Civil dirigida por Ludwig Ennecerus. Colega de bancos escolares de Konrad Adenauer, futuro chanceler da Alemanha Federal no pós-guerra, Lehmann conservou essa amizade por toda a vida. Católico praticante, ele integrou a Associação dos Estudantes Católicos. Mecenas e apreciador de música e de Belas-Artes, Lehmann foi homenageado por diversas universidades alemãs no final de sua vida.
Hans Planitz (1882-1954), outro dos peticionantes em favor de Kelsen, ocupou o cargo de reitor da Universidade de Colônia, onde lecionou História do Direito alemão. Durante seu mandato na Reitoria (1929-1930), Planitz posicionou-se firmemente contra as atividades nazistas dentro da instituição. Em um desses episódios, ele impediu a colocação de uma imensa faixa da Associação Nacional-Socialista dos Estudantes dentro do campus. Planitz era um profundo estudioso de Direito medieval alemão, com grandes conhecimentos clássicos. Ele radicou-se em Viena no final da vida. Sofreu restrições em sua carreira universitária, como preço por seu engajamento antinazista, mas conservou seu nome internacionalmente.
Kelsen também foi apoiado por Godehard Josef Ebers (1880-1958), professor de Direito Eclesiástico e reitor da Universidade de Colônia (1932-1933). Ebers sofreu perseguições do regime nazista, especialmente após ter-se recusado a saudar a bandeira com a suástica, em uma solenidade universitária. Sua condição de militante católico e a autoria de discursos em prol da reforma da Constituição de Weimar contra a ascensão do Estado nazista colocaram-no sob suspeita do regime e fizeram-nos sofrer pesadas perseguições. Ele perdeu seu cargo e emigrou para a Áustria, onde passou a lecionar, até que nova sanção política o exautorasse da cátedra universitária em Innsbruck. Ele teve sua pensão cassada e experimentou sérias privações econômicas. Após a guerra, Ebers reconquistou sua posição na universidade e se tornou juiz do Tribunal Constitucional austríaco.
Menos conhecido, Albert Aloysius Egon Coenders (1883–1963) foi professor de Direito Penal e Processual Penal na Universidade de Colônia. E, finalmente, também subscreveu a petição o professor de Direito Penal em Colônia Gotthold Bohne (1890-1957), que ocupou o cargo de reitor por dois mandatos (1949-1950 e 1950-1951). Hans Welzel, o famoso criminalista, foi seu assistente em Colônia.[6]
A História tem a função de dar exemplos. Mesmo em períodos de trevas e de medo, a coragem pode fecundar e imprimir no espírito humano alguma crença de que os valores civilizatórios devem (e podem) prevalecer em face da barbárie. Nos regimes democráticos, são cada vez mais apagados os rumos que distinguem o caminho reto daquele tortuoso e cínico. Sem glórias ou martírios, cabe ao homem deste tempo discernir com maior acuidade. Esse é, contudo, um preço muito baixo para se viver em uma Democracia.

[1] IGLESIAS, Juan. Derecho romano. 12. ed. Barcelona: Ariel, 1999. p. 36-38.
[2]  KELLY, Henry Ansgar. Thomas More’s by Jury: A procedural Review. Conference 7-9 November 2008. Disponível em www.thomasmorestudies.org/.../Kelly2008.pdf -. Acesso em 3.4.2012)
[3] KELSEN, Hans. Autobiografia de Hans Kelsen. Tradução de Gabriel Nogueira Dias e José Ignácio Coelho Mendes Neto. Introdução de Mathias Jestaedt . Estudo introdutório de Otavio Luiz Rodrigues Junior e José Antonio Dias Toffoli. 4. ed. Rio de Janeiro :Forense, 2012. p. 95. 
[4] DIAS TOFFOLI, José Antonio; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Hans Kelsen, o jurista e suas circunstâncias (Estudo introdutório para a edição brasileira da ‘Autobiografia’ de Hans Kelsen). In. KELSEN, Hans. Op. cit. p. XLVI.
[5] DIAS TOFFOLI, José Antonio; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Hans Kelsen, o jurista e suas circunstâncias (Estudo introdutório para a edição brasileira da ‘Autobiografia’ de Hans Kelsen). In. KELSEN, Hans. Op. cit. p. XLVI. 
[6] Essas notas biográficas são formas estendidas de material extraído de: DIAS TOFFOLI, José Antonio; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Hans Kelsen, o jurista e suas circunstâncias (Estudo introdutório para a edição brasileira da ‘Autobiografia’ de Hans Kelsen). In. KELSEN, Hans. Op. cit. p. XLVI. 
Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
Revista Consultor Jurídico, 1º de agosto de 2012

A influência do Código Civil alemão de 1900 (parte 1)

Em uma anotação sobre o Direito Privado Comparado, dois importantes civilistas alemães analisaram os códigos dos países da América Latina. Sobre o Brasil, Hans Karl Nipperdey e Ludwig Enneccerus anotaram que o Código Civil de 1916 seria “mais independente das codificações latino-americanas” (para conhecer melhor esses dois juristas, leia a coluna Os juristas que não traíram a História). Esse reconhecimento da qualidade da cultura jurídico-civilística nacional deu-se na década de 1930, o que o torna ainda mais valioso, na medida em que nossa codificação mal experimentara 15 anos de vigência.[1]
A influência alemã na formação do Direito Civil brasileiro é inegável e deita suas raízes em diferentes momentos de recepção. Os costumes, os institutos e as normas do que hoje se denomina de Alemanha “entraram” para o Direito português, ainda sob o domínio do invasor visigótico, no anoitecer violento e trágico do Império Romano do Ocidente. Posteriormente, houve nova recepção nos tempos medievais do ius commune. No Brasil Colônia muitos desses elementos foram introduzidos por efeito da aplicação das leis portuguesas. No século XIX, Teixeira de Freitas, Coelho Rodrigues e Clóvis Beviláqua contribuíram para essa recepção, o que se deu pelo acesso ou pelo diálogo com o movimento pandectista, liderado por Savigny e seus discípulos.
O Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch — BGB) é o símbolo mais reluzente desse processo de recepção e de influência da cultura jurídica germânica no Brasil, embora não seja o único, evidentemente. É (quase) impossível encontrar um manual, um tratado ou um curso de Direito Civil brasileiro, de algum nível, que desconheça o BGB ou que não cite seus dispositivos. Assim como o homem é ele e suas circunstâncias, as codificações entrelaçam-se com suas circunstâncias históricas e com o momento no qual foram concebidas e aprovadas. Por ser tão relevante o BGB para o Direito brasileiro, esta coluna será dedicada ao processo de elaboração desse que foi o último grande código do século XIX e a contar um pouco da história de seus elaboradores.
O marco inaugural do processo de codificação do Direito Civil do recém-instituído Reich foi a alteração do artigo 4o, 13, da Constituição de 1871, por efeito de uma luta legislativa intensa, que se desdobrou por alguns anos, sob a liderança de Johann von Miquel (1829-1901) e Eduard Lasker (1829-1884). Essa alteração ganhou o nome histórico de Lei Miquel-Lasker.[2] Miquel, um nobre de Hanover, descendente de émigrés (franceses que emigraram fugindo da Revolução Francesa), foi um dos fundadores da Associação Nacional Alemã [Deutscher Nationalverein, organização política liberal e pró-unificação alemã] e, apesar de hanoveriano, não se opôs à anexação de seu reino pela Prússia. Eduard Lasker, de ascendência judaica, fundador do Nationalliberale Partei [Partido Nacional Liberal, uma agremiação pró-unidade alemã], foi o grande líder da reforma constitucional que permitiu a transferência plena da competência legislativa cível para o governo central. Seu lema era que a codificação assegurava a liberdade dos indivíduos.
Há todo um contexto histórico envolvido na elaboração do BGB, que tem como cenário a disputa entre grupos políticos alemães, especialmente os nacional-liberais (e os liberais-radicais), os defensores da aristocracia e o fortíssimo Partido do Centro (Deutsche Zentrumspartei, que durou até 1933), representante dos interesses políticos dos católicos nos territórios unificados. O Zentrum foi o grande opositor da nova codificação, com receio da política bismarckiana conhecida pela expressão Kulturkampf (Luta pela cultura), que pretendia subtrair o novo Estado à influência da Igreja Católica. Uma legislação nacional sobre Direito de Família, que não respeitasse as particularidades dos reinos católicos (Baviera, especialmente) integrantes do novo Reich, era considerada perigosa pelos partidários do Zentrum. A vitória da dupla von Miquel e Lasker resultou de uma “fugaz combinação” de circunstâncias[3], de difícil repetição, pois uniu forças absolutamente díspares como os conservadores e os liberais-radicais.
O respeito da dogmática brasileira pelo BGB não é desacompanhado de referências sobre seu caráter liberal e pelo aparente esquecimento dos pobres.[4] Essa crítica é devedora da obra de Anton Menger von Wolfensgrün (1841-1906), um jurista austro-húngaro que lecionou na Universidade de Viena e ocupou funções políticas importantes no Governo Real e Imperial. Menger é muito conhecido (e citado) por seu clássico livro “Das Bürgerliche Recht und die besitzlosen Volksklassen. Eine Kritik des Entwurfs eines Bürgerlichen Gesetzbuches für das Deutsche Reich” [literalmente, O Direito Civil e as classes populares despossuídas[5]: Uma crítica ao projeto de Código Civil para o Reich alemão], publicada por H. Laupp, de Tübingen, no ano de 1890, que ganhou o título (em espanhol) “O Direito Civil e os Pobres”, versão que é muito difundida no Brasil.[6]
Menger, até por sua origem de classe e sua fidelidade à Monarquia Dual, de quem foi servidor, nunca se filiou a partidos políticos, nem teve militância política. Seus estudos eram ligados ao “socialismo jurídico”, embora seu legado intelectual seja até hoje muito polêmico, até em razão de suas (veementes) críticas ao trabalho de Karl Marx.[7]
De fato, autores como Menger e, na Itália, Enrico Cimbali, deram ênfase a uma transformação social que o ocaso do século XIX começava a deixar entrever e cujo efeito se revelaria de maneira trágica nas décadas iniciais do século XX, com a Revolução Russa e a I Guerra Mundial.
O Direito Civil, por diversas razões, foi o epicentro dessa transformação. Uma passagem de Enrico Cimbali, tão poética quanto impressiva por sua eloquência, consegue captar esse estado de coisas:
“Um desejo profundo de novidade, uma mania febril de reforma em todas as esferas múltiplas da vida, da sciencia, da arte, oprime e agita violentamente as fibras da sociedade moderna. Nenhum sistema, nenhuma instituição, nenhum organismo científico, artístico, social, ainda que tenha o selo e a consagração dos séculos, se considera como inviolável e sagrado. Tudo cai e se transforma, a nossas vistas, sob o martelo inexorável da crítica, sob impulso irresistível de novas necessidades.
Entretanto, como nau encantada a navegar sobre as águas revoltas do oceano, cheio de cadáveres e moribundos, o Direito Civil parece inteiramente insensível a todas essas modificações. Forma coeva a muitas outras, que desapareceram ou se transformaram, o Direito Civil, tal como nos foi transmitido pelo Direito Romano, depois de ter resistido ao torvelinho social da Idade Média, só com mui ligeiras alterações passou para o Direito moderno e parece ainda destinado, tal como nos veio da antiguidade latina, a dirigir as sociedades futuras”.[8]
Mas, seria realmente o Código Civil alemão um texto legislativo liberal? Esse pensamento não contém algumas mistificações e reducionismo histórico censurável? Seria possível transpor esses questionamentos, por exemplo, para a codificação civil brasileira de 1916, como fez o recém-doutor pela Universidade Federal de Pernambuco, Venceslau Tavares Costa Filho?[9]
É precisamente essa questão da qual se cuidará, em sequência, na próxima coluna, tomando-se por base um trabalho de Joachim Rückert, que rediscute muitos consensos sobre o processo de codificação alemã e cuja reprodução se tem dado no Brasil há muito tempo. Talvez há tempo demais.[10]

[1] ENNECCERUS, Ludwig; NIPPERDEY, Hans Carl; KIPP, Theodor; WOLFF, Martin. Tratado de Derecho Civil. 15. rev. por Hans Carl Nipperdey. Traduccion de la 39. ed. alemana. 3. ed.Barcelona: Bosch, 1981. p. 108.
[2] REIS, Carlos David Santos Aarão. A elaboração do BGB : homenagem no centenário do Código Civil alemão. Revista de Informação Legislativa, v. 33, n. 130, p. 121-131, abr./jun. 1996. p. 123.
[3] WIEACKER, Franz. Der Kampf des 19. Jahrhunderts um die Nationalgesetzbücher. In. KASER, Max et alii (Hrsg). Festschrift für Wilhelm Felgentraeger: Zum 70. Geburtstag. Göttingen: O. Schwartz, 1969. S. 409-422.
[4] Alguns exemplos dessa visão do BGB e de sua influência liberal no Brasil: RÊGO, Nelson Melo de Moraes. Da boa-fé objetiva nas cláusulas gerais de direito do consumidor e outros estudos consumeristas. Rio de Janeiro : Gen : Forense, 2009. p. 44; OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Hermenêutica e tutela da posse e da propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006. seção XIV.
[5] A tradução italiana prefere “O Direito Civil e o proletariado”.
[6] Há uma edição argentina (El Derecho Civil y los Pobres. Versión española, revisada y corregida, de Adilfo G. Posada. Buenos Aires :Atalaya, 1947) e outra espanhola, com mesmo tradutor, publicada em 1998, pela editora Comares, de Granada.
[7] MÜLLER, Eckhart. Menger, Anton. In: Neue Deutsche Biographie (NDB). Band 17, Duncker & Humblot, Berlin 1994. p. 71-74.
[8] CIMBALI, Enrico. A nova phase do direito civil em suas relações economicas e sociaes. Porto: Livraria Chardron, 1900. p. 13.
[9] COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Um Código “social” e “impopular”: uma história do processo de codificação civil no Brasil (1822-1916). Tese de Doutorado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2013.
[10] RÜCKERT, Joachim. Das Bürgerliche Gesetzbuch - ein Gesetzbuch ohne Chance? Juristenzeitung (JZ), 2003, S. 749-760.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo).
Revista Consultor Jurídico, 26 de junho de 2013

quinta-feira, 20 de junho de 2013

quarta-feira, 19 de junho de 2013

El Govern plantea regular formas alternativas de acceso a la vivienda (La Vanguardia (1ª edición), Jun 19 2013, Page8)




El Govern plantea regular formas alternativas de acceso a la vivienda

La Vanguardia (1ª edición)
Jun 19 2013

La Generalitat aprobó ayer iniciar los trámites previos a un anteproyecto de ley para regular nuevas formas alternativas para garantizar y favorecer el acceso a la vivienda. La iniciativa pretende tener instrumentos más flexibles a la hora de definir......read more...

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sexta-feira, 14 de junho de 2013

Ensino a distância: os denominados MOOCS e o ensino jurídico

Uma das novidades na internet é a proliferação dos "massive open online courses" (MOOCS). São cursos (em regra gratuitos) oferecidos via internet por renomadas instituições de ensino. Os portais mais famosos nos EUA são o Coursera, EDX e Udacity. No Brasil há o Veduca.
O prof. Philip G. Schrag, da Georgetown University, acaba de publicar um interessante estudo sobre o impacto dos MOOCS no ensino jurídico. Vejamos o resumo do trabalho:

MOOCs and Legal Education: Valuable Innovation or Looming Disaster?

 Massive open online courses (MOOCs) have spread across the landscape of higher education like an invasive plant species. Although few people had heard of MOOCs before 2012, these internet-based courses, taught by university professors, are now routinely offered simultaneously to tens of thousands or in some cases, hundreds of thousands of people. Most MOOCs are still provided free of charge, but the two companies and one non-profit entity that promote MOOCs and provide the software have recently created partnerships with institutions of higher education in order to realize substantial revenues by offering MOOCs for academic credit to tuition-paying students at colleges and universities. Despite resistance from professors at some institutions, MOOCs for credit are proliferating rapidly. This development has great significance for the future of legal education, because most law schools are experiencing an economic crisis and are searching for ways to cut costs and lower tuition so that they can fill their classes and remain viable. Already, some law schools are offering academic credit for distance learning, within limits permitted by the Section of Legal Education of the American Bar Association — limits that may soon be relaxed. Within ten years, MOOCs could replace traditional law school classes altogether, except at a few elite law schools that produce lawyers to serve large corporations and wealthy individuals. However, most law schools might survive by embracing rather than resisting internet-based learning. They could cut costs by reducing faculty and staff positions, using MOOCs for the delivery of most of the legal information that students need, hiring part-time lawyers to help students with exercises to supplement the MOOCs, and concentrating the remaining full-time faculty on first-semester offerings, writing seminars, and clinics. Sadly, the result will be a watered-down form of legal education compared to the three years of interactive experiences that law schools have offered students for the last century. But it may be the only way in which most law schools can survive. 

para download, vide http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2278261&download=yes

quinta-feira, 13 de junho de 2013

interpretação contratual contra stipulatorem

DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO DE CLÁUSULA DE CONTRATO DE SEGURO DE SAÚDE DA FORMA MAIS FAVORÁVEL À PARTE ADERENTE.

No caso em que o contrato de seguro de saúde preveja automática cobertura para determinadas lesões que acometam o filho de “segurada” nascido durante a vigência do pacto, deve ser garantida a referida cobertura, não apenas ao filho da “segurada titular”, mas também ao filho de “segurada dependente”. Tratando-se, nessa hipótese, de relação de consumo instrumentalizada por contrato de adesão, as cláusulas contratuais, redigidas pela própria seguradora, devem ser interpretadas da forma mais favorável à outra parte, que figura como consumidora aderente, de acordo com o que dispõe o art. 47 do CDC. Assim, deve-se entender que a expressão “segurada” abrange também a “segurada dependente”, não se restringindo à “segurada titular”. Com efeito, caso a seguradora pretendesse restringir o campo de abrangência da cláusula contratual, haveria de especificar ser esta aplicável apenas à titular do seguro contratado. REsp 1.133.338-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 2/4/2013.

Contratos imobiliários. Os "contratos de gaveta" e a legitimidade do cessionário para discutir as cláusulas contratuais.

Conforme se observa das decisões abaixo, o "gaveteiro" somente tem legitimidade para discutir as cláusulas contratuais se o contrato for anterior a 25.10.1996 e tiver cobertura do FCVS. Faltando um destes requisitos o STJ reconheceu a ilegitimidade ad causam do cessionário.


 DIREITO CIVIL. LEGITIMIDADE DO CESSIONÁRIO PARA DISCUTIR EM JUÍZO QUESTÕES ENVOLVENDO MÚTUO HABITACIONAL COM COBERTURA DO FCVS CELEBRADO ATÉ 25/10/1996. RECURSO REPETITIVO (ART. 543-C DO CPC E RES. 8/2008-STJ).

Tratando-se de contrato de mútuo habitacional garantido pelo Fundo de Compensação de Variações Salariais, celebrado até 25/10/1996 e transferido sem a intervenção da instituição financeira, o cessionário possui legitimidade para discutir e demandar em juízo questões pertinentes às obrigações assumidas e aos direitos adquiridos. Isso porque, nos termos da legislação pertinente, é possível a regularização do referido contrato de cessão de direitos — conhecido como “contrato de gaveta” —, o que implica afirmar que, nesses casos, o cessionário é equiparado ao mutuário, possuindo, portanto, legitimidade para discutir e demandar em juízo questões pertinentes às obrigações assumidas e aos direitos adquiridos. Com efeito, o art. 20, caput, da Lei 10.150/2000 estabelece que as “transferências no âmbito do SFH, à exceção daquelas que envolvam contratos enquadrados nos planos de reajustamento definidos pela Lei 8.692, de 28 de julho de 1993, que tenham sido celebradas entre o mutuário e o adquirente até 25 de outubro de 1996, sem a interveniência da instituição financiadora, poderão ser regularizadas” nos termos daquela lei. Nesse contexto, os arts. 22 da Lei 10.150/2000 e 2º da Lei 8.004/1990 (com redação dada pela Lei 10.150/2000) determinam que, diante da existência de cláusula de cobertura de eventual saldo devedor residual pelo FCVS, a transferência se dá mediante a substituição do devedor, mantidas para o novo mutuário as mesmas condições e obrigações do contrato original. Cumpre destacar, ademais, que essa possibilidade de equiparação do cessionário à condição de mutuário se deve ao fato de que, no caso de contratos com cobertura do FCVS, o risco imposto à instituição financeira é apenas relacionado ao pagamento das prestações pelo cessionário, porquanto o saldo devedor residual será garantido pelo Fundo. Precedentes citados: REsp 986.873-RS, Segunda Turma, DJ 21/11/2007, e REsp 627.424-PR, Primeira Turma, DJ 28/5/2007. REsp 1.150.429-CE, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 25/4/2013. 
DIREITO CIVIL. ILEGITIMIDADE DO CESSIONÁRIO PARA DISCUTIR EM JUÍZO QUESTÕES ENVOLVENDO MÚTUO HABITACIONAL SEM COBERTURA DO FCVS CELEBRADO ATÉ 25/10/1996. RECURSO REPETITIVO (ART. 543-C DO CPC E RES. 8/2008-STJ).

Tratando-se de contrato de mútuo habitacional sem cobertura do Fundo de Compensação de Variações Salariais, celebrado até 25/10/1996, transferido sem a anuência do agente financiador e fora das condições estabelecidas pela Lei 10.150/2000, o cessionário não tem legitimidade ativa para ajuizar ação postulando a revisão do respectivo contrato. Isso porque, nos termos da legislação pertinente, não é possível a regularização do referido contrato de cessão de direitos — conhecido como “contrato de gaveta” —, o que implica afirmar que, nesses casos, o cessionário não pode ser equiparado ao mutuário e, portanto, não possui legitimidade para postular em juízo a revisão do respectivo contrato. Com efeito, o art. 20, caput, da Lei 10.150/2000 estabelece que as “transferências no âmbito do SFH, à exceção daquelas que envolvam contratos enquadrados nos planos de reajustamento definidos pela Lei 8.692, de 28 de julho de 1993, que tenham sido celebradas entre o mutuário e o adquirente até 25 de outubro de 1996, sem a interveniência da instituição financiadora, poderão ser regularizadas” nos termos daquela lei. Contudo, os arts. 23 da Lei 10.150/2000 e 3º da Lei 8.004/1990 (com redação dada pela Lei 10.150/2000) determinam que, diante da inexistência de cláusula de cobertura de eventual saldo devedor residual pelo FCVS, a transferência de direitos e obrigações referentes ao imóvel financiado pelo SFH não é automática e somente ocorrerá a critério da instituição financeira, que estabelecerá novas condições para o ajuste, de modo que o terceiro adquirente só terá legitimidade ativa para ajuizar ação relacionada ao mencionado contrato de cessão se o agente financeiro tiver concordado com a transação. Cumpre destacar, ademais, que essas transferências dependem da anuência da instituição financiadora, segundo seu critério e mediante novas condições financeiras, na medida em que a lei não impôs a ela o risco de arcar com o saldo devedor residual da transação — diferentemente do que ocorreria caso houvesse cobertura do FCVS, situação em que o saldo devedor seria garantido pelo Fundo. Precedente citado: REsp 1.171.845-RJ, Quarta Turma, DJe 18/5/2012. REsp 1.150.429-CE, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 25/4/2013.
 
DIREITO CIVIL. ILEGITIMIDADE DO CESSIONÁRIO PARA DISCUTIR EM JUÍZO QUESTÕES ENVOLVENDO MÚTUO HABITACIONAL, COM OU SEM COBERTURA DO FCVS, CELEBRADO APÓS 25/10/1996. RECURSO REPETITIVO (ART. 543-C DO CPC E RES. 8/2008-STJ).

Tratando-se de cessão de direitos sobre imóvel financiado no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação realizada após 25/10/1996, a anuência da instituição financeira mutuante é indispensável para que o cessionário adquira legitimidade ativa para requerer revisão das condições ajustadas, tanto para os contratos garantidos pelo Fundo de Compensação de Variações Salariais como para aqueles sem a garantia mencionada. Isso porque, nos termos da legislação pertinente, não é possível a regularização do referido contrato de cessão de direitos — conhecido como “contrato de gaveta” —, o que implica afirmar que, nesses casos, o cessionário não pode ser equiparado ao mutuário e, portanto, não possui legitimidade para postular em juízo a revisão do respectivo contrato. Com efeito, o art. 20, caput, da Lei 10.150/2000 estabelece que as “transferências no âmbito do SFH, à exceção daquelas que envolvam contratos enquadrados nos planos de reajustamento definidos pela Lei 8.692, de 28 de julho de 1993, que tenham sido celebradas entre o mutuário e o adquirente até 25 de outubro de 1996, sem a interveniência da instituição financiadora, poderão ser regularizadas” nos termos daquela lei. Precedentes citados: AgRg no Ag 1.006.713-DF, Quarta Turma, DJe 22/2/2010; REsp 721.232-PR, Primeira Turma, DJe 13/10/2008, e AgRg no REsp 980.215-RJ, Segunda Turma, DJe 2/6/2008. REsp 1.150.429-CE, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 25/4/2013.

terça-feira, 11 de junho de 2013

jurisprudência do STJ sobre outorga conjugal

O Código Civil de 2002 introduziu algumas mudanças no regime de proteção dos bens do casal. Uma delas foi a extensão para o aval da necessidade de outorga uxória ou marital, já exigida para a fiança, por exemplo.
Esse instituto é a autorização do cônjuge para atos civis do parceiro que tenham implicações significativas no patrimônio do casal. Conheça a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre esse dispositivo:
Fiança em locação
O caso mais recorrente na jurisprudência é a fiança dada a locatário por um dos cônjuges sem a anuência do outro. Em regra, para a jurisprudência majoritária do STJ, esses casos geram nulidade plena da garantia. É o que retrata a Súmula 332, de 2008: “A fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica a ineficácia total da garantia.”
Esse entendimento já era aplicado na vigência do Código Civil de 1916, de que é exemplo o Agravo de Instrumento 2.798, julgado em maio de 1990. O STJ tem seguido essa linha desde então, como no Recurso Especial 1.165.837, julgado em 2011.
Boa-fé
No entanto, nesse recurso, como em outros mais recentemente, o STJ vem discutindo se a má-fé na garantia viciada pode relativizar a nulidade. Nesse caso, o fiador havia se declarado divorciado, quando na verdade era casado. Na cobrança do aluguel afiançado, seu cônjuge alegou nulidade da garantia, porque feita sem sua outorga.
O juiz entendeu que o fiador agiu de má-fé e a simples anulação por inteiro da fiança beneficiaria o garantidor, que teria agido com manifesta deslealdade contratual. Por isso, manteve a execução, reservando apenas o direito de meação do cônjuge.
O Tribunal de Justiça manteve a decisão. No STJ, a ministra Laurita Vaz afirmou que mudar as conclusões da corte local sobre a má-fé do fiador, para afastar parcialmente o vício na fiança, exigiria reexame de provas, o que não poderia ser feito pelo Tribunal.
Mas a 5ª Turma, por maioria, decidiu de forma contrária. Para os ministros, o ato do fiador poderia ser ilícito e até mesmo criminoso, mas não afastava a condição de validade do ato jurídico. Assim, sem a outorga, a fiança prestada pelo cônjuge não poderia ter qualquer eficácia jurídica. Caberia ainda ao locatário exigir e conferir os documentos que embasavam o negócio jurídico.
Junto e separado
A 6ª Turma, porém, já relativizou a nulidade da fiança em caso idêntico, julgado no Recurso Especial 1.095.441. O fiador declarou-se separado, mas vivia em união estável. Na execução da garantia do aluguel, sua companheira alegou a nulidade da fiança porque não contava com sua anuência.
Para o ministro Og Fernandes, nesse caso, seria impossível aplicar a súmula, porque fazê-lo iria contrariar as conclusões fáticas das instâncias ordinárias e beneficiar o fiador que agiu com falta da verdade. Além disso, ele destacou que a meação da companheira foi garantida nas decisões impugnadas, o que afastava qualquer hipótese de contrariedade à lei.
Legitimidade
Em qualquer caso, o STJ entende que somente o cônjuge que não deu a outorga pode alegar a nulidade da fiança. Ou seja: o fiador que não buscou a anuência do cônjuge não pode alegar sua falta para eximir-se da obrigação. É o que foi decidido nos Recursos Especiais 772.419 e 749.999, por exemplo.
No Recurso Especial 361.630, o STJ também entendeu que o cônjuge que não deu a autorização tem legitimidade ativa para a ação rescisória, mesmo quando não tenha integrado a ação original.
Referindo-se ainda ao Código de 1916, a decisão da ministra Laurita Vaz afirma que a meeira de bem penhorado para garantir execução de aluguel tem interesse jurídico — e não apenas econômico — na desconstituição do julgado.
Autorização dispensada
Por outro lado, no Recurso Especial 1.061.373, o STJ entendeu ser irrelevante a ausência de outorga conjugal no caso de o aluguel afiançado ter beneficiado a unidade familiar.
De modo similar, no Agravo de Instrumento 1.236.291, o STJ afirmou que, sob a vigência do Código Civil de 1916, a garantia cambial dispensa a outorga. Assim, termo de confissão de dívida e promissória vinculada firmados antes do novo código são garantidas por aval e não fiança, dispensando a autorização.
Ainda no regime do Código de 1916, o STJ mitigou a exigência da autorização conjugal no Recurso Especial 900.255. Nesse caso, o Tribunal entendeu que a fiança concedida sem a participação da esposa do garantidor deveria ser validada.
Isso porque a cônjuge do fiador encontrava-se em local incerto e desconhecido havia mais de 13 anos. No recurso, a esposa, que havia abandonado o lar em 1982, questionava a penhora do imóvel — que resguardara sua meação.
A execução do aluguel em atraso teve início em 1995 e a declaração de ausência veio em 1998, após três anos da penhora e arrematação do imóvel pertencente ao casal, por terceiro de boa-fé e nos autos de execução do contrato de locação garantido pela fiança.
Solidariedade
O STJ também já entendeu que, se as instâncias ordinárias interpretaram que o contrato não trata de garantia, mas de obrigação solidária assumida pelo cônjuge, não há falar em outorga.
No Recurso Especial 1.196.639, o STJ afirmou ser impertinente a discussão sobre a autorização, já que o tribunal local negou a existência de fiança. Conforme afirmou a corte ordinária, a solidariedade a que se obrigou o cônjuge da recorrente dizia respeito a obrigação da vida civil sem qualquer restrição na lei, podendo ser praticada livremente por qualquer dos cônjuges.
Fiança e outorga
Para o STJ, a fiança deve ser ainda expressa e escrita, sendo sua interpretação restrita. Por isso, no Recurso Especial 1.038.774, o tribunal entendeu que a mera assinatura do cônjuge no contrato não implica sua solidariedade.
Ela alegava ter assinado o ajuste apenas para fim de outorga uxória e não para se responsabilizar também pela dívida. Seu nome nem mesmo constava na cláusula contratual especificamente referente aos fiadores. O ministro Napoleão Nunes Maia Filho, que relatou o caso, citou Sílvio Venosa para esclarecer que o consentimento marital não se confunde com fiança conjunta.
“O cônjuge pode autorizar a fiança. Preenche-se desse modo a exigência legal, mas não há fiança de ambos: um cônjuge afiança e o outro simplesmente autoriza, não se convertendo em fiador”, afirma o doutrinador citado.
“Os cônjuges podem, por outro lado, afiançar conjuntamente. Assim fazendo, ambos colocam-se como fiadores. Quando apenas um dos cônjuges é fiador, unicamente seus bens dentro do regime respectivo podem ser constrangidos. Desse modo, sendo apenas fiador o marido, com mero assentimento da mulher, os bens reservados desta, por exemplo, bem como os incomunicáveis, não podem ser atingidos pela fiança”, conclui o civilista.
O caso julgado pelo STJ no Recurso Especial 690.401, porém, é inverso. Nele, o nome do cônjuge constava expressamente na cláusula sobre a fiança, afirmando que ambos do casal seriam “fiadores e principais pagadores, assumindo solidariamente entre si e com o locatário o compromisso de bem fielmente cumprir o presente contrato”.
Testemunho e outorga
De modo similar, o STJ também entendeu que o cônjuge que apenas assina o contrato como testemunha não dá outorga conjugal de fiança. No caso analisado no Recurso Especial 1.185.982, o tribunal local afirmava que a cônjuge não podia alegar desconhecimento dos termos do contrato que testemunhara, sendo implícita a autorização para a fiança.
Porém, para a ministra Nancy Andrighi, a assinatura do cônjuge sobreposta ao campo destinado às testemunhas instrumentárias do contrato não fazem supor sua autorização para a fiança do marido. Ela apenas expressaria a regularidade formal do instrumento particular de locação firmado entre locador e afiançado. Isso não evidenciaria sua compreensão sobre o alcance da obrigação assumida pelo marido como fiador.
“A fiança é um favor prestado a quem assume uma obrigação decorrente de disposição contratual, de maneira que sempre estará restrita aos encargos expressa e inequivocamente assumidos pelo fiador. Se houver incerteza quanto a algum aspecto essencial do pacto fidejussório, como a outorga marital, não é possível proclamar a eficácia da garantia”, asseverou a relatora.
Separação absoluta
No Recurso Especial 1.163.074, o STJ definiu qual regime de bens dispensa a outorga. É que o artigo que trata da autorização marital afirma que ela é dispensada no caso de separação absoluta, sem esclarecer se em tal caso se insere tanto a separação de bens consensual quanto a obrigatória, imposta por lei.
Em votação unânime, a 3ª Turma entendeu que apenas o regime consensual de separação atrai a dispensa de outorga. Conforme a decisão, a separação de bens adotada por livre manifestação da vontade corresponderia a uma antecipação da liberdade de gestão dos bens de cada um, afastando qualquer expectativa de um em relação ao patrimônio do outro.
“A separação de bens, na medida em que faz de cada consorte o senhor absoluto do destino de seu patrimônio, implica, de igual maneira, a prévia autorização dada reciprocamente entre os cônjuges, para que cada qual disponha de seus bens como melhor lhes convier”, explicou na ocasião o ministro Massami Uyeda, hoje aposentado.
“O mesmo não ocorre quando o estatuto patrimonial do casamento é o da separação obrigatória de bens. Nestas hipóteses, a ausência de comunicação patrimonial não decorre da vontade dos nubentes, ao revés, de imposição legal”, concluiu. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.
Revista Consultor Jurídico, 10 de junho de 2013

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Globo terá de pagar R$ 50 mil por violar direito ao esquecimento

STJ, 5/6/2013


Acompanhando o voto do relator, ministro Luis Felipe Salomão, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu o direito ao esquecimento para um homem inocentado da acusação de envolvimento na chacina da Candelária e posteriormente retratato pelo programa Linha Direta, da TV Globo, anos depois de absolvido de todas as acusações.

A Turma concluiu que houve violação do direito ao esquecimento e manteve sentença da Justiça fluminense que condenou a emissora ao pagamento de indenização no valor R$ 50 mil. “O quantum da condenação imposta nas instâncias ordinárias não se mostra exorbitante, levando-se em consideração a gravidade dos fatos”, afirmou o relator, que também considerou a “sólida posição financeira” da emissora.

O homem foi apontado como coautor da chacina da Candelária, sequência de homicídios ocorridos em 23 de julho de 1993, no Rio de Janeiro, mas foi absolvido por unanimidade. Diz ele que, em 2006, recusou pedido de entrevista feito pela TV Globo, mas mesmo assim, o programa veiculado em junho de 2006 citou-o como um dos envolvidos na chacina, posteriormente absolvido.

Ele ingressou na Justiça com pedido de indenização, sustentando que sua citação no programa levou a público, em rede nacional, situação que já havia superado, reacendendo na comunidade onde reside a imagem de chacinador e o ódio social, e ferindo seu direito à paz, anonimato e privacidade pessoal. Alegou, ainda, que foi obrigado a abandonar a comunidade para preservar sua segurança e de seus familiares.

Fatos públicos
O juízo da 3ª Vara Civil da Comarca do Rio de Janeiro julgou o pedido de indenização improcedente, mas a sentença foi reformada em grau de apelação e mantida em julgamento de embargos infringentes e de embargos de declaração.

A TV Globo recorreu ao STJ, sustentando que não houve invasão à privacidade do autor, pois os fatos noticiados já eram públicos e fartamente discutidos na sociedade, e que a emissora se limitou a narrar os fatos ocorridos, sem qualquer ofensa pessoal.

Segundo a emissora, a circunstância de a pessoa se relacionar com a notícia ou com fato histórico de interesse coletivo já é suficiente para mitigar seu direito à intimidade, tornando lícita a divulgação de seu nome e de sua imagem, independentemente de autorização.

Esquecimento
Para o ministro Luis Felipe Salomão, a ocultação do nome e da fisionomia do autor da ação não macularia sua honra nem afetaria a liberdade de imprensa.

"Muito embora tenham as instâncias ordinárias reconhecido que a reportagem mostrou-se fidedigna com a realidade, a receptividade do homem médio brasileiro a noticiários desse jaez é apta a reacender a desconfiança geral acerca da índole do autor, que, certamente, não teve reforçada sua imagem de inocentado, mas sim a de indiciado", afirmou em seu voto.

Citando precedentes e doutrinas, o ministro ressaltou que o réu condenado ou absolvido pela prática de um crime tem o direito de ser esquecido.

“Se os condenados que já cumpriram a pena têm direito ao sigilo de folha de antecedentes, assim também à exclusão dos registros da condenação no instituto de identificação, por maiores e melhores razões aqueles que foram absolvidos não podem permanecer com esse estigma, conferindo-lhes a lei o mesmo direito de serem esquecidos”, disse.

Segundo o relator, a despeito de a chacina da Candelária ter se transformado em fato histórico – “que expôs as chagas do país ao mundo, tornando-se símbolo da precária proteção estatal conferida aos direitos humanos da criança e do adolescente em situação de risco” –, a fatídica história poderia ter sido contada de forma fidedigna sem que para isso a imagem e o nome do autor precisassem ser expostos em rede nacional.

Consumidor não deve responder sem limites por honorário advocatício em cobrança extrajudicial

STJ, 05/06/2013 - 08h55



A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou abusiva a cláusula contratual que prevê a imputação, ao devedor em mora, de responsabilidade ampla e sem limites pelo pagamento de honorários advocatícios extrajudiciais.

No caso em questão, o Instituto de Defesa do Consumidor do Amapá (Procon/AP) ajuizou ação civil pública contra a União das Faculdades de Macapá (Fama) por exigir honorários advocatícios em cobrança administrativa de alunos inadimplentes. A Associação Educacional da Amazônia (Asseama) ingressou na ação como interessada.

O juízo de primeiro grau reconheceu que a cobrança extrajudicial de dívidas de consumidores não enseja o pagamento de honorários advocatícios contratados facultativamente pelo credor.

A sentença foi parcialmente reformada pelo Tribunal de Justiça do estado, que aplicou o artigo 395 do Código Civil (CC) para reconhecer a licitude da contratação de cláusula expressa que imponha ao consumidor em mora o pagamento das despesas decorrentes de honorários advocatícios, mesmo que a cobrança seja efetivada pela via extrajudicial.

O Procon recorreu ao STJ reiterando que tal cobrança é abusiva e viola o artigo 51, XII, do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Sustentou que a cláusula de imputação de responsabilidade pelo pagamento de honorários advocatícios decorrentes de cobrança de débitos caracteriza ilícita transferência de ônus decorrente do risco do negócio para o consumidor. Diante da nulidade, requereu que a cláusula fosse retirada dos contratos.

A Fama contestou os argumentos. Para ela, o afastamento da possibilidade de contratação da responsabilidade do devedor em mora pelos honorários advocatícios contraria expressa disposição legal do artigo 395 do CC.

Contrato de adesão

A relatora do recurso no STJ, ministra Nancy Andrighi, reconheceu que os artigos 389, 395 e 404 do CC de 2002 inserem expressamente a possibilidade de restituição de valores relativos a honorários advocatícios, independentemente de previsão contratual. Contudo, ressaltou que o caso em análise envolve contrato consumerista por adesão, em que o espaço negocial de ambas as partes é limitado.

Segundo a relatora, o artigo 51, XII, do CDC, ao disciplinar o tratamento conferido às cláusulas abusivas em contratos de consumo, prevê de forma expressa a nulidade das cláusulas contratuais que “obriguem o consumidor a ressarcir os custos de cobrança de sua obrigação, sem que igual direito seja conferido ao consumidor”.

“Portanto, para a justa solução da presente controvérsia, deve-se analisar o atendimento e a relação dos honorários advocatícios com sua finalidade específica, para que se compreendam os exatos limites do adequado exercício do direito”, afirmou em seu voto.

Prestação de serviço
Para a ministra Nancy Andrighi, os valores referentes à remuneração profissional do advogado somente têm cabimento quando se verifica a efetiva prestação de serviço profissional, conforme o Enunciado 161 do Conselho da Justiça Federal.

“Por consequência lógica, afasta-se a cobrança de honorários advocatícios quando não houver prestação de qualquer serviço que se adeque àqueles tipicamente previstos na legislação, tais como os atos de mera cobrança por telefone, correspondências físicas ou eletrônicas e outros meios semelhantes”, enfatizou.

A ministra admitiu a possibilidade de cobrança de honorários contratuais decorrentes de contrato de prestação de serviços advocatícios extrajudiciais, desde que a efetiva contratação de advogado seja estritamente necessária após tentativas amigáveis frustradas, e da comprovação da efetiva prestação de serviços privativos de advogado, o que afasta sua incidência para serviços gerais de cobrança administrativa.

Na hipótese dos autos, concluiu a ministra, uma vez que o contrato previu, de forma ampla e ilimitada, a possibilidade de ressarcimento dos honorários, bastando apenas que o consumidor esteja inadimplente, “tem-se caracterizada a abusividade da cláusula contratual, que deverá ser afastada, nos termos do artigo 46 do CDC”.

Assim, por unanimidade, a Turma deu provimento ao recurso especial do Procon para reconhecer como abusiva a cláusula contestada ante o descumprimento dos limites expostos no voto da relatora.