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quinta-feira, 26 de março de 2015

Como se produz um jurista? O modelo italiano (Parte 8)

Por 

Tudo deve mudar para permanecer como está
A ilha de Lampedusa é a porta de entrada de milhares de deserdados da vida, a maior parte de subsaarianos ou magrebinos, para a Europa. Em um ponto distante da costa siciliana, mais próxima até do Norte da África, a ilha transformou-se em símbolo das misérias da imigração internacional. Por uma dessas curiosas coincidências que convertem a vida em algo deliciosamente imprevisível, Lampedusa é também o gentílico de uma família aristocrática, cujo título foi criado no século XVII, quando reinavam em Espanha e em territórios do Sul da Itália os Habsburgo, na pessoa do rei Carlos II. No entanto, a origem da família Tomasi de Lampedusa é admitida como ainda mais avoenga, remontando a Bizâncio. O primeiro da linhagem foi Tomaso, comandante da Guarda Imperial bizantina e cognominado de "o Leopardo".

Essas histórias de linhagens antigas podem não interessar muito ao leitor contemporâneo, mas o caso dos Tomasi de Lampedusa merece atenção: o último dos príncipes da dinastia – ao menos por direito de sangue – chamava-se Guiseppe Tomasi di Lampedusa, nascido em 1896 e falecido em 1957. Sua família já não possuía direitos sobre a ilha, vendida ao Reino de Nápoles em 1840, e o palácio ancestral do clã fora destruído em 1943 por um bombardeio aliado. Guiseppe tornou-se mundialmente famoso por um único livro: Il gattopardo, traduzido por O leopardo, uma menção cifrada ao primeiro dos Tomasi, o bizantino.

A obra foi transformada em filme por Luchino Visconti, ele próprio um membro da aristocracia italiana em decadência, com o título Il Gattopardo, com a participação de estrelas internacionais como Burt Lancaster, Alain Delon e Claudia Cardinale.

Tanto o livro quanto o filme deixaram para a cultura popular uma célebre frase da personagem central, D. Fabrizio Corbera, príncipe de Salina: "A não ser que nos salvemos, dando-nos as mãos agora, eles nos submeterão à República. Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude". Na versão  popular, a frase ficou assim: "É preciso que tudo mude para que permaneça como está".

Não é pretensão do colunista narrar o enredo do livro e do filme. Recomenda-se vivamente que se assista e leia a ambos. O essencial de se começar pela referência a Lampedusa e seu esplêndido livro está na possibilidade de se capturar as raízes do país cujo ensino jurídico terá hoje sua análise iniciada. Em Il Gattopardo, estão presentes os sucessivos momentos de conquista, ocupação e derrota de povos e de dinastias que dominaram o território italiano, desde o fim do Império Romano. Bárbaros, bizantinos, árabes, normandos, austro-espanhóis, franceses e austríacos, finalmente, a guerra civil entre as forças "modernas" em prol da unificação italiana e as forças do "passado", representativas das pequenas monarquias, cidades-estado e territórios ocupados pelo Império Austro-Húngaro. A Itália moderna é uma ficção construída sob os escombros de um riquíssimo passado multicultural, que se fez com a imposição de uma língua comum, instituições monárquicas piemontesas (terra da dinastia de Sabóia, que liderou a unificação) e um profundo sentimento de perplexidade diante do novo.

De uma nação fragmentada em pequenos reinos, repúblicas e domínios austríacos, a Itália, na segunda metade do século XIX, formou-se de modo assustadoramente rápido e precisava de uma nova elite "nacional" em substituição a muitos que se recusavam a participar do novo regime ou que por ele não seriam aproveitados. Ao passo em que o movimento emigratório acentuava-se para as Américas, tendo sido o Brasil um dos destinos mais apreciados pelos italianos, as instituições da monarquia saboiana tentavam romper com os quistos de resistência feudal e eclesiástica (só totalmente resolvida após a Concordata de 1929), além dos movimentos carbonários e das forças de esquerda, que permaneciam na esperança da instauração da república.

Il Gattopardo deixa muito evidente esse problema ao narrar o convite feito ao príncipe de Salina para que integre o Senado da nova monarquia. D. Fabrizio, de modo polido, recusa o convite por se achar ligado a laços de lealdade com os "antigos soberanos da Sicília" e indica o ambicioso burguês que enriquecia à custa da nobreza decadente e cuja filha iria se casar com o sobrinho do príncipe, de modo a elevar seu status familiar.

Nesse cenário de transformação é que a universidade italiana, cujos vínculos com a Igreja e com as monarquias locais, vai-se convertendo em um celeiro de nomes para a Itália pós-Ressurgimento.

Uma universidade em (trans)formação
Alguns exemplos dessa mudança de perfil e de natureza jurídica das universidades italianas podem ser mencionados. A Universidade de Roma La Sapienza, no ano de 1870, perdeu seu título de instituição pontifical e passou à condição de universidade real. Considerada a mais antiga de entre as universidades, Bolonha experimentou uma trajetória diferente, graças a seus vínculos com o Sacro Império Romano-Germânico, que lhe permitiu ter recebido uma constituição imperial de Frederico Barba-Ruiva, de 1158, por meio da qual passou a ter imunidade e autonomia de pesquisa em face de poderes temporais ou espirituais. Em Veneza, a Università Venezia Ca' Foscari tem uma história diferente, mais proximamente ligada à formação do novo Reino da Itália. Criada em 1868 como Real Escola Superior de Comércio, teve como seu primeiro diretor o economista Franceso Ferrara.

Em Nápoles, a  Università degli Studi di Napoli Federico II, cujo nome lembra os equivalentes alemães, que unem o topônimo e a homenagem a um monarca, é herança dos tempos imperiais, fundada que foi em 1224 pelo soberano do Sacro Império e rei de Nápoles, Frederico II. Sua origem romano-germânica deu-lhe foros de instituição laica desde sua fundação. Depois de um período de longa decadência, a universidade aproximou-se da Igreja até que, com os efeitos da substituição dos Habsburgo pelos Bourbon no domínio de Espanha e dos territórios italianos, ela ganhou novos ares. Como todas as instituições universitárias peninsulares, após a unificação a Frederico II teve de se adaptar aos padrões uniformes da monarquia dos Saboia.

A Universidade e a construção do  Estado italiano moderno
Independentemente da origem, as universidades italianas, com a consumação do projeto unificador, tornaram-se uma peça importante para os governos reais. Novos espaços foram abertos para jovens de classes menos favorecidas e que só encontravam na Igreja um caminho de ascensão social por meio das letras. No entanto, diferentemente do que se operou na Alemanha ou, em menor escala, em Portugal, não se pode afirmar que houve um movimento constitutivo de uma "classe dos mandarins". A nobreza italiana ainda serviria por muito tempo nos serviços burocráticos de maior relevo, como a diplomacia, a administração provincial e as finanças públicas, além, é claro, de seu clássico papel no oficialato.

A Itália, porém, foi sede de um curioso processo de nobilitação de amplos setores que contribuíram para a unificação. Vitório Emanuel, primeiro rei da Itália moderna, antigo soberano da Sardenha, do Piemonte e da Saboia, precisou de todos os apoios para combater seus antigos colegas monarcas, os austríacos e as forças papais. Quando não conseguiu a adesão de parte da nobreza local, aliou-se a segmentos burgueses com a promessa de futuro exercício de poder regional. Até mesmo setores do operariado, carbonários e revolucionários internacionais, como Giuseppe Garibaldi, mereceram boas vindas, ainda que temporárias. Os sobreviventes e os que não foram posteriormente descartados, como Garibaldi, passaram à linha de frente na burocracia e nas forças armadas do Reino. A nobilitação foi uma importante arma de cooptação de burgueses e membros das classes médias e baixas que auxiliaram no esforço de guerra e na consolidação política do regime.

Surgiu, desse modo, uma nobreza ad hoc, que, em larga medida, não incomodava os aristocratas de cepa, seja porque os não destruídos no processo de unificação  seriam aproveitados pelo regime, ou porque sua soberba não permitia que eles se molestassem com os novos convidados para a festa do poder. Para estes últimos, só uma família com raízes nos tempos das Cruzadas seria verdadeiramente digna de ser tida como nobre.

Nesse cenário, uma nobreza universitária era secundária e, muita vez, vinha acompanhada de um título não acadêmico, como o de comendador ou cavaleiro, nada elevados na hierarquia nobiliárquica. Diversamente da Alemanha, o docente universitário italiano almejava esses títulos.

Nos séculos XIX-XX, muitos professores italianos gozaram de renome internacional em razão do prestígio do Direito Romano, cujo estudo havia "renascido" na Alemanha, e também pelo contato com os alemães, o que permitiu a "contaminação" da literatura jurídica italiana pelo Direito alemão e a tradução dos clássicos do século XIX para um idioma mais acessível ao público latino. A vocação comparatista italiana favoreceu também a que os juristas peninsulares fossem mais abertos às experiências estrangeiras (algo até hoje raro em relação aos germânicos) e que a Itália pudesse exercer uma influência maior sobre outros Direitos, como é o caso de Portugal, Espanha, Romênia e América Latina.

No plano interno, vê-se a adesão de grandes juristas da segunda metade do século XIX ao projeto de Itália unificada. Carlo Fadda (1853-1931), professor da Universidade de Nápoles, foi designado senador do Reino por Vitório Emanuel  em 1912. Nascido na Sardenha, território regido pelos Sabóia, é revelador que Fadda tenha feito sua carreira em uma universidade do Sul (que resistiu à unificação), o que diz muito sobre a importância dos docentes para a nova Itália. O título senatorial reforça o argumento da busca por uma legitimidade extrauniversitária. Pode-se, ainda, mencionar a ligação teuto-italiana no campo do Direito com o fato de Carlo Fadda ser relativamente conhecido no Brasil por sua tradução da obra de Bernhard Windscheid, mais conhecida por seu título em italiano Diritto dela Pandette, do que pelo original alemão Lehrbüch des Pandektenrechts. A maioria dos manuais brasileiros do século XX, escritos por não germanófonos, cita a versão italiana do clássico de Windscheid.

Ao lado de Fadda na tradução da obra de Windscheid, é necessário citar Paolo Emilio Bensa (1858-1928), genovês e catedrático da Universidade de Gênova. Fluente no alemão, Bensa também foi nomeado, em 1902, para o senado do Reino da Itália, em uma trajetória muito similar a de seu colega da Universidade de Nápoles.

Outro exemplo desse momento histórico é Giovanni Pacchioni (1867-1946), um civilista que os alunos veem associado às teorias sobre a natureza da obrigação. Professor de Direito Romano em Camerino, também lecionou em Innsbruck e em Turim, Pacchioni simboliza o caráter cosmopolita de muitos juristas do final do século XIX e o quão útil para esse fim poderia ser a universidade.

Os judeus também encontraram na universidade um espaço para desenvolvimento profissional e com menos percalços do que em outras áreas do serviço público, ao menos até à ditadura fascista.

A Primeira Guerra Mundial foi particularmente trágica para a Itália. O Exército Real, com apoio naval inglês e, posteriormente, da infantaria norte-americana, foi pessimamente dirigido pelo marechal de campo Luigi Cadorna em sua luta contra o Exército Real e Império austro-húngaro. O desastre de Caporetto, batalha na região do Vêneto em 1971, quase pôs a perder a monarquia italiana e ceifou a vida de milhares de jovens soldados e oficiais.

O pós-Primeira Guerra trouxe crise econômica e instabilidade política para a Itália, que se viu nas mãos de um carismático jornalista chamado Benito Amilcare Andrea Mussolini, que viria a governar o país como ditador a partir de 1922.

O regime fascista exerceu, como nunca antes, um papel de enorme preponderância no meio universitário. As ligações com a Áustria e a Alemanha, que nunca deixaram de ser fortes, de modo especial com as universidades do Norte da Itália, foram reforçadas com a ascensão do Nazismo. Muitos catedráticos italianos se dividiram após o fascismo, sendo notáveis os casos de resistência à ditadura ou de adesão servil ao totalitarismo.

É muito citado o exemplo do romanista Edoardo Volterra (1904-1984), professor em diversas universidades (Cagliari, Camerino, Pisa, Bolonha e Roma), que foi colocado em disponibilidade após as leis raciais de 1938 em razão de ser judeu. Após seu afastamento da cátedra na Itália, lecionou no Egito, na França e no Brasil. Voltou a seu país em 1940, já em plena Segunda Guerra Mundial, e foi preso em 1943 sob acusação de militar contra o regime fascista. Pegou em armas contra o fascismo e lutou como partigiano (guerrilheiro) atrás das linhas alemãs. Com várias condecorações por bravura e por sua atuação na resistência, foi designado juiz da Corte Constitucional em 1973.

Muitos juristas vincularam-se ao fascismo, como Betti e Del Vecchio, mas é interessante citar Pietro De Francisci (1883-1971), que foi professor catedrático de Direito Romano na Universidade de Roma, ministro da Justiça e da Graça no governo de Mussolini. Com a queda do fascismo, De Francisci foi exonerado de suas funções universitárias, até que Volterra, homem forte na Itália democrática, que havia sido orientando  de Pietro Bonfante juntamente com De Francisci, lutou por sua reintegração à universidade. Um gesto de raríssima nobreza.   

Finda a guerra, a universidade e, em particular, os professores de Direito, tenderam a acompanhar a viragem republicana. Ocupada pelas forças aliadas, de entre as quais as brasileiras, a Itália submeteu-se a um referendo e fez a opção pela república, extinguindo a curta experiência monárquica de menos de um século (1861-1946).

O segundo pós-guerra foi doloroso para a República Italiana. Fome, destruição do parque industrial, instituições em frangalhos e outras misérias marcaram o renascimento da antiga aliada Alemanha no Eixo Roma-Berlim-Tóquio. A reconstrução deu-se por meio do equilíbrio tênue entre socialistas e democratas-cristãos, com a força nada desprezível do Partido Comunista. Na década de 1960, o país conseguia se recuperar, graças também a maciços aportes do Plano Marshall, ao passo em que as universidades sofreram com a onda revolucionária estudantil do final de década. Em um exemplo que nunca deve ser esquecido de arrogância e de intolerância, nomes como Norberto Bobbio foram expulsos da universidade pelos alunos e encerraram suas carreiras universitárias.

Em relação ao Direito, nesse período, deu-se o reforço na universalização do acesso ao ensino superior. No Direito, não havia uma pós-graduação com o sentido atual. O bacharel em Direito era um dottore, título que até hoje os advogados usam, assim como no Brasil, mesmo sem o título de doutor. Exigia-se dos graduandos a apresentação de uma "tese de láurea", uma espécie de trabalho de conclusão de curso. Aqueles que desejavam seguir a carreira universitária, deveriam se submeter a um exame de habilitação (equivalente a nossa livre-docência, mas que seria, em verdade um doutorado).

As mudanças ocorreram no final dos anos 1960 e pode-se destacar a grande reforma da autonomia universitária nos anos 1990, com a Lei Ruberti 341/90, e, mais recentemente,  a polêmica Riforma Gelmini, um conjunto de normas aprovadas no governo de Silvio Berlusconi, de 2008 a 2010, que alterou o ensino, a estrutura e as carreiras docentes universitárias.

A universidade italiana hoje vive uma profunda crise, com cortes de recursos para centros de pesquisa, bibliotecas e bolsas, o que se deu no rescaldo da situação econômica europeia pós-2008.

Na próxima semana, vamos examinar mais a fundo a carreira docente  e  a estrutura universitária. Deixo aqui meus agradecimentos à professora Luciana Rodrigues, doutoranda em Direito Romano na Universidade de Roma – Tor Vergata, cujas informações ajudaram e muito a este colunista. 

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Revista Consultor Jurídico, 25 de março de 2015, 8h00

Cinco lições sobre a vida e o Direito, por ministro Barroso

Patrono da turma de 2014 da faculdade de Direito da UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o ministro Roberto Barroso, do STF, proferiu emocionante discurso com reflexões essenciais relacionadas à vida e ao Direito.

Confira a íntegra do texto.


A vida e o Direito : breve manual de instruções

I. Introdução

Eu poderia gastar um longo tempo descrevendo todos os sentimentos bons que vieram ao meu espírito ao ser escolhido patrono de uma turma extraordinária como a de vocês. Mas nós somos – vocês e eu – militantes da revolução da brevidade. Acreditamos na utopia de que em algum lugar do futuro juristas falarão menos, escreverão menos e não serão tão apaixonados pela própria voz.

Por isso, em lugar de muitas palavras, basta que vejam o brilho dos meus olhos e sintam a emoção genuína da minha voz. E ninguém terá dúvida da felicidade imensa que me proporcionaram. Celebramos esta noite, nessa despedida provisória, o pacto que unirá nossas vidas para sempre, selado pelos valores que compartilhamos.

É lugar comum dizer-se que a vida vem sem manual de instruções. Porém, não resisti à tentação – mais que isso, à ilimitada pretensão – de sanar essa omissão. Relevem a insensatez. Ela é fruto do meu afeto. Por certo, ninguém vive a vida dos outros. Cada um descobre, ao longo do caminho, as suas próprias verdades. Vai aqui, ainda assim, no curto espaço de tempo que me impus, um guia breve com ideias essenciais ligadas à vida e ao Direito.

II. A regra nº 1

No nosso primeiro dia de aula eu lhes narrei o multicitado "caso do arremesso de anão". Como se lembrarão, em uma localidade próxima a Paris, uma casa noturna realizava um evento, um torneio no qual os participantes procuravam atirar um anão, um deficiente físico de baixa altura, à maior distância possível. O vencedor levava o grande prêmio da noite. Compreensivelmente horrorizado com a prática, o Prefeito Municipal interditou a atividade.

Após recursos, idas e vindas, o Conselho de Estado francês confirmou a proibição. Na ocasião, dizia-lhes eu, o Conselho afirmou que se aquele pobre homem abria mão de sua dignidade humana, deixando-se arremessar como se fora um objeto e não um sujeito de direitos, cabia ao Estado intervir para restabelecer a sua dignidade perdida. Em meio ao assentimento geral, eu observava que a história não havia terminado ainda.

E em sequida, contava que o anão recorrera em todas as instâncias possíveis, chegando até mesmo à Comissão de Direitos Humanos da ONU, procurando reverter a proibição. Sustentava ele que não se sentia – o trocadilho é inevitável – diminuído com aquela prática. Pelo contrário.

Pela primeira vez em toda a sua vida ele se sentia realizado. Tinha um emprego, amigos, ganhava salário e gorjetas, e nunca fora tão feliz. A decisão do Conselho o obrigava a voltar para o mundo onde vivia esquecido e invisível.

Após eu narrar a segunda parte da história, todos nos sentíamos divididos em relação a qual seria a solução correta. E ali, naquele primeiro encontro, nós estabelecemos que para quem escolhia viver no mundo do Direito esta era a regra nº 1: nunca forme uma opinião sem antes ouvir os dois lados.

III. A regra nº 2

Nós vivemos em um mundo complexo e plural. Como bem ilustra o nosso exemplo anterior, cada um é feliz à sua maneira. A vida pode ser vista de múltiplos pontos de observação. Narro-lhes uma história que li recentemente e que considero uma boa alegoria. Dois amigos estão sentados em um bar no Alaska, tomando uma cerveja. Começam, como previsível, conversando sobre mulheres. Depois falam de esportes diversos. E na medida em que a cerveja acumulava, passam a falar sobre religião. Um deles é ateu. O outro é um homem religioso. Passam a discutir sobre a existência de Deus. O ateu fala: "Não é que eu nunca tenha tentado acreditar, não. Eu tentei. Ainda recentemente. Eu havia me perdido em uma tempestade de neve em um lugar ermo, comecei a congelar, percebi que ia morrer ali. Aí, me ajoelhei no chão e disse, bem alto: Deus, se você existe, me tire dessa situação, salve a minha vida". Diante de tal depoimento, o religioso disse: "Bom, mas você foi salvo, você está aqui, deveria ter passado a acreditar". E o ateu responde: "Nada disso! Deus não deu nem sinal. A sorte que eu tive é que vinha passando um casal de esquimós. Eles me resgataram, me aqueceram e me mostraram o caminho de volta. É a eles que eu devo a minha vida". Note-se que não há aqui qualquer dúvida quanto aos fatos, apenas sobre como interpretá-los.

Quem está certo? Onde está a verdade? Na frase feliz da escritora Anais Nin, "nós não vemos as coisas como elas são, nós as vemos como nós somos". Para viver uma vida boa, uma vida completa, cada um deve procurar o bem, o correto e o justo. Mas sem presunção ou arrogância. Sem desconsiderar o outro.

Aqui a nossa regra nº 2: a verdade não tem dono.

IV. A regra nº 3

Uma vez, um sultão poderoso sonhou que havia perdido todos os dentes. Intrigado, mandou chamar um sábio que o ajudasse a interpretar o sonho. O sábio fez um ar sombrio e exclamou: "ma desgraça, Majestade. Os dentes perdidos significam que Vossa Alteza irá assistir a morte de todos os seus parentes". Extremamente contrariado, o Sultão mandou aplicar cem chibatadas no sábio agourento. Em seguida, mandou chamar outro sábio. Este, ao ouvir o sonho, falou com voz excitada: "Vejo uma grande felicidade, Majestade. Vossa Alteza irá viver mais do que todos os seus parentes". Exultante com a revelação, o Sultão mandou pagar ao sábio cem moedas de ouro. Um cortesão que assistira a ambas as cenas vira-se para o segundo sábio e lhe diz: "Não consigo entender. Sua resposta foi exatamente igual à do primeiro sábio. O outro foi castigado e você foi premiado". Ao que o segundo sábio respondeu: "a diferença não está no que eu falei, mas em como falei".

Pois assim é. Na vida, não basta ter razão: é preciso saber levar. É possível embrulhar os nossos pontos de vista em papel áspero e com espinhos, revelando indiferença aos sentimentos alheios. Mas, sem qualquer sacrifício do seu conteúdo, é possível, também, embalá-los em papel suave, que revele consideração pelo outro.

Esta a nossa regra nº 3: o modo como se fala faz toda a diferença.


V. A regra nº 4

Nós vivemos tempos difíceis. É impossível esconder a sensação de que há espaços na vida brasileira em que o mal venceu. Domínios em que não parecem fazer sentido noções como patriotismo, idealismo ou respeito ao próximo. Mas a história da humanidade demonstra o contrário. O processo civilizatório segue o seu curso como um rio subterrâneo, impulsionado pela energia positiva que vem desde o início dos tempos. Uma história que nos trouxe de um mundo primitivo de aspereza e brutalidade à era dos direitos humanos. É o bem que vence no final. Se não acabou bem, é porque não chegou ao fim . O fato de acontecerem tantas coisas tristes e erradas não nos dispensa de procurarmos agir com integridade e correção. Estes não são valores instrumentais, mas fins em si mesmos. São requisitos para uma vida boa. Portanto, independentemente do que estiver acontecendo à sua volta, faça o melhor papel que puder. A virtude não precisa de plateia, de aplauso ou de reconhecimento. A virtude é a sua própria recompensa.

Eis a nossa regra nº 4: seja bom e correto mesmo quando ninguém estiver olhando.

VI. A regra nº 5


Em uma de suas fábulas, Esopo conta a história de um galo que após intensa disputa derrotou o oponente, tornando-se o rei do galinheiro. O galo vencido, dignamente, preparou-se para deixar o terreiro. O vencedor, vaidoso, subiu ao ponto mais alto do telhado e pôs-se a cantar aos ventos a sua vitória. Chamou a atenção de uma águia, que arrebatou-o em vôo rasante, pondo fim ao seu triunfo e à sua vida. E, assim, o galo aparentemente vencido reinou discretamente, por muito tempo. A moral dessa história, como próprio das fábulas, é bem simples: devemos ser altivos na derrota e humildes na vitória. Humildade não significa pedir licença para viver a própria vida, mas tão-somente abster-se de se exibir e de ostentar. Ao lado da humildade, há outra virtude que eleva o espírito e traz felicidade: é a gratidão. Mas atenção, a gratidão é presa fácil do tempo: tem memória curta (Benjamin Constant) e envelhece depressa (Aristóteles). Portanto, nessa matéria, sejam rápidos no gatilho. Agradecer, de coração, enriquece quem oferece e quem recebe.

Em quase todos os meus discursos de formatura, desde que a vida começou a me oferecer este presente, eu incluo a passagem que se segue, e que é pertinente aqui. "As coisas não caem do céu. É preciso ir buscá-las. Correr atrás, mergulhar fundo, voar alto. Muitas vezes, será necessário voltar ao ponto de partida e começar tudo de novo. As coisas, eu repito, não caem do céu. Mas quando, após haverem empenhado cérebro, nervos e coração, chegarem à vitória final, saboreiem o sucesso gota a gota. Sem medo, sem culpa e em paz. É uma delícia. Sem esquecer, no entanto, que ninguém é bom demais. Que ninguém é bom sozinho. E que, no fundo no fundo, por paradoxal que pareça, as coisas caem mesmo é do céu, e é preciso agradecer".

Esta a nossa regra nº 5: ninguém é bom demais, ninguém é bom sozinho e é preciso agradecer.

VII. Conclusão

Eis então as cláusulas do nosso pacto, nosso pequeno manual de instruções: 1. Nunca forme uma opinião sem ouvir os dois lados; 2. A verdade não tem dono; 3. O modo como se fala faz toda a diferença; 4. Seja bom e correto mesmo quando ninguém estiver olhando; 5. Ninguém é bom demais, ninguém é bom sozinho e é preciso agradecer.

Aqui nos despedimos. Quando meu filho caçula tinha 15 anos e foi passar um semestre em um colégio interno fora, como parte do seu aprendizado de vida, eu dei a ele alguns conselhos. Pai gosta de dar conselho. E como vocês são meus filhos espirituais, peço licença aos pais de vocês para repassá-los textualmente, a cada um, com toda a energia positiva do meu afeto: (i) Fique vivo; (ii) Fique inteiro; (iii) Seja bom-caráter; (iv) Seja educado; e (v) Aproveite a vida, com alegria e leveza.

Vão em paz. Sejam abençoados. Façam o mundo melhor. E lembrem-se da advertência inspirada de Disraeli: "A vida é muito curta para ser pequena".

segunda-feira, 23 de março de 2015

contratos coligados

Por Flávio Tartuce

Os contratos coligados têm grande relevância no mundo contemporâneo, representando clara expressão da função social dos pactos, prevista, entre outros dispositivos, pelo art. 421 do Código Civil de 2002. Trata-se de situação muito comum na realidade pós-moderna, notadamente pelo incremento das relações jurídicas imateriais e incorpóreas pela via digital.

Em um contexto de sua definição, conforme se extrai da obra de Orlando Gomes, “Os contratos coligados são queridos pelas partes contratantes como um todo. Um depende do outro de tal modo que cada qual, isoladamente, seria desinteressante. Mas não se fundem. Conservam a individualidade própria, por isso se distinguindo dos contratos mistos”.[1] Entre os contemporâneos, expõe Ruy Rosado de Aguiar Jr. que “é possível que os figurantes fujam do figurino comum e enlacem diversas convenções singulares (ou simples) num vínculo de dependência, acessoriedade, subordinação ou causalidade, reunindo-as ou coligando-as de modo tal que as vicissitudes de um possam influir sobre o outro”[2]. Concebe-se, portanto, na linha da doutrina esposada, que os contratos coligados ou conexos são os negócios que estão interligados por um ponto ou nexo de convergência, seja ele direto ou indireto, material ou imaterial. Em muitas situações concretas, é possível identificar um negócio tido como principal e outro como acessório dentro da reunião ou grupos de contratos.

O fenômeno revela a realidade da hipercomplexidade contratual, o que gera a incidência imediata de diversas normas à conexão, caso do Código Civil de 2002 e do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, em incessante diálogo de interação. Claras coligações são percebidas nos contratos eletrônicos e relativos às comunicações, nos contratos bancários, nos negócios de plano de saúde e nos contratos celebrados para a aquisição da casa própria; os últimos muito bem abordados no belo trabalho de Rodrigo Xavier Leonardo, que prefere o termo redes contratuais, propondo uma sutil diferenciação em relação à coligação contratual.[3] Em todas as hipóteses citadas, as duas normas têm subsunção concomitante, sem prejuízo de outras leis que podem incidir, de acordo com as peculiaridades do caso concreto.

Destaque-se, nesse contexto, a aplicação das regras da teoria geral do negócio jurídico e da teoria geral dos contratos à coligação, caso dos seus princípios informadores. Nessa linha, o Enunciado n. 421, da V Jornada de Direito Civil do Superior Tribunal de Justiça, prescreve que “Os contratos coligados devem ser interpretados segundo os critérios hermenêuticos do Código Civil, em especial os dos arts. 112 e 113, considerada a sua conexão funcional”. Sendo assim, pela última norma, incidem às coligações os princípios da boa-fé e da função social, este pela expressão relativa aos usos do local da celebração do negócio. Não se olvide, ainda, a possibilidade de aplicação de princípios constitucionais à conexão, como nos casos em que o contrato envolve valores fundamentais protegidos pelo Texto Maior, como a saúde e a moradia.

A jurisprudência nacional tem enfrentado concreções relativas às responsabilidades que decorrem de tais interações contratuais, inclusive no âmbito de incidência da Lei Consumerista. A título de exemplo, diante da conexão contratual, julgado do Tribunal Paulista entendeu pela responsabilidade solidária do laboratório que realizou a análise clínica, do hospital que o sedia e do plano de saúde por erro de diagnóstico, determinando o pagamento de indenização por danos morais a consumidor prejudicado pelo resultado equivocado (TJSP, Apelação Cível n. 568.839.4/6, Acórdão n. 3945845, São Paulo, 4ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Francisco Loureiro, julgado em 16/07/2009, DJESP 10/08/2009). Aplicou-se a premissa da solidariedade na prestação de serviços, retirada do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor.

Do Superior Tribunal de Justiça podem ser destacados os arestos que concluem que o inadimplemento de um determinado contrato pode gerar a extinção de outro, diante de uma relação de interdependência. A ilustrar, precisa ementa da lavra do Ministro Ruy Rosado de Aguiar, segundo a qual “celebrados dois contratos coligados, um principal e outro secundário, o primeiro tendo por objeto um lote com casa de moradia, e o segundo versando sobre dois lotes contíguos, para área de lazer, a falta de pagamento integral do preço desse segundo contrato pode levar à sua resolução, conservando-se o principal, cujo preço foi integralmente pago” (STJ, REsp 337.040/AM, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar Jr., QUARTA TURMA, julgado em 02.05.2002, DJ 01.07.2002).

Da mesma Corte Superior, entende-se que o contrato de trabalho entre clube e atleta profissional é o negócio principal, sendo o contrato de exploração de imagem, o negócio jurídico acessório, o que é fundamental para fixar a competência da Justiça do Trabalho para apreciar a lide envolvendo os pactos (STJ, AgRg no CC 69.689/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 23/09/2009, DJe 02/10/2009). Cumpre destacar, ato contínuo, decisão superior que reconheceu a dependência econômica de contratos comuns no mercado de combustíveis, caso dos contratos de fornecimento e de comodato de equipamentos, celebrados entre distribuidoras e postos revendedores (STJ, REsp. 985.531/SP, Rel. Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), TERCEIRA TURMA, julgado em 01/09/2009, DJe 28/10/2009).

Numerosos outros exemplos podem ser retirados da prática contratual e da jurisprudência nacional, sendo a coligação contratual uma realidade e um desafio que merece especial atenção dos estudiosos e aplicadores do Direito. Cabe à civilística desatar os nós que muitas vezes são encontrados nas conexões negociais, para as corretas interpretações e julgamentos relativos à matéria. Os princípios contratuais contemporâneos são importantes ferramentas para tais intricadas tarefas.


[1] GOMES, Orlando. Contratos. Atualizadores Antonio Junqueira de Azevedo e Francisco Paulo de Crescenzo Marino. Coord. Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 26ª Edição, 2007, p. 121.
[2] AGUIAR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor (Resolução). Rio de Janeiro: Aide, 1991, p. 37.
[3] LEONARDO, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional. São Paulo: RT, 2003.

 

quinta-feira, 19 de março de 2015

O papel do Poder Judiciário no cumprimento dos contratos

18 de março de 2015, 7h33

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A existência de mecanismos efetivos para o cumprimento dos contratos é tida como fundamental para o desenvolvimento econômico. A tese possui longo pedigree intelectual. Numa das suas articulações mais incisivas, por Douglass North, economista agraciado com o Prêmio Nobel, a ausência desses mecanismos é a principal causa histórica e atual do subdesenvolvimento.  Segundo o pensamento tradicional, incumbe ao Estado — por meio do Poder Judiciário — garantir o cumprimento dos contratos.

No Brasil, o papel do Poder Judiciário no cumprimento dos contratos tem sido alvo de duras críticas nas últimas décadas [1]. De um lado, há o problema da morosidade na resolução dos conflitos; uma decisão que manda cumprir um contrato após décadas, ainda que correta, deixa de satisfazer a sua função econômica. De outro, existe a percepção, por determinados segmentos, de que os juízes brasileiros teriam uma tendência a favorecer a parte mais fraca da relação contratual, exibindo um verdadeiro viés contrário à parte credora e frustrando o cumprimento dos contratos. No início dos anos 2000, economistas como Pérsio Arida, Edmar Bacha e André Lara Resende atribuíram às fragilidades de nosso sistema judicial algumas das principais mazelas da nossa conjuntura econômica, como a ausência de um mercado de crédito de longo prazo e as altas taxas de juros praticadas pelos bancos.

É tempo, porém, de repensar este debate, por diversas razões. Em primeiro lugar, o ambiente institucional brasileiro passou por importantes transformações na última década. As reformas do Poder Judiciário, da Lei de Falências e do Código de Processo Civil, bem como as leis esparsas que criam novas formas de garantia, são exemplos de iniciativas que contribuem para a maior exigibilidade do direito de crédito. Em parte por isso, o mercado de crédito privado no Brasil passou por grande expansão no período. 

Em segundo lugar, a crise de 2008 demonstrou que a exigibilidade judicial dos contratos tem também um lado sombrio. Nos Estados Unidos, a segurança jurídica conferida a certos contratos derivativos ao final dos anos 1990 contribuiu para a explosão de sua utilização, com consequências negativas quanto ao aumento do risco sistêmico. Por sua vez, a exigibilidade dos contratos de financiamento e hipoteca subprime — cujas cláusulas, no Brasil, provavelmente seriam consideradas abusivas — conduziu a perdas econômicas e sociais, com os consumidores perdendo suas casas e o mercado observando a queda abrupta do preço dos imóveis.

Em terceiro lugar, mas não menos importante, a exigibilidade formal dos contratos pelo Poder Judiciário é apenas um dos mecanismos possíveis para se garantir o cumprimento das obrigações assumidas pelas partes. Em nenhum lugar o Poder Judiciário é o único — ou nem mesmo o principal — mecanismo utilizado para se garantir a observância das avenças. E o recurso à via judicial é necessariamente custoso, não apenas às partes, como à toda sociedade que contribui para o financiamento deste Poder. Não é óbvio que deva ser este o foco de reformas em nosso País, onde deficiências em infraestrutura, saúde e educação criam forte demanda por recursos públicos.

É fundamental, portanto, refletir sobre o papel e contornos de possíveis soluções privadas para se garantir o cumprimento dos contratos no contexto brasileiro. A crescente adoção da arbitragem bem ilustra esse tipo de alternativa privada à via judicial. Em outros casos, a solução adotada implica o próprio abandono da via contratual. Por exemplo, um estudo do economista Paulo Furquim demonstra que a rede McDonald's rechaçou, em larga medida, o modelo de contratos de franquia que predomina em sua prática internacional para se tornar proprietária de expressiva parcela de suas lojas no Brasil — o que ocorreu depois de numerosas brigas judiciais ocasionadas pela desvalorização cambial dos anos 1990. De forma semelhante, a recente disputa contratual entre as empresas ALL e Rumo (dos ramos de transporte ferroviário e de açúcar), amplamente divulgada pela mídia, foi recentemente encerrada por meio da fusão entre as companhias. De forma mais ampla, o cenário econômico nacional é marcado pela presença de grandes grupos empresariais — nos quais transações entre partes relacionadas substituem os contratos impessoais em condições de mercado.

Ao mesmo tempo, alguns contratos no país são surpreendentemente fortes. O Brasil desponta como líder no emprego de contratos em setores nos quais o seu uso é reduzido em outros países. Exemplo disso é a extensa utilização de acordos de acionistas (contratos, portanto) para o compartilhamento do controle nas companhias abertas brasileiras — em grande parte devido à peculiar força e proteção conferida a esses arranjos pela nossa legislação. Outros contratos também gozam de tratamento privilegiado pela jurisprudência pátria. É o caso das relações contratuais de trabalho e de consumo, para cujo cumprimento em favor da parte mais fraca tem se permitido o recurso não apenas ao patrimônio da empresa, mas também ao patrimônio dos sócios, por meio do instituto da desconsideração da personalidade jurídica. Nas relações de consumo, ainda, tem se admitido com surpreendente (e, quiçá, preocupante) frequência a indenização por dano moral pelo descumprimento de contratos por parte do fornecedor — remédio esse inadmissível em outros sistemas.

Tudo isso aponta para a necessidade de se repensar o papel do Judiciário brasileiro no cumprimento dos contratos no Brasil. Há espaço para o estudo e formulação de arranjos privados que substituam a ameaça da coerção estatal no incentivo à cooperação. Essas alternativas, porém, também trazem consigo custos potenciais significativos – como uma economia mais concentrada, mais opaca e menos propícia à entrada de novos atores. É preciso que se investiguem essas práticas e suas implicações, para não se cair tampouco na armadilha do "barato que sai caro".


[1] O artigo trata de algumas questões que serão aprofundadas no Seminário Contract Enforcement in Brazil – Challenges and Substitutes, realizado pela FGV Direito SP e pela Stanford Law School no dia 24 de março. Inscrições devem ser feitas pelo site da FGV Direito SP.

Mariana Pargendler é professora da Escola de Direito da FGV-SP e professora visitante da Stanford Law School.

Revista Consultor Jurídico, 18 de março de 2015, 7h33

quarta-feira, 11 de março de 2015

Como se produz um jurista? O modelo português (Parte 7)

11 de março de 2015, 8h00

Por 

Minha pátria é minha língua
"Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa". Com esses belos versos, Fernando Pessoa faz uma declaração de amor ao idioma, em seu Livro do Desassossego, e converteu a frase-título em sede do que certos autores definem como um "patriotismo linguístico". 

Portugal moderno, destituído do império ultramarino, atravessa uma crise econômica muito grave, ampliada pela deterioração do sistema monetário europeu e pela perda do financiamento dos fundos comunitários, tal como se experimentou nos anos de fartura da década de 1990. O fim da estrutura  colonial foi catastrófica, embora nada comparável ao que houve após a independência do Brasil em 1822, fruto da atualmente considerada insana regressão no arranjo constitucional posto em prática por D. João VI, quando instituiu o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve. No período de 1800 a 1827, as receitas da monarquia portuguesa caíram em 38% e o comércio exterior perdeu 75% de seu valor.[1]   

A ruptura com o passado colonial, no entanto, manteve a nação portuguesa vinculada ao legado linguístico e é precisamente esse ponto que importa mais diretamente à coluna de hoje: a língua portuguesa não é um idioma franco no cenário acadêmico internacional. Os efeitos disso, que se mostram também na Literatura (quantos prêmios Nobel nossa língua já recebeu?), estão nos rankings das publicações e, por efeito, das universidades. Em Direito, esse é um problema ainda mais sério, o que não se dá na Física ou na Matemática. Nesse aspecto, os países lusófonos não estão sozinhos. Italianos e agora os franceses sofrem com o isolamento linguístico. Desde meados do século XX, o francês não é mais uma língua franca nos meios universitários. 

Na Holanda e na Bélgica, a questão foi resolvida com uma solução radical e perplexa, posto que eficiente: fala-se inglês nas universidades. Para os belgas, às voltas com o separatismo dos flamengos, terminou por ser uma forma inteligente de superar essa cisão nos meios acadêmicos.

O inglês, língua imperial há mais de 200 anos, tornou-se o latim de nosso tempo, especialmente após a hegemonia norte-americana no século XX. Se o inglês é o latim, restou ao alemão ser o equivalente contemporâneo do idioma grego. A sofisticação do pensamento grego sempre foi superior ao caráter analítico do latim e sua literatura no Império Romano. No Direito, esse papel do alemão é ainda mais relevante, assim como na Filosofia, na Sociologia ou na Psicologia.

Para os países de tradição de civil law, a utilização do inglês como idioma franco é motivo de tormenta ou de ridículo, de modo especial quando se volta para ramos clássicos como o Direito Civil. Alguns exemplos comprovam isso. O primeiro está na simples consulta a abstracts de artigos publicados em português no Brasil. O segundo está no uso frequente de parêntesis com palavras latinas em obras de autores alemães para esclarecer dúvidas sobre a correta versão de certa categoria jurídica para o inglês. O terceiro está em que, nos países de common law, não há, por exemplo, o conceito de "Direito Civil", como disciplina única e sistêmica, mas de Torts (responsabilidade delitual), Contracts e Family Law, também exemplificativamente. Daí ser um equívoco traduzir Direito Civil por Civil Law. Este é apenas um de entre vários exemplos, que são mais ou menos intensos a depender da província jurídica. Em Direito Constitucional, disciplina mais jovem e com desenvolvimento mais aproximado nos dois sistemas, essas assimetrias diminuem.

Nesse embate linguístico de nossa época, Portugal alinha-se escancaradamente com o alemão. Essa viragem deu-se no início do século XX nas universidades portuguesas graças ao projeto de reforma iniciado pelo civilista Guilherme Alves Moreira na Universidade de Coimbra a partir de 1904. O abandono do francês e a opção pelo idioma germânico fez-se sentido em todas as esferas do conhecimento e pode ser muito bem acompanhada no item 4.2 de meu artigo A influência do BGB e da doutrina alemã no direito civil brasileiro do século XX.

Essa "opção preferencial" pelo "grego", sedimentada por mais de 100 anos, converteu o Direito português, mormente sua doutrina, em um espaço de grande respeito por seus homólogos do Direito continental. E, de certo modo, a estrutura das universidades, o ensino e a carreira docente mostram-se muito próximos do modelo alemão. Entretanto, Portugal adotou soluções autóctones em muitos setores do ensino jurídico, aproximando-se da realidade brasileira, o que explica a atenção que faz por merecer o Direito de nossa pátria-mãe.  

É sobre essas características de que cuidará a coluna de hoje, pela qual se encerrará o exame da experiência de nossa antiga metrópole e agora, com carinho, nossa pátria-mãe.

Como se dá a formação do jurista português?
O estudante português candidata-se a uma vaga nas faculdades de Direito por meio da média mínima de conceitos escolares pré-universitários, a qual varia de instituição para instituição e de curso para curso. Na Faculdade de Direito de Coimbra, por exemplo, o postulante deve ter a média mínima de 14 valores (equivalente a um 7 no Brasil, pois o máximo são 20 valores), além, é claro, de fatores de desempate e de compatibilidade com as vagas ofertadas.

Ao ser admitido na universidade, ele encontrará o curso dividido em anos ou semestres. Em Coimbra, após a recente reforma, a divisão dá-se por semestres. A graduação pós-Bolonha estende-se por quatro anos e é seguida de um curso de pós-graduação, um mestrado profissional.

As aulas são organizadas, na maior parte das instituições, com o modelo de cinco disciplinas por semestre, sendo uma delas optativa.

À semelhança da Alemanha, o número de matriculados por disciplina pode ultrapassar 100 ou 150 alunos. Em alguns casos, têm-se salas com 200 a 250 discentes. Um detalhe interessante: a frequência não é obrigatória. Quando os alunos querem protestar, fazem, muita vez, a chamada "greve de zelo" — um comparecimento em massa de todos os alunos à aula.

A estrutura das aulas é também assemelhada ao modelo alemão. Os catedráticos ou, de modo excepcional, os regentes não catedráticos são os titulares da disciplina. Acompanham-no um número variável de assistentes — a depender do número de matriculados. Cada catedrático tem de ministrar três horas semanais de aulas, ditas aulas magistrais no estilo da Vorlesung alemã.  O docente expõe o conteúdo semanal nessa aula magistral, sem que haja interrupções ou perguntas dos alunos (ao menos em tese). As exposições são relativas a elementos conceituais, teóricos e expõem o estado-da-arte da matéria. Posteriormente, os alunos dividem-se nas turmas dos conduzidas pelos assistentes.

Os assistentes, em Coimbra, também são conhecidos por "repetidores", uma nomenclatura que vem do século XV. A ideia de repetições não pode ser vista com preconceito. Ela se reflete na própria estrutura da missa católica, que foi apropriada pelas universidades. O professor catedrático equipara-se ao bispo, que ocupa a cadeira episcopal, daí a palavra catedral para definir o templo que é sede de um bispado. O catedrático e o bispo são docentes, eles ensinam algo novo a partir da leitura de um texto. Desse ato de leitura derivaram as palavras lente, em português, que designava um professor abaixo do catedrático, e lecture, em inglês, que serve para designar professores associados (senior lecture) ou auxiliares (lecture) no Reino Unido.  Sobre esse paralelo, recomenda-se a leitura de nosso texto Dogmática e crítica da jurisprudência (ou da vocação da doutrina em nosso tempo).

A função dos assistentes, que regem grupos menores de alunos, é a de retomar as lições magistrais (de magister, mestre) do catedrático, explicar pontos pouco compreendidos pelos alunos e, a depender da natureza da disciplina, resolver casos práticos. Uma vez mais observa-se a semelhança entre o ensino jurídico alemão e o português. Não se pode, contudo, negar a Portugal a precedência histórica em muitos pontos desse método.

Nota-se, porém, uma diferença sensível entre Alemanha e Portugal quanto ao estudo de casos. Não há nas universidades portuguesas o caráter predominante de uma preparação dos alunos para resolver casos práticos. Tal se deve porque não há o sistema de exames de Estado no território lusitano. Desse modo, existe maior flexibilidade no conteúdo das aulas magistrais e na atividade dos repetidores. As disciplinas propedêuticas e as teóricas são mais prestigiadas e seus docentes tem maior liberdade para fugir da preocupação com casos. Ao passo em que, nas dogmáticas, existe maior emprego de casos. Mas, os elementos conceituais e as perguntas teóricas são prestigiados nas aulas, nas repetições e nos exames. 

Percebe-se que as aulas de Direito em Portugal são híbridas quanto ao modelo alemão e ao que é praticado no Brasil. Os conteúdos teóricos são mais importantes, posto que exista também a preocupação com os casos.

É necessário ressaltar que as aulas magistrais, seguidas de aulas com questões práticas ou de revisão de conceitos pelos assistentes, não são "modernas". Nem por isso, há perda de qualidade no ensino. Este é mais um exemplo de que não correlação demonstrável entre o emprego de "novos métodos" e resultados educacionais superiores nos cursos jurídicos portugueses.

A avaliação do aluno de Direito em Portugal
Muito bem, se em Portugal há o catedrático e a figura do assistente, com nítida divisão de trabalho, com muita proximidade à Alemanha, os exames portugueses apartam-se dos alemães em muitos aspectos.

Não há exames de Estado em Portugal, como já dito, e muito menos um Exame de Ordem, apesar de tentativas recentes da Ordem dos Advogados em instituir uma prova admissional a seus quadros. Por esse efeito, ganha muito relevo o papel das avaliações internas aplicadas nas universidades. Elas são determinantes para a progressão no curso de Direito e seu nível de rigor é alto, o que se percebe com a queda do número de alunos ao longo do curso. Muitos terminam por ficar no meio do caminho, graças a notas insuficientes.

A nota máxima nas avaliações é de 20 valores, equivalente ao 10 no Brasil. É uma nota praticamente impossível de se obter. Note-se que Antonio Salazar é reverenciado até hoje pelos 19 valores obtidos ao final de seu curso de Direito em Coimbra.  O aluno pode tirar a nota mínima de 10 valores (equivalente a nosso 5).  Os exames são escritos e ocupam o intervalo fixo no semestre letivo, em geral 30 dias. As aulas cessam e toda a faculdade se volta para essas avaliações, que são escritas. Os assistentes fiscalizam sua aplicação e as correções cabem a eles. Os catedráticos não corrigem os exames escritos.

Se o aluno tirara nota entre 9 e 8 valores, poderá requerer um "exame oral de passagem", que será realizado pelos assistentes. Abaixo de 8 valores, existe a reprovação, se o aluno não melhorar a nota no "exame de recurso". Quem obtiver nota superior a 10 valores poderá requerer o "exame oral de melhoria", submetendo-se a questões formuladas pelo catedrático. Em suma, só os melhores alunos são arguidos pelo catedrático. E, desse modo, ele passa a conhecê-los mais de perto e a formar vínculos com essa elite de cada turma. São desses alunos excepcionais que se forma o corpo de futuros assistentes.

Os exames escritos consistem em dissertações, com uma proporção entre conceitos e casos práticos, que ocupam de 6 a 12 páginas pautadas. Há uma preocupação com a inovação das questões a cada semestre.

Reflexos do modelo português na literatura jurídica
Reflexo desse modelo de avaliações, no qual a nota atribuída pelo catedrático tem mais peso, está na melhor qualidade da literatura estudada pelos alunos de graduação. Manuais com 2 volumes em Direito das Obrigações (Antunes Varela ou Mario Julio de Almeida Costa) contrastam com muitos livros brasileiros contemporâneos.  A Teoria Geral das Obrigações, de Mota Pinto, é uma obra que termina por ser consultada por alunos de pós-graduação no Brasil, enquanto sua destinação em Portugal é para os discentes das licenciaturas. A cultura dos "resumos" não é forte. Há, porém, obras editadas por associações estudantis (equivalentes a nossos centros acadêmicos), de autoria de assistentes (muitos dos quais se tornaram catedráticos com o tempo), que são guias de estudos mais simplificados para auxiliar nos exames.  Existe ainda a "sebenta", como a descreve Eça de Queiroz em seus livros, sem esconder o asco, que se constituem em cadernos de anotações dos alunos, que copiam as lições dos catedráticos e dos assistentes. É algo muito parecido com a tradição dos "cadernos" da Faculdade de Direito do Largo São Francisco.

De um modo geral, a ausência de um Exame de Ordem e de uma política de Estado para concursos públicos de massa, com exames de múltipla escolha, contribuiu para a "alta literatura jurídica" portuguesa se conservar imune ao processo de degeneração que se vem notando no Brasil há mais de uma década. A crise econômica, desde 2008, o processo de reforma curricular de Bolonha, que reduziu em 1 ano a duração dos cursos, e a perda de prestígio das profissões jurídicas, em alguma medida, acentuaram uma queda ainda moderada na qualidade dos alunos portugueses e de seu desempenho acadêmico. O tempo dirá sobre como isso ficará nos próximos anos.

Internacionalização
O aluno português de Direito tende a explorar mais intensamente as oportunidades de internacionalização. Muitos estudantes participam de programas de intercâmbio, como o Erasmus, o que se segue na pós-graduação. Diferentemente do que se dá no Brasil, o inglês é bem lecionado nos níveis fundamental e médio na própria escola. Ao conhecimento razoável do inglês, o estudante sabe que o domínio do alemão é essencial para se progredir na carreira acadêmica. O estágio nos Institutos Max-Planck ou em algum centro de pesquisa das universidades alemãs mais prestigiosas faz parte desse percurso e é bastante comum no currículo de um scholar português.  

Os concursos para a magistratura
Mais recentemente, há crescido a procura dos licenciados portugueses pelo concurso de ingresso na magistratura. Segundo dados da Rede Judiciária  Europeia em matéria civil e comercial, os candidatos aos níveis iniciais da carreira de juiz devem comprovar a licenciatura em Direito em universidade portuguesa ou "habilitação acadêmica equivalente face à lei nacional, obtida há, pelo menos, dois anos contados à data de abertura do concurso". É necessário frequentar "com aproveitamento os cursos e estágios de formação e satisfaçam os demais requisitos estabelecidos na lei para a nomeação de funcionários do Estado".[2]

A seleção dos magistrados é feita pelo Centro de Estudos Judiciários - CEJ, um órgão do Ministério da Justiça. Há formas de ingresso por meio da "experiência acadêmica", o que exige o título de mestre ou doutor, ou da "experiência profissional", compreensiva de um mínio de 5 anos de atividades forenses ou afins. O concurso implica prova de conhecimentos, avaliação de currículo, discussão sobre o currículo e a experiência profissional e uma discussão sobre temas jurídicos, "baseada na experiência do candidato". Por fim, um exame psicológico é também realizado. A aprovação habilita o candidato a um curso teórico-prático.[3]  

A carreira judicial é prestigiosa, mas a remuneração não é particularmente atrativa e diferenciada de outras carreiras de Estado, diversamente do Brasil. No entanto, cresce o número de estudantes que ambicionam fazer as provas do CEJ. Em razão disso, surge uma demanda maior pela ênfase na "formação jurisprudencial" em detrimento da clássica "formação doutrinária" que os cursos portugueses oferecem, à semelhança do que se praticava no Brasil até meados da década de 1990.

Conclusões
Termina esta semana a seção sobre o ensino jurídico em Portugal, parte da série sobre "como se forma um jurista em alguns lugares do mundo". Mesmo com a crise econômica e as dificuldades de custeio da estrutura universitária, o modelo português continua a fornecer bons exemplos para o Brasil.

Poucas faculdades, uma carreira docente respeitada e estável (nos níveis superiores), rigor nas avaliações, matrizes curriculares fechadas, internacionalização dos estudantes e professores e a conservação (inesperada) de uma "alta literatura jurídica" marcam positivamente o modelo português. As sombras obviamente surgem no horizonte. A crise das carreiras jurídicas, as portas fechadas para a renovação de quadros docentes, a oferta de vagas por instituições privadas sem qualidade podem comprometer esses resultados a médio prazo.

As dificuldades do idioma português diminuem a percepção sobre as qualidades dos juristas de Portugal. No entanto, esse é um problema também dos alemães e, mais ainda, dos italianos.

P.S. A recepção destas colunas pelos leitores tem sido incrivelmente alta. Só lhes tenho a agradecer pela generosidade e pelo interesse. Alguns leitores, como Alexandre Carvalho Simões, têm insistido para que eu crie uma página no Orkut, digo Facebook. Infelizmente, não a possuo e creio que não deverei tê-la. De qualquer forma, os interessados podem acompanhar não somente minhas atividades, mas as ações da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo em sua página no Facebook, a qual não acesso nem administro. Eu também estou nesta página no direito comparado. E ainda no academia.edu, um interessante fórum de divulgação de nossas produções acadêmicas.  


[1] RAMOS, Rui (Coord)., VASCONCELOS E SOUSA, Bernando; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. História de Portugal. 6 ed. Lisboa: A esfera dos livros, 2010. p.457.

[2] Informações extraídas de: http://ec.europa.eu/civiljustice/legal_prof/legal_prof_por_pt.htm. Acesso em 16-2-2015.

[3] Informações extraídas de: http://www.cej.mj.pt/cej/forma-ingresso/ing-formacao.php.  Acesso em 17-2-2015.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Revista Consultor Jurídico, 11 de março de 2015, 8h00

sexta-feira, 6 de março de 2015

Como se produz um jurista? O modelo português (Parte 6)

4 de março de 2015, 8h00

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

Na coluna anterior, começamos a estudar o modelo de ensino jurídico português. A formação de um quadro de "professores mandarins" e o papel dos docentes universitários na república, ao longo do século XX, mereceram especial atenção. Portugal e Alemanha aproximam-se nesse percurso histórico, em muito favorecido pela mudança de matriz universitária iniciada em 1904, com abandono da França e escolha da Alemanha como referencial.

Nesta coluna, veremos as faculdades de Direito, a carreira docente e o currículo em Portugal.

As faculdades de Direito portuguesas
Os cursos jurídicos portugueses tradicionalmente limitaram-se aos núcleos de Coimbra e de Lisboa. Ao longo do século XX, deu-se um sensível deslocamento da centralidade na área jurídica de Coimbra para Lisboa. Tal se refletiu no número de cargos de catedrático. Veja-se que as duas maiores faculdades de Direito públicas em Portugal possuem os seguintes números de (a) catedráticos em atividade, (b) associados com agregação, (c) associados sem agregação, (d) auxiliares e (e) assistentes:  

1) Universidade de Coimbra: (a) 11; (b) 3; (c) 8; (d) 37 e (e) 27 (excluídos os assistentes convidados).[1]

2) Universidade de Lisboa: (a) 22; (b) 3; (c) 17; (d) 56 (excluídos os auxiliares convidados) e (e) 33.

Nos anos 1990, quando se radicalizou a europeização de Portugal, o número de faculdades de Direito passou a crescer acentuadamente. Em 1993, são criadas a Escola de Direito do Minho e Faculdade de Direito da Universidade do Porto. No ano de 1996, fundou-se a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Os cursos privados também se ampliaram desde então.  Mesmo assim, o número de faculdades de Direito em Portugal é relativamente pequeno:

a) Instituições públicas – 1) Escola de Direito da Universidade do Minho; 2) Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; 3) Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa; 4) Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

b) Instituições privadas: 1) Curso de Direito da Universidade Autônoma Portuguesa; 2) Universidade Lusíada de Lisboa; 3) Faculdade de Direito da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (Lisboa); 4) Escola de Direito da Universidade Católica de Lisboa; 5) Escola de Direito da Universidade Católica do Porto; 6) Universidade Lusófona do Porto; 7) Faculdade de Direito da Universidade Lusíada do Porto.

As estruturas físicas, de docência e de investigação são bastante variáveis. Em Coimbra, os investimentos na assinatura de periódicos internacionais são constantes. A biblioteca, uma das mais antigas da Europa, segue um estilo comum a algumas instituições italianas. Os livros ficam em armários fechados e o acesso dá-se por meio de consulta ao catálogo eletrônico e posterior solicitação à bibliotecária. Projeta-se a construção de uma nova e moderna biblioteca para a Faculdade de Direito. Na faculdade de Lisboa, na gestão do catedrático Jorge Miranda, ergueu-se um novo anexo ao prédio principal, ocupado por uma nova biblioteca e por gabinetes dos docentes. A biblioteca é muito completa, com periódicos internacionais, embora já se comecem a sentir os efeitos das restrições orçamentárias advindas da crise econômica pela qual o país atravessa desde 2008.

Há críticas sobre a qualidade dos egressos dos cursos particulares não confessionais. Essa circunstância levou a Ordem dos Advogados portuguesa a sugerir a criação de uma espécie de exame de Ordem, no que foi rechaçada pelos professores de Lisboa e Coimbra.[2]

A carreira docente universitária em Portugal
A norma central sobre a carreira de professor universitário é o Decreto-lei 448, de 13 de novembro de 1979, com sucessivas modificações e republicado pelo Decreto-lei 205, de 31 de agosto de 2009.[3] A estrutura compõe-se de professor catedrático, professor associado e professor auxiliar. A figura do professor assistente foi extinta, embora permaneçam a existir nas universidades até que seus ocupantes se promovam, exonerem-se ou se aposentem.

As atribuições dos catedráticos lembram e muito as equivalentes alemãs: "Ao professor catedrático são atribuídas funções de coordenação da orientação pedagógica e científica de uma disciplina, de um grupo de disciplinas ou de um departamento, consoante a estrutura orgânica da respectiva instituição de ensino superior (...)".[4]  Ao professor associado compete "coadjuvar" os catedráticos, além de reger disciplinas, orientar trabalhos de pesquisa e colaborar com aqueles nas funções administrativas (item 2 do artigo 5o). O professor auxiliar tem por função lecionar aulas, "podendo ser -lhe igualmente distribuído serviço idêntico ao dos professores associados, caso conte cinco anos de efetivo serviço como docente universitário e as condições de serviço o permitam" (item 3 do artigo 5o). Nos cursos de Direito das universidades públicas portuguesas, especialmente em Lisboa e Coimbra, são bem marcadas essas posições hierárquicas, tal como ocorre na Alemanha.

Vamos à forma de recrutamento desses quadros docentes.

Só se admite o ingresso dos docentes das três categorias por concurso (artigos 9º c/c 11º). Há, no entanto, uma diferença: o catedrático e o associado contratam-se por tempo indeterminado (artigo 19º). Na prática, isso quer dizer que eles são estáveis. A legislação portuguesa usa de um termo comum no serviço docente norte-americano, a tenure, ao declarar que eles gozam de um "estatuto reforçado de estabilidade no emprego (tenure) que se traduz na garantia da manutenção do posto de trabalho, na mesma categoria e carreira ainda que em instituição diferente".

Os professores auxiliares são contratados inicialmente por um período experimental de cinco anos. Após esse lapso, eles serão avaliados, segundo os critérios da universidade, após o que será apresentada proposta ao órgão colegiado competente para: a) mantê-lo na instituição com um contrato por tempo indeterminado; b) alternativamente, fazer com que o docente volte à situação anterior, o que, na prática, implica não prosseguir na carreira em regime de prazo indeterminado. Essa proposta, lastreada em um parecer administrativo, deverá ser aprovada por dois terços do colegiado competente (artigo 25o).

Nos concursos para catedrático é necessário que o candidato seja doutor e tenha a chamada agregação há mais de cinco anos (artigo 40o). Para associado, é necessário que o postulante seja doutor há mais de 5 anos (artigo 41o).  O cargo de auxiliar só pode ser disputado por quem detenha o título de doutor. Os antigos assistentes podiam prescindir do doutorado.

E termos bem genéricos, poder-se-iam fazer as seguintes equiparações com o modelo brasileiro: a) titular equivale a catedrático; b) associado equivale a professor associado (na carreira da Universidade de São Paulo); c) auxiliar tem correspondência com o cargo de professor doutor (na USP) ou de professor adjunto (nas universidades federais). E o assistente português equiparava-se ao professor assistente das universidades federais. 

As bancas de concurso (denominadas de "júris dos concursos") deverão ter um mínimo de cinco e um máximo de nove membros, com maioria de examinadores externos à instituição e com titulação superior à dos candidatos, salvo, por óbvio, nas seleções para catedrático (artigo 46o).

A avaliação faz-se pelo currículo apresentado, levando-se em conta o "desempenho científico" do postulante e "sua contribuição para o desenvolvimento e evolução da área disciplinar". A capacidade pedagógica é também apreciada, "tendo designadamente em consideração, quando aplicável, a análise da sua prática pedagógica anterior". Por último, o júri considerará "outras atividades relevantes para a missão da instituição de ensino superior que hajam sido desenvolvidas pelo candidato" (artigo 50o). Diferentemente do que se dá nos concursos para professor titular no Brasil, em Portugal inexiste a obrigação de se apresentar uma tese de cátedra, a espelho do modelo alemão.

O professor associado não apresenta uma tese como nossa livre-docência. Ele submete-se ao procedimento de agregação, que são provas nas quais se avaliam o currículo do candidato (um associado sem agregação), levando-se em conta sua produção acadêmica, suas atividades de formação de discípulos, seus projetos de pesquisa e pela prestação de serviços de interesse comunitário. Há, no entanto, a obrigatoriedade de se apresentar um relatório sobre uma disciplina ou grupo de disciplinas, no qual o autor examina problemas epistemológicos da área onde deseja se agregar. Esse relatório tem sido objeto de muitas críticas, sendo bastante comum encontrar-se um parágrafo de estilo no qual o candidato faz uma censura a esse critério de seleção. Finalmente, pode-se exigir do postulante a apresentação de um seminário ou de uma aula sobre um tema da área de conhecimento ou da especialidade vinculada às provas.[5]   

A estrutura da carreira e a ausência de teses de livre-docência e de titularidade faz com que ocorra em Portugal algo bem diverso do que ocorreu no Brasil. Aqui o título de doutor em Direito converteu-se em um brevê, a partir do qual o novo doutor pode almejar algum tipo de acesso à carreira docente em universidades de médio ou grande porte.  Em Portugal, o doutorado é ainda o opus magnum da carreira de um jurista. Não é sem causa que as teses portuguesas impressionam por sua extensão, profundidade e pela originalidade dos temas ali traçados. Além disso, teses mais antigas, como a de Menezes Cordeiro, sobre a boa-fé, ou de Pinto Monteiro, sobre a cláusula penal, ambas dos anos 1980, foram tão avançadas para a época que ainda hoje são obras fundamentais no Direito Privado. 

O regime de dedicação exclusiva (ou regime de dedicação integral à docência e à pesquisa, na USP) existe em Portugal, o qual "implica a renúncia ao exercício de qualquer função ou actividade remunerada, pública ou privada, incluindo o exercício de profissão liberal" (artigo 70o).  No entanto, admite-se que o docente exerça funções como presidente da República, membro do Governo, procurador-geral da República, juiz do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional, deputado à Assembleia da República, presidente ou membro de Câmara Municipal, assessor jurídico e várias outras. Nesses casos, o docente não sofre qualquer prejuízo em sua carreira.

Na prática, a maior parte dos catedráticos e associados das faculdades de Direito em Portugal são docentes em regime de tempo parcial. Tal se deve, em larga medida, a um aspecto muito peculiar: não há uma Advocacia-Geral da União ou equivalente em Portugal. Muitos ministérios contratam escritórios privados para emissão de parecer ou para ações judiciais e os docentes das faculdades de Direito mais respeitadas terminam por ser os escolhidos para tais funções. Outras funções importantes como membros de conselhos de administração ou fiscal de empresas públicas e privadas também são exercidas por professores de Direito. A título de exemplo, veja-se que Menezes Cordeiro, Pinto Monteiro, Jorge Miranda, José Joaquim Gomes Canotilho, Avelãs Nunes, Dário Moura Vicente, Pedro Pais de Vasconcelos, Carneiro da Frada, José de Oliveira Ascensão, e outros grandes juristas portugueses contemporâneos, não são professores em regime de dedicação exclusiva.   

Finalmente, a remuneração dos professores portugueses, conforme dados de 2009, é a seguinte: 1) catedrático (último nível): a) dedicação exclusiva - €4.664,97; b) sem dedicação exclusiva, com carga horária máxima:  €3.109,98; 2) associado com agregação (último nível): a) com dedicação exclusiva: €4.010,23; b) sem dedicação exclusiva, com carga horária máxima: €2.673,49; 3) auxiliar: a) com dedicação exclusiva: €3.191,82; b) sem dedicação exclusiva, com carga horária máxima: €2.127,88.[6]

O currículo nas Faculdades de Direito
As universidades possuem enorme autonomia para fixação de seus currículos. Diferentemente do que se tem afirmado em alguns fóruns, não há preponderância de disciplinas optativas nos currículos das duas maiores faculdades de Direito de Portugal, Lisboa e Coimbra.

Veja-se que, em Coimbra, há 37 disciplinas obrigatórias e 12 optativas, sendo que a regra de distribuição entre umas e outras é muito objetiva: "No segundo semestre de cada ano, o estudante deverá inscrever-se numa unidade curricular optativa de entre as oferecidas para cada ano curricular em concreto". Na prática, isso significa que o aluno poder-se-á matricular, ao longo do curso, em 1 disciplina por ano, o que perfaz uma mobilidade de quase 5% do total de cadeiras.[7]

Outra afirmação que se tem reproduzido equivocadamente sobre os currículos portugueses está na prevalência de disciplinas não jurídicas (Psicologia, Antropologia, por exemplo). Na Universidade de Coimbra, das 37 disciplinas obrigatórias, as únicas não jurídicas são: a) Economia Política 1 e 2 (matéria já lecionada por António de Oliveira Salazar); b) Medicina Legal (que não é bem um exemplo de uma disciplina não jurídica). Nas optativas, encontram-se Alemão Jurídico, Inglês Jurídico, Direito do Trabalho 2, Introdução ao Pensamento Jurídico Contemporâneo. Por sua vez, Direito Romano, História do Direito Português e Direito da União Europeia são obrigatórias.

Essa correlação entre matérias obrigatórias e optativas ou entre disciplinas jurídicas e não jurídicas é conservada, com ligeiras variações, na matriz curricular da Universidade de Lisboa. No primeiro semestre, os alunos têm aulas de Introdução ao Estudo do Direito 1, Teoria Geral do Direito Civil 1, Direito Romano, Direito Constitucional 1 e Economia 1. No segundo semestre, as disciplinas são Introdução ao Estado do Direito II, Teoria Geral do Direito Civil 2, Direito Constitucional 2 e História do Direito Português. No segundo semestre, o aluno escolhe uma optativa de entre estas: Economia 2, Filosofia do Direito, História das Ideias Políticas e Sociologia do Direito. Como não jurídicas, têm-se apenas Economia e História das Ideias Políticas.[8]

Conclusões
Nesta coluna, três pontos essenciais podem ser destacados. O primeiro está na aproximação da estrutura de carreira docente portuguesa e alemã. Estabilidade e exclusividade no topo associadas à precariedade e multiplicidade na base. O segundo está na conservação do doutorado como eixo fundamental da formação do professor português. Nesse aspecto, há diferença do modelo alemão, cujo opus magnum da carreira universitária é a tese de habilitação, equivalente a nossa livre-docência. O terceiro ponto está na rigidez curricular e na prevalência das disciplinas jurídicas. Há aqui um termo médio entre o modelo alemão e o brasileiro. Os portugueses também valorizam disciplinas jurídicas não dogmáticas, o que se percebe por uma maior abertura para estudos de Filosofia do Direito e História do Direito. O currículo mantém-se fechado, com baixa quantidade de optativas e, mais que isso, um número restrito de matérias não obrigatórias elegíveis ao longo do curso. Nem por essa razão é admissível dizer que o ensino jurídico público em Portugal seja de má qualidade.

Na próxima semana, examinar-se-á a formação discente, os concursos públicos, a literatura jurídica e a internacionalização no ensino jurídico português.  


[1] Informações extraídas de: http://www.uc.pt/fduc/corpo_docente. Acesso em 17-2-2015.

[2] Diário de Notícias, Lisboa, 2010. Disponível em: http://www.dn.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=1596295. Acesso em 20-2-2015.

[3] Disponível em: http://www.dges.mctes.pt/NR/rdonlyres/40A12447-6D29-49BD-B6B4-E32CBC29A04C/4616/DL_205_20091.pdf. Acesso em 22-2-2015.

[4] Art. 5o, item 1, Decreto-lei no 448, de 13.11.1979.

[5] Informações extraídas do Decreto-lei no 239, de 19 de junho de 2007, que regula a agregação em Portugal.  Disponível em: https://dre.pt/application/dir/pdf1sdip/2007/06/11600/39003903.pdf. Acesso em 22-2-2015.

[6] Tabela salarial dos professores universitários portugueses de 2009, disponível em: http://sigarra.up.pt/fpceup/pt/legislacao_geral.legislacao_ver_ficheiro?pct_gdoc_id=2190. Acesso em 22-2-2015. Podem ter ocorrido reduções em razão das contribuições extraordinárias instituídas pelo Governo português para atender aos controles da  União Europeia, após a crise econômica iniciada em 2008.

[7] Confira-se a matriz curricular da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra aqui: https://apps.uc.pt/courses/PT/programme/1556/2012-2013?id_branch=2361). Acesso em 22-2-2015.

[8] Informações extraídas do sítio da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, no campo Plano de Estudos. Disponível em: http://www.fd.ulisboa.pt/CursosAlunos/Licenciatura.aspx. Acesso em 22-2-2015. 

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Revista Consultor Jurídico, 4 de março de 2015, 8h00

segunda-feira, 2 de março de 2015

Princípios do Código Civil não autorizam juiz a atropelar a lei

1 de março de 2015, 9h02

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior e Sérgio Rodas

O Poder Judiciário brasileiro faz uso peculiar das cláusulas gerais do Código Civil, como a que exige a boa-fé nos negócios jurídicos e a que garante a função social do contrato. Com isso, decisões entram em choque com as leis, pois juízes as fazem com base nas suas visões de mundo. Essa é a opinião do jurista alemão Jan Peter Schmidt, pesquisador do Instituto Max-Planck de Hamburgo. Para ele, o Brasil deveria rever a função desses princípios e cláusulas gerais.

"O objetivo dessas cláusulas não é dar poder ao juiz para prevalecer sobre o legislador. A função delas é permitir que o juiz tome decisões razoáveis quando houver uma lacuna na legislação, para que, por exemplo, quando não houver normas, ele possa encontrá-las nas cláusulas gerais, que podem guiá-lo nessa direção", afirma Schmidt.

Em dezembro de 2014, ele falou sobre o princípio da boa-fé objetiva no Ciclo de Estudos de Direito Privado Contemporâneo, organizado pelo Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, que congrega sete universidades brasileiras e duas europeias. O evento foi coordenado pelo professor titular Ignacio Poveda, secretário-geral da USP, e pelo professor doutor Otavio Luiz Rodrigues Jr, tendo contado a presença de mais de 30 professores de Direito Privado de diversas regiões do Brasil, além uma centena de estudantes de graduação e pós-graduação. 

O destaque do evento foi o professor Reinhard Zimmermann, catedrático da Universidade de Ratisbona, diretor do Instituto Max-Planck de Hamburgo e estudioso do Direito Romano e do Direito Privado Europeu moderno.  Zimmermann é considerado um dos maiores nomes do Direito Privado Comparado no mundo e exerce importantes funções públicas ligadas à pesquisa e à docência na Alemanha, além de ter sido homenageado na África do Sul por seu papel na luta contra o apartheid nos anos 1980. Em São Paulo, ele foi recebido pelo reitor da Universidade de São Paulo, Marco Antonio Zago. Zimmermann falou sobre a dificuldade para que sejam criadas normas europeias de caráter mandatório para o direito interno dos Estados-membros da União Europeia. Antes disso, é preciso restabelecer uma cultura científica comum — algo que o jurista não acredita que acontecerá em breve. "Houve uma época em que muitas pessoas pensavam que nós iríamos gradualmente obter um Código Contratual, ou inclusive um Código Civil comum. E aí, nós estaríamos em direção a uma Europa com Estados federativos, talvez no modelo dos EUA. Porém, no momento, há um grande ceticismo em diversos países. Quando tentaram aprovar uma Constituição Europeia em 2005, a iniciativa falhou. Então, o clima na Europa é menos positivo hoje do que foi no passado", opina o professor.

Em entrevista à revista Consultor Jurídico — da qual também participou Otavio Luiz Rodrigues Junior, professor doutor de Direito Civil da USP e ex-bolsista do Instituto Max-Planck de Hamburgo —, Schmidt e Zimmermann comentaram as semelhanças e diferenças entre os ordenamentos jurídicos do Brasil e da Alemanha, destacaram a importância do Direito Romano na formação dos advogados e criticaram a fragmentação do Direito Privado em códigos específicos.

A entrevista publicada na ConJur é uma versão condensada do conteúdo original, cuja íntegra será publicada no volume 4 da Revista de Direito Civil Contemporâneo, de julho-setembro de 2015.

Leia a entrevista:

ConJur — Quais são as semelhanças e as diferenças, em geral, entre os ordenamentos jurídicos do Brasil e da Alemanha? 
Jan Schmidt
 — Se olharmos para as leis, para a Constituição, para os tribunais, encontraremos muitas semelhanças, especialmente no Direito Privado. Nossa tradição é, basicamente, a mesma. É uma tradição que começa com o Direito Romano, e, mais tarde, evolui com o desenvolvimento do Direito Romano na Idade Média. Toda essa tradição veio da Europa continental para o Brasil. Então, se um advogado alemão chegar aqui e olhar para o Código Civil brasileiro, ele irá encontrar muitas, muitas semelhanças com o código alemão. A forma de estruturar as leis, a forma de pensar o Direito, os conceitos que são usados, tudo isso é muito similar, e podemos dizer que brasileiros e alemães pertencem à mesma família jurídica nesse sentido.

Por outro lado, há muitas diferenças na forma como o Direito funciona na prática. Por exemplo, uma significativa diferença, e que tem grande impacto na prática diária, é como os processos judiciais no Brasil demoram muitos anos até serem finalmente resolvidos. E o Judiciário brasileiro está sobrecarregado de processos. Em contraste, o Judiciário alemão – quando comparado com os de outros países, não só com o brasileiro – funciona de forma relativamente rápida, e é relativamente barato. Então podemos dizer que o acesso à Justiça é muito mais fácil na Alemanha. No Brasil, grande parte da sociedade tem um acesso muito pequeno à Justiça, também por causa da falta de recursos financeiros, da falta de conhecimento sobre os direitos que eles possuem. Por isso, eles não podem ir aos tribunais para reclamar seus direitos, porque eles nem sabem que direitos têm. Então, nesses aspectos, há muitas diferenças. A desigualdade social é muito menor na Alemanha do que no Brasil.

ConJur — Professor Zimmermann, o senhor estuda as normas da União Europeia. E elas estão se tornando mais complexas, regulando mais matérias. Quais são os limites à competência de legislar da União Europeia? E o que é reservado aos países regularem?
Reinhard Zimmermann
 — Eu estudo o desenvolvimento do Direito Privado europeu. E o aspecto interessante é que nós tivemos um Direito Privado europeu por muitos séculos, que veio do Direito Romano e do Direito Canônico, e que terminou por ter aplicação, ainda que subsidiária, por toda a Europa. E seu declínio começou com a era da codificação, quando todos os Estados nacionais codificaram suas leis – o Direito francês teve seu "Code Civil" em 1804, depois vieram os da Itália e Alemanha, e por aí vai. Em 1957, a Comunidade Econômica Europeia foi fundada. Desde então, passo a passo, tentaram desenvolver um mercado interno e hoje nós temos uma moeda comum. Na sequência, apareceu a questão inevitável: "Nós também não precisamos de um Direito comum, de um Direito Privado comum?", especialmente um Direito Contratual, porque contratos podem ser o veículo do comércio internacional. E há esforços nesse sentido. Atualmente, existe um projeto no Parlamento Europeu. Trata-se de um direito opcional de compra e venda, mas não como se fosse um tratado. Ele não se aplicará automaticamente. As partes precisarão aderir a ele. Se você é inglês e eu sou alemão, e nós celebramos um contrato, poderemos querer que este se submeta às normas desse Direito europeu comum de compra e venda.

ConJur — Mas o senhor acredita que um dia haverá leis europeias aplicáveis automaticamente a todos os países, como um Código Civil comum, um Código Penal comum? E que os países somente legislarão sobre assuntos menores, como questões locais?
Reinhard Zimmermann
 — Houve uma época em que muitas pessoas pensavam que nós iríamos gradualmente obter esse Código Contratual, ou inclusive um Código Civil comum. Desse modo, nós estaríamos em direção a uma Europa com Estados federativos, talvez no modelo dos EUA ou de qualquer outro Estado federativo. Porém, no momento, há um grande ceticismo em diversos países. Quando tentaram aprovar uma Constituição Europeia em 2005, a iniciativa falhou. Então, o clima na Europa é menos positivo hoje do que foi no passado. Portanto, não está claro nem se conseguiremos obter um Código Contratual opcional, que é apenas um passo pequeno. Mas quando você pergunta se teremos algo como um Código Civil europeu algum dia, no momento, isso não é imaginável. Atualmente, eu sou cético.

ConJur — Hoje a União Europeia está sendo contestada, especialmente pelos países que mais sentiram os efeitos da crise econômica, como Grécia, Espanha e Portugal. Até mesmo o conflito na Ucrânia foi motivado pela divergência se o país deveria ou não ingressar na União Europeia. Nesse cenário de crise, o senhor acredita que é possível tornar as leis europeias obrigatórias? E elas deveriam ser obrigatórias?
Reinhard Zimmermann
 — Eu não acredito muito em leis europeias obrigatórias. Muitas das normas que tivemos foram mal redigidas e politicamente questionáveis. Não tivemos muitas experiências boas. Primeiramente, precisamos reconstruir uma cultura europeia comum, um conhecimento europeu comum. Isso porque, no momento, nós temos uma situação na qual advogados alemães tendem a se concentrar no Código Civil alemão, e ter discussões apenas entre eles próprios, e o mesmo ocorre na França, na Inglaterra, e por aí vai.  Somente nos últimos 20 anos é que advogados, com uma mente mais internacionalizada em termos de Direito Comparado e de História do Direito, se abriram e formaram grupos acadêmicos para estabelecer princípios comuns e para escrever livros de precedentes ou de doutrina.

A situação é um pouco parecida com a de 1814. Em 1814, Napoleão havia sido exilado na ilha de Elba e na Alemanha existiam vários estados individuais. Em 1804, a França havia editado seu Código Civil. Então, na Alemanha de 1814, uns queriam uma unificação legal, outros queriam inclusive uma unificação política. Na França, eles tinham esse código incrível, nós não deveríamos ter um código para todos os estados alemães, um código comum? Esse era o grande debate. Nisso, alguém disse: "Se nós obtivermos um código comum para a Alemanha, isso também impulsionará uma unificação política. Os estados irão se unir". Mas a opinião que prevaleceu foi a do jurista alemão mais importante até hoje, Friedrich Carl von Savigny. Ele argumentou: "Não. Vamos esperar até que tenhamos realmente construído um conhecimento comum, que tenhamos conceitos comuns, que tenhamos reafirmado nosso Direito de uma maneira que o torne suficientemente firme, que o torne suficientemente refinado, para daí procedermos à codificação". Ele defendia que codificar primeiro e depois desenvolver um conhecimento jurídico comum seria o caminho errado. Esse é mais ou menos o mesmo debate de hoje. Um código, se decretado por Bruxelas, seria visto como um instrumento imposto de cima para baixo, e eu penso que as coisas dever-se-iam desenvolver mais organicamente.

ConJur — Direito Romano, atualmente, é uma matéria optativa na maioria das faculdades de Direito do Brasil. Qual é a importância do Direito Romano para um estudante de Direito do século XXI?
Reinhard Zimmermann
 — Na Faculdade de Direito da USP não. É disciplina obrigatória.  O Direito Romano é a base da nossa cultura jurídica. Roma foi a única civilização antiga que desenvolveu um modelo muito sofisticado de Direito Privado. Esse Direito Privado foi herdado na Europa por meio de um processo que chamamos de "recepção". Da Idade Média em diante, ele se espalhou por toda a Europa. E é uma influência civilizadora e unificadora na Europa. Ele impulsionou o nível de sofisticação dos sistemas jurídicos europeus a níveis nunca imaginados pelo Direito tribal germânico. Isso se deu devido ao fato de ele ser um Direito aprendido, um Direito sofisticado que era estudado em universidades. Um Direito que se afirmou por si só. E virou a base para a cultura jurídica predominante na Europa.

Agora, qual é a importância dele hoje? Por um lado, ele dá a visão geral de um sistema jurídico que pode ser estudado com um interessante distanciamento histórico, e permite ver como um sistema jurídico funciona em certa sociedade. Por si só, isso é muito interessante. Um sistema jurídico altamente sofisticado no passado, e que não é mais parte de nosso presente, onde se pode ver o que os advogados fizeram, como os textos evoluíram, quais eram as normas jurídicas, a doutrina, quais eram as características da sociedade etc. O mais importante, porém, é que muitas das normas jurídicas e dos conceitos jurídicos ainda estão conosco nos dias atuais. E eles moldaram nossa mentalidade jurídica moderna. Eu acredito que é essencial que um estudante não aprenda apenas as leis de seu país. Tal se deve porque se você for olhar para as leis – e isso se aplica tanto ao Brasil quanto à Alemanha e a todos os outros países –, se você aprender Direito alemão, se você aprender seu próprio sistema, você se acomodará, pensará que é assim que as coisas devem ser. Na realidade, você só começa a compreender o seu sistema jurídico se o enxergar em comparação a outro. Mas a perspectiva comparativa não é suficiente, porque, se você olhar para o Direito alemão, o Direito italiano, o Direito brasileiro, o Direito francês etc., verá certos pontos em comum e certas diferenças. Para entender os pontos em comum e as diferenças, é preciso saber como eles evoluíram. E então, você precisa de uma abordagem histórica e comparativa. Não por uma questão de Direito Comparado ou de História do Direito, mas por uma questão de se tornar um advogado sofisticado e refinado para seu próprio sistema jurídico, que entende as leis, que entende se elas são boas leis ou más leis. Assim, para saber disso, é preciso saber por que elas evoluíram, como elas evoluíram, como isso aconteceu em outros países, e é necessário, de uma certa forma, tentar adotar uma perspectiva exterior. Essa perspectiva é de vital importância para o aprendizado jurídico, e eu gostaria que houvesse muito mais ênfase no currículo nessa matéria, e que muitas disciplinas especializadas fossem suprimidas. Atualmente, as universidades estão obcecadas em treinar seus estudantes para a prática, ensinando-lhes matérias práticas como fusões e aquisições, Direito Societário 1, Direito Societário 2, Direito Societário 3, e por aí vai. Isso é algo que as pessoas vão aprender com muito mais facilidade na prática. Mas elas podem aprender muito melhor na prática se tiverem um sólido conhecimento geral, uma cultura geral do desenvolvimento das normas jurídicas. Eu tive diversos estudantes que escreveram teses de doutorado sobre a história do Direito Romano que agora estão comandando divisões jurídicas em grandes multinacionais. Para uma pessoa que tem bons conhecimentos em matérias fundamentais, não é problema, mexendo aqui ou ali, para entender os temas da prática jurídica. Mas, se já na faculdade você se especializar nesse sentido, a partir dessa especialização, não é possível ir para outra área. É preciso ter a base geral e essa visão histórico-comparativa.

ConJur — O Código Civil brasileiro tem diversas cláusulas gerais, como as que estabelecem função social do contrato e da boa-fé. Na opinião do senhor, como os tribunais brasileiros aplicam essas cláusulas?
Reinhard Zimmermann
  - Essa é uma questão sobre o Direito brasileiro e é melhor que o Jan trate do assunto. Mas, eu gostaria de fazer algumas breves considerações. Na Alemanha, nós também temos cláusulas gerais. Isso não é algo específico do Direito brasileiro. Nós temos essas cláusulas gerais e, é claro, elas conseguiram se incutir porque permitem ao juiz ter uma considerável margem de apreciação dos valores constitucionais. Nós também possuímos uma constituição com um catálogo de direitos fundamentais e assim por diante. Nosso Código é bastante antigo e quando a Constituição foi promulgada nós adotamos a doutrina da Drittwirkung, que significa que a Constituição tem eficácia em relação ao Direito Privado, mas por intermédio das cláusulas gerais.  A maneira como as cláusulas gerais são interpretadas no Brasil, pelo que ouvi dizer, liga-se ao desenvolvimento da constitucionalização do Direito Privado, a qual me parece foi longe demais. Eu penso que sobre esse tópico o Jan pode dizer mais.

Jan Peter Schmidt — As cláusulas gerais permitem a constante adaptação do Código Civil às mudanças sociais. Por exemplo, se há uma cláusula que diz que você tem responsabilidade específica por objetos perigosos, então é possível aplicar essas regras a situações envolvendo um novo objeto que não existia na época em que o código foi promulgado. A norma é tão aberta que pode ser facilmente aplicável a uma nova situação. Se, em vez disso, houver uma legislação muito casuística, e, digamos, houver regras específicas para carros, para trens, para aviões, no momento em que surgir um novo meio de transporte, ele não se encaixará nessa legislação. Então, cláusulas gerais dão muito mais flexibilidade, e, em geral, são ferramentas jurídicas muito úteis. Outro exemplo: se houver uma norma proibindo os contratos que violem a ordem pública, os bons costumes, o juiz pode adaptar ou interpretar a situação de acordo com os pontos de vista da sociedade na época. Na Alemanha, houve casos na primeira metade do século XX em que um testamento por meio do qual uma pessoa não deixava seus bens para sua família, mas para seu ou sua amante, era considerado pelos juízes como contrário aos bons costumes e, por isso, declarado nulo. Em nossa época, essas opiniões, esses pontos de vista mudaram, nós somos muito mais liberais, então a visão da maioria não é mais tão cética. Atualmente, o juiz declarará válido o testamento. Veja, a norma não mudou nada, ainda é a norma que diz que, no Direito Contratual, uma transação jurídica, um negócio jurídico, que viole os bons costumes é nulo, e ela poderá ser interpretada diferentemente em épocas diferentes. Isso é mais uma vantagem da flexibilidade.

Mas, claro, as cláusulas gerais têm uma grande desvantagem, na medida em que elas criam incerteza jurídica e talvez deem muito poder ao juiz. Dito de outro modo: talvez as cláusulas não deem tanto poder ao juiz, mas o juiz pode acreditar que agora ele tem muito poder. Então, ele pode ir longe demais nos seus poderes discricionários. E isso é algo que pode ser observado hoje em dia em alguns tribunais brasileiros, quando determinados juízes  revelam uma certa tendência a desprezar as normas específicas que foram promulgadas pelo legislador, e, em vez disso, preferem se basear diretamente no princípio da boa-fé, por exemplo, e recorrer a ele para solucionar o caso, mesmo se a solução for contrária ao que a norma específica diz. Então, na realidade, eles invertem as decisões que o legislador tomou. E o objetivo das cláusulas não é dar poder ao juiz para prevalecer sobre o legislador. A função delas é permitir que o juiz tome decisões razoáveis quando  existir uma lacuna na legislação, para que, por exemplo, quando não houver normas, ele possa encontrá-las nas cláusulas gerais, que podem guiá-lo nessa direção. Ainda há algum trabalho a ser feito quanto a isso. É também muito importante que a doutrina jurídica ajude os tribunais nesse aspecto, elabore a fundamentação teórica para o uso correto das cláusulas gerais, de forma que haja equilíbrio entre a equidade, entre decisões justas, e decisões que fazem a justiça no caso concreto, mas também que garantam um nível suficiente de segurança jurídica. Neste momento, eu observo uma forte preferência dos juízes brasileiros pela equidade, pela decisão supostamente equitativa, muitas vezes em detrimento da segurança jurídica. É preciso restaurar o equilíbrio, até porque a justa solução em um caso concreto, muitas vezes, depende da opinião do juiz, e o que ele considera uma solução justa pode ser difícil de justificar sob um ponto de vista objetivo. Frequentemente, você pode encontrar decisões que são, na realidade, muito injustas, porque elas concedem um privilégio a uma pessoa específica em detrimento de diversas outras. Alguns juízes brasileiros, às vezes, podem revelar uma visão muito estreita de algumas questões. Eles apenas olham para o caso concreto e buscam oferecer justiça a essa pessoa específica, mas esquecem que as consequências para a sociedade como um todo podem ser negativas.       

ConJur — Professor Jan Peter Schmidt, o senhor escreveu uma tese sobre o processo de codificação civil no Brasil. Há no Congresso Nacional um projeto de um novo Código Comercial, que unificaria diversas leis sobre o assunto existentes no país. Qual é a opinião do senhor sobre isso?
Jan Schmidt
 — Mesmo sem ter estudado esse projeto em detalhe, sou crítico dessa iniciativa por uma série de razões. A ideia de ter um código civil e comercial unificado é, na realidade, muito moderna. Muitas jurisdições, tanto na Europa quanto na América Latina, adotaram essa ideia. O último exemplo é o Código Civil e Comercial da Argentina, que foi promulgado em setembro de 2014.  Há vários argumentos em favor dessa solução, que já foram apresentadas por Augusto Teixeira de Freitas no século XIX. É mais coerente, é mais simples… Na realidade, é muito difícil justificar a solução separada, a codificação separada do Direito Comercial. A codificação separada do Direito Comercial, que ainda encontramos em muitos países, como Alemanha e França, por exemplo, existe mais por razões históricas. Tal se deve porque, na Idade Média, o Direito Comercial se desenvolveu autonomamente como uma matéria a princípio não regulada pelos Estados, e sim como um Direito que os comerciantes criaram para eles.

No caso brasileiro, há outro detalhe interessante: desde o tempo de Teixeira de Freitas, então durante quase 150 anos, o Brasil havia almejado ter um código unificado. Com o Código de 2002, o sonho finalmente virou realidade. O fato de que pouco mais de dez anos depois alguns já querem dar volta atrás, é algo que expressa, de maneira bastante eloquente, uma certa obsessão brasileira com a reforma de códigos inteiros, apesar de a experiência mostrar claramente as dificuldades e os riscos que isso implica. Tanto o Código Civil de 1916 quanto o Código de 2002 foram adotados somente depois de processos legislativos muito longos e complicados, e em ambos casos a qualidade sofreu por isso. A lição a ser aprendida disso, que também é confirmada pela experiência de outros países, é que, no tema da reforma legislativa, é melhor proceder com pequenos passos e não querer fazer tudo ao mesmo tempo. Compreendo que os comercialistas não estejam satisfeitos com algumas regras do Código Civil. Mas, não vejo porque esses problemas não poderiam ser solucionados por intermédio de reformas pontuais. De onde vem a necessidade de um novo Código e quem garante que as regras dele seriam de uma melhor qualidade?

Aliás, há uma discussão semelhante na área do Direito de Família, onde soube que existe um projeto para a criação de um Código das Famílias. Contra essa ideia podem ser invocados basicamente os mesmos argumentos que os utilizados contra um novo Código Comercial. Não é preciso ser um profeta para predizer que o projetado Código das Famílias, por causa da amplitude e complexidade do tema, conteria muitas falhas técnicas e criaria muito contradições em face de regras do Código Civil. Se se acha que o Direito da família precisa de reformas, façam-se então essas reformas dentro do Código Civil. O Código Civil sempre respeitou a autonomia principiológica do Direito de Família. Não é necessário ter um Código autônomo para isso.

Reinhard Zimmermann — Se você olhar para o Direito Privado, há relações negociais consumeristas, e se você tirá-las e colocá-las em um código específico, você terá um código do consumidor especializado. E se você tirar os negócios jurídicos de natureza comercial, você terá um código comercial especializado. E então, o que sobra? O que sobra do Direito Privado, do núcleo do Direito Privado? Não muita coisa, apenas certas relações negociais de caráter não comercial entre indivíduos. E isso significa a completa desintegração do Direito Privado. Trata-se de algo para se arrepender, além de ser contra a corrente geral do desenvolvimento em termos comparados nos dias de hoje.

ConJur — Professor Reinhard Zimmermann, o senhor morou na África do Sul nos tempos do apartheid. Gostaria que contasse um pouco sobre sua vivência naquele país e de sua experiência como professor lá em tempos tão difíceis.
Reinhard Zimmermann
 — Eram tempos difíceis na África do Sul. Existia o apartheid universitário. Ou seja, havia universidades para brancos, universidades para negros, universidades para indianos. Eu estava em uma universidade para brancos. E as universidades para brancos eram subdivididas entre as para os descendentes dos imigrantes holandeses, os bôeres, e as universidades inglesas. Estas e a University of Cape Town [Universidade da Cidade do Cabo], onde eu estava, eram as mais influentes. Elas possuíam um espírito liberal inglês. A universidade se opunha ao regime do apartheid. Embora a universidade fosse destinada aos brancos, havia uma cota, o que significava que o governo tinha o poder de estabelecer cotas para estudantes que não eram brancos em universidades para brancos. Mas nenhuma cota jamais foi estabelecida. Então, na realidade, nós éramos livres para aceitar estudantes negros. E, durante o meu período na University of Cape Town, o número de estudantes negros aumentou consideravelmente. Era, porém, muito difícil, porque a maior parte das escolas para negros era de qualidade inferior asa das escolas para brancos. Então, os estudantes negros chegavam despreparados à minha universidade e nós tínhamos de baixar nossos padrões. Ora, se quiséssemos um número significativo de estudantes negros, teríamos duas opções: baixar os padrões de qualidade acadêmica ou suprir aquilo em que as escolas secundárias haviam sido falhas em suas atribuições.  Fizemos a escolha, ao meu ver, certa: nós introduzimos cursos específicos, o que fazia com que a maioria dos estudantes negros que desejávamos ver aceitos na universidade tivesse de estudar dois anos a mais para chegar ao nível que queríamos que eles tivessem. Isso era visto como discriminação: "Por que os negros têm que estudar mais tempo do que os brancos?", e por aí vai. Então, havia todos esses tipos de problemas, quando, na verdade, nosso desejo era permitir que mais negros tivessem acesso à universidade mas sem comprometer os níveis de qualidade acadêmica.

ConJur — Os estudantes negros tinham de pagar pela faculdade?
Reinhard Zimmermann
 — Os estudantes tinham de pagar para estudar na universidade. Note que a University of Cape Town é uma universidade privada, embora receba muito dinheiro do Estado. Ela tinha mensalidades, mas também bolsas de estudo. Havia bolsas de estudo particularmente para estudantes negros. Então, nós tínhamos um número crescente de estudantes negros, mas a próxima questão era "onde eles poderão morar?". Nós éramos uma universidade com estrutura para residência estudantil. As pessoas moravam no campus, em residências estudantis que foram reservadas para brancos por efeito da lei que estabeleceu o território de cada grupo étnico. Então, negros tinham de viver fora da universidade. A University of Cape Town estava em uma área de brancos. Mas, na realidade, nós permitimos que todos os nossos estudantes morassem no campus e o governo fechou os olhos para isso.    

Em 1986, as coisas ficaram realmente ruins quando foi decretado estado de emergência e o Estado de Direito foi abolido. Quando eu residia na Cidade do Cabo, eu sempre pensava: "O que fazer quando se está vivendo em uma sociedade injusta?" e também me indagava: "Nós podemos funcionar normalmente em uma situação anormal?"

Eu sempre pensei, no entanto, que seria positivo se existissem "fachos de luz", onde nós providenciaríamos a educação de acordo com os valores liberais, com base na neutralidade política, nos direitos humanos e no Estado de Direito. Eu acreditava que era muito importante que nós instilássemos esses valores, pois algo iria crescer a partir daí. Mas se tornou mais difícil manter essa ideia quando o Estado de Direito foi abolido. Nessa época, eu era o decano da minha faculdade e presidente da South African Law Teachers Association [Associação Sul-Africana de Professores de Direito]. Na ocasião, era meu desejo que a South African Law Teachers Association protestasse contra o fato de que o Estado de Direito havia sido suprimido. Nós elaboramos uma resolução dizendo apenas que: "Se pregarmos na universidade algo que não seja condizente com o mundo real, com o que acontece lá fora, tal situação prejudicará nossa posição como professores de Direito". Isso não foi levado adiante, e eu deixei o cargo. Minha decisão baseou-se na seguinte reflexão: nos tempos de Hitler, na Alemanha, quando os advogados não disseram nada quando havia violência e os judeus estavam sendo assassinados, o sistema jurídico se corrompia, os advogados e a maioria das organizações oficiais de advogados ficaram quietos. Mas mesmo dentro da nossa universidade, nós tínhamos diversas discussões nessa época sobre o que fazer diante desse problema. Havia dois slogans. Um deles era "Libertação antes de educação". Nós não podemos ensinar em uma sociedade anormal e nesse estado de emergência. Primeiro é preciso haver libertação, e, aí, nós poderemos educar apropriadamente. Eu estava sempre no lado ligeiramente mais conservador da minha universidade, dizendo "Não! É muito importante que continuemos a educar da melhor forma que pudermos". E aí, por meio da educação, podemos chegar a situação na qual os novos valores triunfem sem uma revolução violenta. Houve semanas em que a polícia foi ao campus, os estudantes protestaram e foram presos. Aqueles foram dias selvagens.

ConJur – Em 2006, o senhor recebeu um doutorado honoris causa da University of Cape Town em reconhecimento a sua contribuição à restauração do estado de direito durante o apartheid. O que esse título significa para o senhor?
Reinhard Zimmerman
 — Bem, como um acadêmico, é normalmente algo muito especial receber uma distinção universitária como essa. Como político, você também pode receber um diploma honorário como reconhecimento de seus feitos políticos. Nesse caso, quando eu fui para a África do Sul, eu era um estrangeiro, um alemão, e é sempre um pouco estranho interferir na política do Estado que lhe acolheu, por razões óbvias. Em primeiro lugar, eu apenas cumpri meu dever como acadêmico: ensinei e pesquisei. Mas, em seguida, quando eu fui eleito para cargos de responsabilidade de direção universitária e como presidente da Associação de Professores de Direito da África do Sul, para a qual fui eleito porque eu poderia servir de ponte entre as comunidades de língua inglesa e africâner, eu tive de assumir posições públicas. Isso é algo que sempre tentei sustentar como professor: em nossa condição temos de professar alguma coisa, temos que professar valores, professar uma certa integridade moral e jurídica, nós temos de fazer nosso melhor para preservar a integridade do sistema jurídico. Bem, e foi isso que eu tentei fazer. Em muitas ocasiões, enfrentei resistências de setores mais radicais. Em relação a eles eu argumentava que não poderíamos agir do mesmo modo que o Governo. Nossas práticas tinham de ser diferentes. Nesse aspecto, eu tive muita sorte de conviver em uma comunidade acadêmica formada por colegas que também eram amigos. Havia diferenças entre nós, mas elas eram resolvidas por meio do diálogo. Nós podíamos confiar uns nos outros, o que era muita coisa em um tempo no qual nós éramos vigiados e nossos telefones monitorados. Esse título de doutor honoris causa, por tudo isso, é muito especial para mim.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Sérgio Rodas é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 1 de março de 2015, 9h02