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sexta-feira, 20 de junho de 2014

Cláusula penal e redução de ofício pelo juiz

Cláusula penal e redução de ofício pelo juiz – Parte 1.

José Fernando Simão

Publicado no Carta Forense - 05/2014


Em mais uma acalorada discussão, nosso grupo virtual de debates jurídicos coordenado pelo Prof. Flávio Tartuce, tratou do seguinte tema: a redução da cláusula penal pelo juiz, nos termos do art. 413 do Código Civil, deve se realizar de ofício?


De início, cabe lembrar o conceito de cláusula penal que, popularmente, é denominada multa contratual. É a obrigação acessória a um contrato, pela qual o devedor se obriga a uma prestação determinada no caso de descumprimento do contrato ou de qualquer uma de suas cláusulas.


Nota-se, logo, que a palavra multa tem mais de uma acepção, razão pela qual om ideal é a utilização do termo cláusula penal na redação do contrato. A astreinte, ou multa cominatória, por exemplo, não se confunde com a cláusula penal. O caráter coercitivo da multa cominatória é evidente. Substitui o castigo físico do direito antigo, já que ninguém pode ser coagido a prestar um fato (nemo potest precise cogi ad factum)


A função da cláusula penal é dúplice: i) estimular o devedor a cumprir sua obrigação, tornando mais onerosa à prestação e ii) pré-fixação ou pré-liquidação das perdas e danos. A cláusula penal libera o credor do ônus de provar os prejuízos sofridos, pois gera presunção absoluta de dano (art. 416, caput, do CC/02).


Seu caráter é acessório e, por isso, a cláusula penal pode ser estipulada conjuntamente ou em ato posterior à obrigação principal (art. 409 do CC/02). Como corolário da acessoriedade, a nulidade da obrigação principal acarreta a nulidade da cláusula penal, mas o contrário não é verdadeiro. Nulo o acessório, o principal mantém-se válido (utile per inutile non vitiatur).

São duas as espécies de cláusula penal:


i) compensatória: é aquela aplicada para a hipótese de descumprimento absoluto da obrigação (ex: se o inquilino desocupar o imóvel antes do fim do prazo locatício, paga multa de 3 aluguéis). Nessa hipótese, há uma alternatividade: ou se exige a prestação ou a cláusula penal.
ii) moratória: aplica-se às hipóteses de mora, ou de inadimplemento em que a prestação ainda é útil ao credor (art. 394 do CC/02 - ex: se o inquilino não pagar o aluguel no vencimento pagará multa de 10%). Nessa hipótese, há uma cumulatividade, pois paga-se a prestação acrescida da cláusula penal.


Sobre os limites da cláusula penal temos uma regra geral e algumas regras especiais.


a) Limitação decorrente da regra geral (art. 412 do CC/02): o valor da cláusula penal não pode exceder o valor da obrigação principal, sob pena de se tornar fonte de enriquecimento sem causa. A lógica da regra é evidente. Se a cláusula penal contém uma presunção absoluta de dano, ou seja, é devida ainda que não exista prejuízos, seu valor não pode exceder ao da obrigação principal. Se assim fosse haveria uma autorização do Código Civil ao enriquecimento injustificado do credor


Há, no próprio Código Civil, uma exceção. A cláusula penal, em regra, é o máximo da indenização a ser pleiteada. Entretanto, se houver previsão contratual ressalvando o direito de cobrança dos prejuízos suplementares, o valor da multa será o mínimo (art. 416, parágrafo único, do CC/02). Nessa hipótese, o credor prova o montante total de seus prejuízos, abrindo mão da vantagem da presunção de dano. Provando o credor que o valor total dos prejuízos é maior que o valor da multa contratada, terá direito à indenização pelos prejuízos excedentes.

Note-se que a possibilidade de o credor realizar tal prova necessita de expressa previsão contratual. No silencia do contrato, prevalece apenas o valor da cláusula penal


b) Limitação decorrente das regras especiais. Há alguns dispositivos, quer seja por previsão do Código Civil, quer seja em decorrência de leis especiais, que também geram limitação do valor da cláusula penal. Nestas hipóteses, havendo excesso, este deve ser desconsiderado (ineficácia do excesso), prevalecendo o limite imposto por lei para a cláusula penal.


b.1) art. 9° da Lei da Usura (Decreto 22.626/33): nos contratos de mútuo, a cláusula penal não poderá ser superior a 10% do valor da dívida;


b.2) Art. 52, §1° do CDC: O dispositivo prevê que a multa de mora não pode ser superior a 2% do valor da prestação. Esse dispositivo não se aplica apenas aos contratos de empréstimo (caput do art. 52), mas a toda e qualquer relação de consumo[1] . Nesse sentido temos:


" A jurisprudência deste Tribunal Superior já consolidou o entendimento de que a redução da multa moratória para 2% prevista no art. 52, § 1º, do Código de Defessa do Consumidor - CDC aplica-se às relações de consumo de natureza contratual.  Assim, os contratos de prestação de serviços de fornecimento de água, por envolver relação de consumo, estão sujeitos à regra do § 1º do citado artigo. (AgRg no REsp 1433498/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/04/2014, DJe 07/04/2014)"


b.3) Limitação da cláusula penal em matéria condominial - art. 1336, §1° do Código Civil. A Lei n° 4591/64 permitia que a multa fosse de até 20% e a disposição foi revogada pelo Código Civil. Assim, decidiu o STJ reiteradamente que para as taxas condominiais vencidas até 11/01/03, aplica-se a multa prevista na Convenção, de até 20%, já para as demais, o limite de 2% prevalece [2].


A questão que coloca, então, é a seguinte. Caso a cláusula penal esteja fixada pelas partes dentro dos limites da regra geral do artigo 412 do Código Civil e das limitações constantes em regras especiais pode o magistrado reduzir seu valor?


Essa é a questão que responderemos na nossa próxima coluna da Carta forense.

 


[1] "Ação revisional de "Instrumento Particular de Compra e Venda, Mútuo e Hipoteca" - Aplicação da Tabela Price que não implica anatocismo - Cobrança de juros que observou os limites legais - Atualização do saldo devedor feita adequadamente - Multa moratória, porém, que deve ser limitada a 2%, conforme o artigo 52, §1º do CDC – Recurso provido em parte." (TJ/SP, Apelação nº 0105449-75.2006.8.26.0053 7ª Câmara de Direito Privado, Relator LUIS MARIO GALBETTI, j. 04.09.2013)

[2] "A multa por atraso prevista na convenção de condomínio, que tinha por limite legal máximo o percentual de 20% previsto no art. 12, parágrafo 3º, da Lei n. 4.591/64, vale para as prestações vencidas na vigência do diploma que lhe dava respaldo, sofrendo automática modificação, no entanto, a partir da revogação daquele teto pelo art. 1.336, parágrafo 1º, em relação às cotas vencidas sob a égide do Código Civil atual" (REsp 746.589/RS, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 15/08/2006).

- See more at: http://www.professorsimao.com.br/artigos/artigo.aspx?id=183#sthash.wT4mrCsM.dpuf

 

Cláusula penal e redução de ofício pelo juiz - Parte 2

02/06/2014 por José Fernando Simão

Em nossa última coluna da Carta Forense fizemos algumas considerações a respeito do conceito de cláusula penal, suas espécies, e limitações impostas pelo Código Civil e algumas leis especiais.

Cabe, agora, responder a pergunta que foi lançada em nosso grupo virtual de debates jurídicos coordenado pelo Prof. Flávio Tartuce: a redução da cláusula penal pelo juiz, nos termos do art. 413 do Código Civil, deve se realizar de ofício?

A questão passa pela redação do artigo 413 do atual Código Civil que, contrariamente ao que dispunha o art. 924 do Código Civil de 1916 utiliza o verbo "dever" e não "poder". Comparemos os dispositivos

 

Código Civil de 1916

Código Civil de 2002

Art.924. Quando se cumprir em parte a obrigação, poderá o juiz reduzir proporcionalmente a pena estipulada para o caso de mora, ou de inadimplemento.

Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.

 

Pela redação do antigo Código Civil, havia para o juiz uma faculdade: reduzir ou não a cláusula quando a obrigação tivesse sido cumprida em parte. Fato é que para se evitar enriquecimento injustificado, a redução acabava ocorrendo como regra.

Imaginemos um contrato de locação prevendo que, na hipótese de o inquilino desocupar o imóvel antes do término do prazo avençado, ele paga a multa correspondente a três aluguéis. Trata-se de cláusula penal compensatória. Se a multa foi avençada para a hipótese de descumprimento total das prestações, o cumprimento parcial exige do magistrado a redução do valor da pena. Se o locatário aluga uma casa, por 30 meses, e lá permanece um mês, desocupando o imóvel, sua multa não pode ser igual àquela imposta ao locatário que permanecer por 29 meses.

A redação do art. 413 impõe ao juiz a redução da cláusula penal. "A penalidade deve ser reduzida". Isso porque se a lei deixasse a critério do julgador a redução, em situação extrema, a decisão poderia ser fonte de enriquecimento injustificado e de quebra da isonomia. Imaginemos dois locatários que permanecem por 15 meses nos imóveis locados. Ambos pedem a redução da multa pela metade. Como se tratava de aparente faculdade do juiz a redução da pena, um poderia ter seu pleito atendido e outro não. Apesar de idêntica situação, a discricionariedade do julgador poderia gerar quebra da isonomia.

A dúvida consiste em saber se a norma gera uma imposição ao juiz de reduzir a cláusula quando e se provocado pela parte ou se o dever existe independentemente da provação do interessado.

O tratamento da doutrina merece nota. Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona explicam em seu Novo Curso de Direito Civil que o verbo "dever" impõe ao juiz a redução da pena convencional, sob pena de uma das partes restar excessivamente onerada (v. II, 12ª edição, p. 366). Não informam se a redução ocorre independentemente de provocação ao juiz.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald não enfrentam diretamente a questão. Entendem que "se a impossibilidade de cumprimento se der após o percurso de boa parte do contrato, porém, será de bom alvitre que o magistrado reduza a multa em razão ao tempo de vigência da relação" (Direito das obrigações, 5ª ed, p. 603).

Tatiana Magalhães Florence, em artigo dedicado ao estudo da cláusula penal, conclui que o verbo "dever" gera o seguinte efeito: "com isso resta definitivamente afastada a possibilidade de as partes dispensarem a apreciação do Judiciário a respeito da redução da penal convencional". Não trata da redução de ofício (Obrigações, Coordenador Gustavo Tepedino, p. 529).

Há na doutrina uma afirmação peremptória de Rubens Hideo Arai que "agora a redução é de ordem pública e deve ser aplicada de ofício pelo juiz diante do caráter cogente da norma" (Obrigações, Coordenação Renan Lotufo e Giovanni Ettore Nanni, p. 746). Também Carlos Roberto Gonçalves (Direito Civil brasileiro, v. 2, 10ª edição, p.419):

"A disposição é de ordem pública, podendo a redução ser determinada de ofício pelo magistrado"

 

Carlos Alberto Dabus Maluf, ao atualizar a obra de Washington de Barros Monteiro, secunda a posição de redução de ofício com base no Enunciado 356 do CJF (Curso de Direito Civil, 38ª edição, p. 400). O Enunciado tem o seguinte teor:

"Nas hipóteses previstas no art. 413 do Código Civil, o juiz deverá reduzir a cláusula penal de ofício."

O Enunciado em questão foi aprovado por apertada maioria. Antes da mudança do Regimento das Jornadas, bastava um único voto a mais para a provação de um Enunciado. Na época, forte foi a resistência à aprovação por uma questão simples: tratar o contrato por adesão e o contrato paritário como idênticos para fins da regra é algo que não pode ocorrer. Ademais, há ainda a distinção entre os contratos civis e os empresariais. Nestes últimos, novamente, a redução de ofício da cláusula penal é o que deve efetivamente ocorrer?

É em razão das especificidades de espécies de contrato que a questão merece melhor e mais profunda reflexão. A justificativa do enunciado é que a redução de ofício da cláusula penal decorre da função social do contrato que é norma de ordem pública nos termos do art. 2035 do Código Civil.

Novamente, a função social retorna como justificativa para a excessiva intervenção judicial sobre o conteúdo do contrato, sem que haja balizas mínimas a justificar a intervenção. Exemplifiquemos. Um contrato entre uma montadora de automóveis e uma fabricante de pneus em que a última descumpre parcialmente o contrato e a primeira promove a cobrança da cláusula penal. Sem requerimento de qualquer das partes, sem que haja pedido formulado, o juiz se intromete no programa contratual, sob fundamento da função social, para reduzir a multa pactuada. Esta intervenção, em um contrato firmado por hipersuficientes, é absolutamente descabida. Os contratos empresariais são, normalmente, amplamente debatidos contando a empresas com um corpo jurídico altamente qualificado. Não há qualquer tipo de vulnerabilidade a ensejar a intervenção do juiz sobre o conteúdo do contrato. A redução é uma afronta à autonomia privada.

Por outro lado, imaginemos um contrato por adesão em que uma das partes, o consumidor, assume multa evidentemente excessiva por imposição do fornecedor. Neste caso, em favor do vulnerável, deve o juiz efetivamente reduzir, ainda que não pedido, a cláusula penal.

O excesso de intervenção em afronta à autonomia privada nas hipóteses de contratos paritários, notadamente os de natureza empresarial, não se justifica em termos da lógica do princípio da função social. Aliás, a aplicação irrestrita do princípio entre iguais, na hipótese em que a proteção é desnecessária, reduz a força do próprio princípio e do Poder Judiciário que tem sua credibilidade colocada em xeque.

Se a grande valia do CDC foi dar mais justiça a uma relação notadamente injusta em desfavor do consumidor, não pode o Código Civil, que unificou as relações de direito privado, ser aplicado indistintamente às relações cíveis e às empresariais sem uma certa calibração. O Enunciado 356 tal como concebido pode representar bom exemplo da máxima de Cícero:

"Summum jus, summa injuria"

A importante universidade de Pádua (Jornal de Angola, jun 20 2014, Página42)




A importante universidade de Pádua

Jornal de Angola
jun 20 2014

A Universidade de Pádua, localizada em Pádua, é uma das mais importantes de Itália. Foi fundada em 1222, sendo uma das mais antigas do mundo. Em 2007, tinha com cerca de 63 mil estudantes e 2.350 docentes. De acordo com a tradição, a Universidade foi......leia mais...

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terça-feira, 10 de junho de 2014

O projeto de Código Comercial e os mafiosos americanos

Os brasileiros, que já são suficientemente pobres, jogarão na fogueira bilhões de reais que poderiam ser utilizados de forma muito mais proveitosa para o atendimento das verdadeiras necessidades do país.

Valor Econômico, segunda-feira, 9 de junho de 2014

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

Em famosos filmes americanos antigos, que tiveram como tema a máfia americana da primeira metade do século passado, eram muito comuns cenas nas quais chefes mafiosos demonstrando a sua proverbial empáfia, acendiam os seus charutos com a ajuda de notas de cem dólares que viam queimar impávidos. Cédula queimada, dinheiro perdido.

É precisamente isto que os brasileiros farão a partir do momento em que for promulgado e entrar em vigor o atual projeto de Código Comercial (toc, toc, toc), que tem origem em um grupo fechado de pessoas a partir do seu autor original. Esse malfadado projeto anda assombrando as salas e corredores do Congresso Nacional, além de nós outros, um significativo rol de juristas lúcidos, que contra ele têm se manifestado neste prestigioso "Migalhas" e em diversos outros órgãos da imprensa. Os brasileiros, que já são suficientemente pobres, jogarão na fogueira bilhões de reais que poderiam ser utilizados de forma muito mais proveitosa para o atendimento das verdadeiras necessidades do país.

Ainda que muitas manifestações tenham sido feitas contra o tal projeto, parece que elas não têm surtido qualquer efeito, já tendo sido gasto muito tempo e dinheiro na constituição de comissões para debatê-lo em inúmeras entidades (e outras comissões continuam sendo formadas). Muitos recursos têm sido gastos em viagens e reuniões. Muito tempo dos operadores do direito poderiam ter sido dirigidos para a discussão de outros temas jurídicos relevantes – e mesmo alguns dos que constam do projeto – mas sem o viés determinado pelo seu criador.

O referido grupo de autores que desde cedo foram contrários ao projeto ainda não tinham em suas mãos um elemento tão importante como o estudo feito pela Professora Luciana Yeung do INSPER, recentemente dado à luz e que já tem merecido a apreciação de alguns setores (Vide Migalhas de 29.5.14). Desde que esse trabalho foi apresentado ele vem reforçar do ponto de vista financeiro as razões pelas quais o projeto em tela deve ser inteiramente rejeitado. Quem desejar que critique a metodologia e os números divulgados mas ainda que apenas em parte o quadro seja verdadeiro, ele continua tão assustador quando "O Grito".

Não é necessário reproduzir os dados ali encontrados, que se desdobram em inúmeras situações dentro das quais haverá custos financeiros extremamente elevados se o projeto de Código Comercial vier a entrar em vigor nos termos da estrutura jurídica de sua concepção. Em todo o caso, vamos a alguns destaques.

1) Período de adaptação e custos correspondentes

Sabe-se que toda sociedade necessita de um período de adaptação aos efeitos de uma nova lei. O tempo necessário para tanto é incerto e a autora declara que a noção de que ele seria correspondente a dez anos não tem base real e científica. A base comparativa feita por ela em relação à lei de recuperação de empresas e de falências deve ser tomada apenas como uma referência meramente aproximativa. Isto porque (o que é reconhecido expressamente) não somente o projeto apresenta uma quantidade muito maior de dispositivos, como também porque ele se espalha por uma gama muito mais significativa de institutos que receberão modificações de menor ou de maior extensão e profundidade, conforme o caso.

Acresce um problema relevante. Enquanto em países como a Alemanha o início da vigência de uma lei pode chegar a três anos, no Brasil costuma-se estabelecê-lo em apenas 120 dias (art. 201 da Lei de Recuperação de Empresas e Falências). Esse prazo é muito curto para que a comunidade jurídica possa se assenhorear dos novos problemas jurídicos que surgirão e começar a pensar nas soluções a serem adotadas. A doutrina entrará muitas vezes em choque e a jurisprudência evoluirá erroneamente tal como faz a mariposa em volta da lâmpada, até cair morta no chão.

2) Efeitos quanto à sociedade estrangeira

As novas exigências feitas pelo projeto em relação ao funcionamento de sociedades estrangeiras no Brasil apresentaram um impacto estimado entre 5 e 6 bilhões de dólares! Haja cédulas para queimar: seriam aproximadamente 50 a 60 milhões de cédulas de cem dólares na fogueira. Uma coisinha de nada, como se verifica. Do jeito que está o recado dado aos capitalistas alienígenas é "go home" ou "do not come". E, claro, o Brasil não precisa nem do capital financeiro e nem do capital intelectual que venha de fora. Somos autônomos.

3) O aumento da insegurança jurídica

Em seu precioso estudo a autora foca questões relacionadas à função social da empresa e do contrato, destacando o verdadeiro circo de horror que pode tomar de assalto os tribunais brasileiros a partir da permissão dada ao Ministério Público para pleitear a anulação de negócio jurídico já concluído com base no descumprimento da função social do contrato.

Isto não pode ser considerado meramente aumento da insegurança jurídica, mas sim a perda total da mesma segurança, que deveria cercar de forma intrínseca o exercício da atividade econômica, pretensamente objeto de tratamento pelo triste projeto.

Aliás, este autor tem questionado frequentemente o estabelecimento do parâmetro da função social para o fim do balizamento da validade e da regularidade da atividade econômica, tal como já escreveu em diversos textos. Aqueles em que mais se aprofundou relativamente neste tema são: "O Código Civil e a Crise do Contrato" e o vol. 4 de sua coleção de Direito Comercial, quando tratou dos fundamentos da teoria geral do contrato.

A força com que o legislador procura incluir a função social no âmbito da atividade empresarial tem se mostrado uma moda deletéria, com um efeito profundamente negativo, sob o falso pretexto do estabelecimento da igualdade e da justiça. Trata-se de uma visão paupérrima e ideológica da atividade empresarial, demonstradora de que seus defensores vivem em um século (ou milênio) de trevas e que jamais aprenderam a riqueza do capitalismo não selvagem e que jamais leram (ou se leram não entenderam) obras essenciais como é o caso da "Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo" de Max Weber. A ignorância voluntária deveria ser punida com a pena de morte ou, no mínimo, o desterro. Há endereços muito adequado para o cumprimento de pena dessa natureza, não somente a Coreia do Norte.

O trabalho sob exame também aborda o aumento da insegurança jurídica em relação à concorrência desleal, campo em que impavidamente invade a seara de micro sistemas apropriadamente voltados para tal quadro jurídico e econômico.

O abuso do sócio da sociedade empresária; o descumprimento do dever de boa-fé; a proteção do contratante economicamente mais fraco nas relações contratuais assimétricas; a regulação da forma da produção de provas no processo; e outros pontos do projeto também são objeto da pesquisa da Dra. Luciana Yeung que apontam para outros efeitos patrimoniais negativos de elevada significação nos termos das propostas do projeto de Código Comercial.

Depois de ler todo o texto de que se trata, o sentimento que resulta é o de completo desalento quando se pensa que todos os males nele apresentados e outros que por ventura não tenham sido percebidos poderão se tornar uma amarga realidade para o empresário nacional e para a sociedade brasileira como um todo, que pagarão tal conta.

Como operadores do direito, certamente os escritórios de advocacia serão altamente beneficiados se esse projeto vier à luz. A pesquisa em apreço mostra que um dos elementos componentes desse custo negativo será, precisamente, a necessidade que os empresários terão de recorrer a assistência jurídica de qualidade e pagar por ela. Mas nós não podemos agir como o médico que torce pelo aparecimento de uma nova e grave epidemia para poder encher os seus bolsos. Isto seria verdadeiramente vergonhoso.

Diante de todo o exposto, digam o pai do projeto, o Ministro da Justiça, os parlamentares que o encamparam e outros participantes desse jogo se pretendem passar à história como os responsáveis pelos efeitos deletérios que ele trará, maiores pelo visto do que qualquer dos desastrados planos econômicos que governantes irresponsáveis jogaram em nossas costas no passado.

Ainda que tais efeitos não sejam imediatos como a explosão de um vulcão, que lança de imediato milhões de toneladas de pedras e lava para o alto, atingindo em seguida as comunidades ao seu redor, mesmo assim não será nada diverso o resultado homeopático de se jogar dinheiro fora na obediência às normas estabelecidas pela pretensa modernização de nossa legislação mercantil.


ANALFABETOS VOLUNTÁRIOS


J. R. Guzzo
Jornalista

Quem não lê nem escreve nunca, embora saiba como fazer as duas coisas, não tem realmente nenhuma vantagem prática em relação a quem não sabe ler nem escrever – como ensina Mark Twain, não vale mais do que um analfabeto puro, simples e legítimo.

É um sujeito que conhecemos muito bem no Brasil: aquele infeliz que tem de decorar a cor do seu ônibus, porque não é capaz de ler os números e letras que aparecem no letreiro, ou assina o seu nome com um X, porque não aprendeu a escrever. Caso você esteja entre a multidão que nunca lê um livro, ou uma frase com mais de 140 toques, e nunca escreve nada mais longo do que isso, aqui vai uma notícia interessante: você é um analfabeto.

Eu? Sim, você mesmo. É uma pena; infelizmente, também é a verdade. Tanto faz que tenha se formado na universidade, seja um alto executivo multinacional ou nacional, disponha de um certificado de “celebridade”, por ser top model ou alguma coisa “famosa”, possa utilizar 150 “apps” no seu celular, conte com 1000 amigos no Facebook e, em casos extremos, tenha até sido presidente da República. O indivíduo que nunca lê nada é uma vítima do analfabetismo – vítima voluntária, certo, mas analfabeto do mesmo jeito.

Exagero? Se você se recusa a ler ou escrever porque acha chato, inútil, obsoleto ou por qualquer outro motivo, faça o seguinte teste: tente explicar, no duro, qual é realmente a diferença entre você e um analfabeto – além, naturalmente, da capacidade de ler letreiros, assinar seu nome num pedaço de papel e outras miudezas. Vamos ver quem consegue.

A maré está na vazante. A substituição do alfabeto por sinais como “rsrsrs”, “kkkkk” ou “J”, por exemplo: adiantou alguma coisa para melhorar os índices atuais de inteligência ou de cultura? Não parece. O tempo ganho com essa economia ortográfica não resultou no aumento da produtividade mental de ninguém – não levou à produção de mais ideias, digamos, ou de ideias melhores do que as que vemos por aí. Esse tipo de conquista, que aumenta o volume do som, mas não melhora a voz do cantor, só confunde ainda mais a linha divisória entre alfabetizados e analfabetos. Eis aí mais um fenômeno da vida moderna: a universalização da ignorância.

Não deveria ser assim. Como todos sabem, a “mobilidade”, a “nuvem”, a comunhão entre 1 bilhão de pessoas numa rede social e outras conquistas extremas da “conectividade” provocaram uma “revolução dentro da revolução” e outros prodígios. Não se consegue traduzir direito essa linguagem para o português comum; só nos garantem que a internet vem fazendo cair cada vez mais as barreiras entre quem tem e quem não tem “conhecimento”. Mas a impressão é que tais barreiras podem estar caindo do lado errado – ou seja, os que têm conhecimento vão ficando cada vez mais parecidos com os que não têm.

A tecnologia não pode ser culpada pelo avanço da ignorância entre os que deveriam ser os mais instruídos; é neutra e imparcial. A verdade é que não lê e não escreve quem tomou, livremente, a decisão de não ler nem escrever. Ninguém, graças a Deus e à Constituição, é obrigado a ler nada; na verdade, um dos direitos fundamentais do homem, e alicerce indispensável da liberdade de expressão e de imprensa, é, justamente, o direito de não ler coisa nenhuma. Mas o fato de algo ser lícito não quer dizer, automaticamente, que seja bom – assim como ter um direito não significa que você seja obrigado a usá-lo. Não há, aqui, uma questão de direitos. O que há é uma questão de escolhas.

A opção por fechar a cabeça a trinta séculos de sabedoria, de inteligência e de verdades acumulados por tudo o que o homem escreveu até hoje é lícita, mas é ruim. Qual o bem que poderia vir de uma escolha dessas? É como no comentário do jogador de baralho que desiste de disputar uma mão, diante das cartas miseráveis que acaba de receber: “O meu jogo não está nada bom. Em compensação, está muito ruim”. Esse entusiasmo em adotar a opção “perde-perde” em relação à leitura e à escrita vem se tornando um elemento cada vez mais comum no comportamento cultural dos jovens – considerando-se como jovem, aqui, quem tem entre 18 e 50 anos, ou seja, é gente que não acaba mais.

Há, felizmente, um bom número de exceções, mas são só isso, exceções. A regra, para os demais, é clara: ler é chato, escrever é inútil e ambas as coisas são típicas de um passado que está tão morto quanto a civilização asteca. Na verdade, vigora hoje em dia um desprezo ativo pela leitura – um “porre”, tanto maior quanto menos recentes são os autores. Se você já leu um livro de Eça de Queiroz, por exemplo, é melhor não ficar contando isso por aí – corre o risco de ser considerado um mala, e ainda por cima metido a besta. Escrever, então, pode ser até pior. A carta, em que as pessoas aprendiam a se expressar, transmitir emoções e juntar uma ideia com outra, é hoje um objeto extinto. Foi substituída por e-mails cada vez mais subnutridos, áridos e sem alma; um operador de código Morse escreveria com estilo melhor.

Há rapazes e moças que já estão com 25 anos de idade, às vezes mais, e nunca escreveram nada na vida. Redigir mais de 100 palavras em seguida, por exemplo, deixa um executivo de primeira linha exausto, como se tivesse acabado de escrever Os Lusíadas [uma das mais famosas obras de Luís Vaz de Camões]. Jornalistas que trabalham em rádio e televisão passam anos sem escrever uma palavra; precisam ler o papel que lhes foi entregue.

A grande maioria dos brasileiros que completam o curso superior sai da universidade com dificuldades extremas para conectar entre si os diversos mecanismos cerebrais que permitem ao ser humano comunicar-se por escrito; contentam-se em ser “o animal que fala”, como Aristóteles descrevia o homem primitivo. O mundo onde há animais que, além de falar, também são capazes de ler continua vivo, mas questiona-se cada vez mais o sujeito que tem um livro na mão.

A maneira realmente moderna de encarar a leitura é medir a sua utilidade com uma pergunta-chave: “Ler para quê?”. Hoje em dia é possível ficar sabendo qualquer coisa, em qualquer lugar e a qualquer hora – da data da Batalha de Tuiuti ao dia do aniversário de Cate Blanchett. Qual a necessidade de saber as respostas antes de serem feitas as perguntas? É um modo de encarar a vida – não é preciso mais aprender, basta chamar o Google. É errado pensar assim? Com certeza é melancólico.

Privar-se, por livre e espontânea vontade, do que escreveram Machado de Assis, Charles Dickens ou Victor Hugo – ou Nelson Rodrigues, Balzac e Fitzgerald, numa sucessão de gênios que passa de 100, talvez 200 nomes – é um desperdício que mete medo. Perde-se, sem ganhar nada em troca, o que nos deixaram as melhores mentes que a civilização humana já produziu – algo provado com fatos objetivos, e não com teses universitárias.

Shakespeare, que escreveu há 500 anos, continua sendo o autor mais representado, até hoje, em teatros de todo o mundo; não passa um único dia sem que alguma peça sua esteja em cartaz, em algum lugar. Vendeu tantos livros que não cabe nas listas de best-sellers de “todos os tempos” – calcula-se que tenha vendido entre 2 e 4 bilhões de exemplares, seguido de perto pela rainha das histórias de mistério, Agatha Christie. Dickens, que também faz parte desse grupo, pode ter vendido 1 bilhão de exemplares ao todo. É certo que o seu livro de maior sucesso e de circulação mais bem contabilizada, Um Conto de Duas Cidades, vendeu sozinho 200 milhões de cópias. Será que toda essa gente estava errada, e que só agora, depois da vinda ao mundo do iPhone, a humanidade começou, enfim, a entrar no caminho correto, dispensando-se da ultrapassada tarefa de ler? Será que abolir da vida a imaginação e a curiosidade, como tanta gente está fazendo, torna as pessoas mais inteligentes, produtivas ou eficazes?

Todas as vezes em que você perceber que está ao lado da maioria, é hora de fazer uma pausa e pensar um pouco.

Fonte: Revista VEJA – Edição 2377 – Ano 47 – nº 24 – 11 de junho de 2014. Pgs. 100-101 – Edição impressa.