Powered By Blogger

terça-feira, 28 de abril de 2015

A teoria do adimplemento substancial na doutrina e na jurisprudência

Por Flávio Tartuce – Revista Carta Forense

A teoria do adimplemento substancial goza de grande prestígio doutrinário e jurisprudencial na atualidade do Direito Contratual Brasileiro. Por essa teoria, nos casos em que o contrato tiver sido quase todo cumprido, sendo a mora insignificante, não caberá sua extinção, mas apenas outros efeitos jurídicos, como a cobrança ou o pleito de indenização por perdas e danos.

A origem da teoria se encontra no Direito Costumeiro Inglês, especialmente na utilização do termo substancial performance, sendo mencionado como um dos seus primeiros casos a contenda Boone v. Eyre, de 1779. No Código Civil Italiano, há previsão expressa sobre o adimplemento substancial, no seu art. 1.455, segundo o qual o contrato não será resolvido se o inadimplemento de uma das partes tiver escassa importância, levando-se em conta o interesse da outra parte.

No caso brasileiro, a despeito da ausência de previsão expressa na codificação material privada, tem-se associado o adimplemento substancial com os princípios contratuais contemporâneos, especialmente com a boa-fé objetiva e a função social do contrato. Nesse sentido, na IV Jornada de Direito Civil, evento promovido pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em 2006, aprovou-se o Enunciado n. 361 CJF/STJ, estabelecendo que “O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475”. Vale lembrar que o art. 475 do Código Civil trata do inadimplemento voluntário ou culposo do contrato, preceituando que a parte lesada pelo descumprimento pode exigir o cumprimento forçado da avença ou a sua resolução por perdas e danos.

Pontue-se que diante de divergência sobre qual princípio fundamentaria a teoria, aprovou-se um enunciado doutrinário em sentido amplo naquele evento, para satisfazer as duas correntes então existentes. De toda sorte, esclareça-se que, na opinião deste autor, o esteio principiológico do adimplemento substancial é a função social do contrato (art. 421 do CC), diante da busca de preservação da autonomia privada e da conservação do negócio jurídico.

No âmbito da jurisprudência superior, numerosos são os arestos que aplicam o adimplemento substancial. Partindo para os casos concretos, de início, incidiu-se a ideia à hipótese envolvendo a busca e apreensão de veículo objeto de venda com reserva de domínio, confirmando-se a impossibilidade de retomada do bem, com a consequente extinção do negócio (STJ, Agravo n. 607.406/RS, QUARTA TURMA, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, julgado em 09.11.2004, DJ 29.11.2004, p. 346). O mesmo caminho foi percorrido para afastar a liminar em ação de busca e apreensão concernente a alienação fiduciária em garantia de bem móvel, considerando-se o pequeno montante da dívida em relação ao valor do bem e o fato de ser a coisa essencial à atividade da devedora (STJ, REsp. 469.577/SC, QUARTA TURMA, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, julgado em 25.03.2003, DJ 05.05.2003, p. 310).

Mais recentemente, e na mesma linha, o Tribunal da Cidadania aplicou a teoria substantial performance a contrato de leasing celebrado entre duas empresas, uma financeira e uma empresa transportadora de mercadorias. O contrato dizia respeito à aquisição de 135 carretas, para a atividade da última. Como houve o adimplemento de 30 das 36 parcelas, correspondente a cerca de oitenta e três por cento do contrato, foi confirmado o afastamento da então ação reintegração de posse das carretas (STJ, REsp. 1.200.105/AM, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, j. 19.06.2012, DJe 27.06.2012). O aresto também traz como conteúdo a função social da empresa, pelo fato de que a retomada dos bens móveis fariam com que a atividade da devedora se tornasse totalmente inviável.

A evidenciar o grande desafio da ideia de cumprimento relevante, deve-se analisá-lo casuisticamente, tendo em vista a finalidade econômico-social do contrato e dos negócios envolvidos. Sobre a análise dos critérios para a aplicação da teoria, elucida Anderson Schreiber que “o atual desafio da doutrina está em fixar parâmetros que permitam ao Poder Judiciário dizer, em cada caso, se o adimplemento afigura-se ou não significativo, substancial. À falta de suporte teórico, as cortes brasileiras têm se mostrado tímidas e invocado o adimplemento substancial apenas em abordagem quantitativa. A jurisprudência tem, assim, reconhecido a configuração de adimplemento substancial quando se verifica o cumprimento do contrato ‘com a falta apenas da última prestação’, ou o recebimento pelo credor de ‘16 das 18 parcelas do financiamento’, ou a ‘hipótese em que 94% do preço do negócio de promessa de compra e venda de imóvel encontrava-se satisfeito’. Em outros casos, a análise judicial tem descido mesmo a uma impressionante aferição percentual, declarando substancial o adimplemento nas hipóteses ‘em que a parcela contratual inadimplida representa apenas 8,33% do valor total das prestações devidas’, ou de pagamento ‘que representa 62,43% do preço contratado’.” (A boa­ fé objetiva e o adimplemento substancial. Direito contratual. Temas atuais. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes e TARTUCE, Flávio. São Paulo: Método, 2008, p. 140).

De fato, como pondera o jurista, a análise do adimplemento substancial não deve ser meramente quantitativa, levando-se em conta somente o cálculo matemático do montante do cumprimento do negócio. Deve-se considerar também o aspecto qualitativo, afastando-se a sua incidência, por exemplo, em situações de moras sucessivas, purgadas reiteradamente pelo devedor, em claro abuso de direito.

A propósito, como têm pontuado doutrina e jurisprudência italianas, a análise do adimplemento substancial passa por dois filtros. O primeiro deles, é objetivo, a partir da medida econômica do descumprimento, dentro da relação jurídica existente entre os envolvidos. O segundo é subjetivo, sob o foco dos comportamentos das partes no processo contratual (CHINÉ, Giuseppe; FRATINI, Marco; ZOPPINI, Andrea. Manuale di Diritto Civile. Roma: Nel Diritto, IV Edizioni, 2013, p. 1369; citando a Decisão n. 6463, da Corte de Cassação Italiana, prolatada em 11 de março de 2008). Acreditamos que tais parâmetros também possam ser perfeitamente utilizados nos casos brasileiros, incrementando a sua aplicação em nosso País.

 

Novo CPC e o Direito Civil - Evicção

03/03/2015 por José Fernando Simão publicado na Revista Carta Forense

 

Demorei para ler o projeto de Código de Processo Civil aprovado em 2014 pelo Congresso Nacional e que, ainda, aguarda a sanção presidencial para se tornar lei.

 

Como civilista que sou, tendo vivido a aprovação do Código Civil em 2002, penso que a revogação de um Código por meio da aprovação de um novo é um momento histórico na vida do país. É de se indagar se essas radicais mudanças, muitas vezes com rupturas históricas, efetivamente são soluções melhores para o sistema. A pergunta que se faz é: vale a pena trocar de Código?

 

Por mais que leia e ouça os processualistas discorrerem a respeito da lei aprovada, não me convenci que essa mudança, com seu enorme custo para o Brasil, tenha sido efetivamente positiva.

 

E pior, nem poderia utilizar o argumento do conformismo nesse momento, qual seja, como agora é lei, nada mais pode ser feito. Temos uma lei aprovada e não sancionada. Será que virá a ser lei? Já houve na História do Brasil  um Código Penal que foi revogado em plena vacatio legis[1].

 

Contudo, apesar dessa incerteza, de não se saber se haverá veto a um ou alguns dispositivos, a ansiedade pós-moderna exige que se estude a lei aprovada. A lei que me baseio foi-me enviada por Flávio Tartuce com uma ressalva: “os artigos podem sofrer mudanças em sua numeração”.

 

Por uma questão de boa-fé objetiva e dever de informar, faço a mesma ressalva. Ainda, há de ressaltar que como primeiras reflexões, servirão para iniciar um debate e não para sua conclusão.

 

Um dos temas de intersecção entre o direito material e o processual é o da evicção. Matéria da teoria geral dos contratos, evicção ocorre quando o adquirente de determinada coisa a perde para seu real proprietário. É o chamado vício de direito. Vem do termo latino ex vincere, ou seja, vencer. Verifica-se evicção quando determinada pessoa adquire bem de alguém que não é seu real proprietário. Exemplificamos. Se o comprador adquire um imóvel de quem achava ser o dono, mas a matrícula do bem era falsa, o real proprietário pode ingressar em juízo, reivindicando a propriedade para si e o alienante responderá perante o comprador pela perda da coisa.

 

Em termos legais, a matéria é tratada pelo Código Civil e que cuida de questão processual é a disposta no artigo 456 que dispõe:

 

“Art. 456. Para poder exercitar o direito que da evicção lhe resulta, o adquirente notificará do litígio o alienante imediato, ou qualquer dos anteriores, quando e como lhe determinarem as leis do processo.

 

Parágrafo único. Não atendendo o alienante à denunciação da lide, e sendo manifesta a procedência da evicção, pode o adquirente deixar de oferecer contestação, ou usar de recursos”.

 

Cabe, agora, cotejarmos os dispositivos do atual CPC e do aprovado:

 

CPC atual

CPC aprovado

Art. 70. A denunciação da lide é obrigatória:

I – ao alienante, na ação em que terceiro reivindica a coisa, cujo domínio foi transferido à parte, a fim de que esta possa exercer o direito que da evicção lhe resulta;

Art. 125. É admissível a denunciação da lide, promovida por qualquer das partes:

I – ao alienante imediato, no processo relativo à coisa cujo domínio foi transferido ao denunciante, a fim de que possa exercer os direitos que da evicção lhe resultam;

Parágrafo único.
O direito regressivo será exercido por ação autônoma quando a denunciação da lide for indeferida, deixar de ser promovida ou não for permitida

Note-se que, de início, a denunciação da lide não é mais obrigatória nos termos do CPC aprovado. É verdade que grande parte da doutrina já afirmava que essa obrigatoriedade não deveria ser considerada. Silvio Venosa afirma que cabe ao réu efetivar a denunciação, mas, a partir daí, não se formam cadeias de lides secundárias como “muitos juízes erradamente permitem. A lei, ao determinar a intimação e não a citação do segundo denunciado, não o transforma automaticamente em parte (vol. 2, 13ª edição, Atlas, 2013, p. 581).

 

A questão se resolve com o novo CPC. O adjetivo “obrigatória” desaparece, restando ao réu (evicto), optar pela denunciação para criar a lide secundária quanto ao adquirente. E se o réu não optar pela denunciação, terá ação autônoma de regresso (parágrafo único do art. 125 do novo CPC).

 

Como se interpreta, então, o verbo “notificará” do art. 456 do Código Civil? Duas possíveis soluções:

 

a) “notificará” passa a ser letra morte da lei, pois o processo civil permite ação de regresso autônoma, logo a notificação passa a ser desnecessária. No conflito de normas, a lei especial se sobrepôs à geral.

b) “notificará” continua a impor o dever de notificar, seja por meio judicial ou extrajudicial, sem se criar lides secundárias sucessivas. E qual a sanção para a desobediência do evicto? A perda do direito de cobrar do adquirente o que da evicção resulta.

 

Essa segunda corrente segue orientação já superada na vigência do CPC de 1973 e, agora, fica ainda mais obsoleta. Já não era esse o entendimento do STJ:

 

DENUNCIAÇÃO DA LIDE. AUSÊNCIA DE OBRIGATORIEDADE. Esta Corte tem entendimento assente no sentido de que “direito que o evicto tem de recobrar o preço, que pagou pela coisa evicta, independe, para ser exercitado, de ter ele denunciado a lide ao alienante, na ação em que terceiro reivindicara a coisa” (REsp 255.639/SP, Rel. Min. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, Terceira Turma, DJ de 11/06/2001) (AgRg no Ag 917.314/PR, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 15/12/2009, DJe 22/02/2010

 

A segunda questão diz respeito à denunciação per saltum, ou seja, aquela promovida pelo evicto, nos termos do art. 456 do CC, contra “o alienante imediato, ou qualquer dos anteriores”. Mas isso é tema de nossa próxima Coluna.

 


[1].   O conhecido Projeto Nélson Hungria, 1963, que pretendia substituir o Código Penal de 1940, devidamente revisado, foi promulgado pelo Decreto-Lei 1.004, de 21 de outubro de 1969, retificado pela Lei 6.016/1973. O Código Penal de 1969, como ficou conhecido, teve sua vigência sucessivamente postergada, até final revogação pela Lei 6.578/1978

 

Novo CPC e o direito civil - Evicção - Segunda parte

02/04/2015 por José Fernando Simão publicado na Revista Carta Forense

 

Aprovado e sancionado o novo CPC, em 16 de março de 2015, com a vacatio legis de 1 ano, art. 1045, a lei 13.105/215 passa a ser uma realidade.

 

A matéria de evicção sofre, então, profunda alteração. Isso porque o art. 456 do Código Civil é revogado pelo art. 1072, II do novo CPC.

 

Dispõe o artigo em questão:

“Art. 456. Para poder exercitar o direito que da evicção lhe resulta, o adquirente notificará do litígio o alienante imediato, ou qualquer dos anteriores, quando e como lhe determinarem as leis do processo.

Parágrafo único. Não atendendo o alienante à denunciação da lide, e sendo manifesta a procedência da evicção, pode o adquirente deixar de oferecer contestação, ou usar de recursos”.

Isso gera de imediato a seguinte consequência: a denunciação da lide para as hipóteses de evicção passa a ser regulamentada exclusivamente pelo CPC, em seu artigo 125. Não haverá mais qualquer contradição entre as regras de evicção como existe atualmente.

 

Isso porque, atualmente, o atual CPC proíbe a chamada denunciação per saltum, conforme regra do art. 73:

Art. 73. Para os fins do disposto no art. 70, o denunciado, por sua vez, intimará do litígio o alienante, o proprietário, o possuidor indireto ou o responsável pela indenização e, assim, sucessivamente, observando-se, quanto aos prazos, o disposto no artigo antecedente

 

Note-se que estabelece o atual CPC uma regra de denunciações sucessivas em que o evicto demanda apenas o alienante direto e o alienante direto aquele com quem teve relação jurídica e assim sucessivamente.

 

O art. 456 do Código Civil previa regra distinta: caberia ao evicto escolher se demandaria o alienante direto ou qualquer outro participante da cadeia de alienações.

 

Trata-se de desdobramento do princípio da função social do contrato em sua eficácia externa. Tal faceta da função social indica que se trata de abrandar o princípio da relatividade dos efeitos do contrato (res inter alios acta aliis neque nocet nec prodest – o que foi feito entre uns, não pode beneficiar, muito menos prejudicar outros), que não pode ser entendido como mera relação individual, devendo-se considerar os seus efeitos econômicos, ambientais e até mesmo culturais. O contrato não pode ser fonte de prejuízo para a sociedade.

 

A doutrina tem dado como exemplo da eficácia externa a tutela externa do crédito. Um dos exemplos pelo qual um contrato acaba por atingir terceiro que dele não fez parte é o da vítima do dano decorrente de acidente automobilístico.

 

Pela teoria tradicional, caso certa pessoa seja vítima de um dano (colisão de veículos), a vítima demanda o causador do dano diretamente. Este, se tiver seguro cuja cobertura abranja tal espécie de dano, terá a opção de, por meio de denunciação da lide, criar a lide secundária contra o segurador. Frise-se: se o causador do dano quiser, pois pode ele optar por assumir a responsabilidade sem se valer do contrato de seguro.

 

Contudo, a doutrina admite que os efeitos do contrato de seguro (firmando entre o causador do dano e o segurador) beneficiem a vítima que do contrato não fez parte. Assim, a vítima pode demandar diretamente o segurador para receber a indenização.

 

Por uma questão de prova, como o segurador não tem ciência dos fatos, a jurisprudência exige que a ação seja proposta também contra o segurado e não apenas contra o segurador (STJ. 2ª Seção. REsp 962.230-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 8/2/2012 (recurso repetitivo).

 

Essa questão da inclusão do segurado como corréu é irrelevante ao direito civil, pois o que interessa é que se admite que a vítima se beneficie dos efeitos de um contrato do qual é estranha. Supera-se a relatividade dos efeitos do contrato quando um estranho recebe seus benefícios sem expressa previsão legal.

 

A previsão do art. 456 é exatamente a admissão de que os efeitos de um contrato de compra e venda atinjam um terceiro que dela não fez parte. Explico. Se Tício vendeu o imóvel para Mévio e Mévio vende para Caio, sendo que Caio perde o imóvel para o real proprietário, pela teoria tradicional Caio poderia demandar apenas Mévio, pois foi com Mévio que contratou.

 

Pela regra do art. 456, como decorrência do princípio da função social, Caio pode demandar Mévio ou Tício, ou mesmo quem vendeu o imóvel para Tício.

 

A conclusão que se chegou, então, é que por força do Código Civil, a denunciação per saltum passou a ser admitida no sistema para o caso de evicção, já que o art. 456, parágrafo único é lei especial e afasta o alcance da regra geral do art. 73 do atual CPC.

 

Com a revogação do art. 456 do Código Civil a pergunta que resta é: continua facultado ao evicto demandar qualquer um dos alienantes por meio da denunciação per saltum?

 

A resposta é negativa. O princípio não pode ser aplicado se o legislador revoga a regra que o previa. Note-se: se regra não existisse o princípio teria plena aplicação. Seria hipótese de vácuo da lei.

 

Quando a regra existe e é expressamente revogada, há um imperativo do ordenamento parta que, naquele caso, o princípio ceda, deixe de ter eficácia.

 

Aliás, os princípios podem ceder diante do texto expresso de lei sem maiores problemas. Quando o Código Civil atribui ao possuidor de má-fé indenização por benfeitorias necessárias (art. 1220), há uma prevalência da vedação ao enriquecimento sem causa sobre a boa-fé.

 

A revogação do art. 456 e o texto do art. 125, I do novo CPC pelo qual a denunciação é possível ao alienante imediato e a não reprodução da regra do art. 73 do atual CPC indicam que o princípio da relatividade dos efeitos se sobrepôs ao da função social quanto à evicção.

 

Mas a função social não é norma de ordem pública que não pode ser afastada pela vontade das partes? Sim, mas o princípio cede por força de lei para dar espaço ao tradicional res inter alios acta.

 

Novas considerações sobre a possibilidade de ressarcimento dos honorários advocatícios contratuais dentro da própria ação judicial

02/04/2015 por Arthur Rollo

 

Essa questão já foi tratada em capas do “Carta Forense”, nas quais foram defendidas as posições favorável e contrária. De lá para cá a jurisprudência evoluiu bastante acerca do tema, mas ainda existem julgados que confundem os honorários advocatícios contratuais com os honorários sucumbenciais e que entendem, erroneamente “data venia”, que os honorários advocatícios contratuais dizem respeito apenas aos sujeitos que contrataram e que não podem ser cobrados do réu inadimplente.

 

O fundamento da nossa tese é a necessidade de reparação integral do dano. É bastante óbvio que se alguém, por descumprimento contratual, passa a ser credor de vinte mil reais e precisa contratar advogado para receber esse montante ficará desfalcado naquilo que pagou a título de honorários advocatícios contratuais. Em se tratando de descumprimento de obrigação de fazer, a questão piora. Não é sequer justo que aquele que compele a outra parte a contratar advogado para exigir o cumprimento contratual seja judicialmente condenado apenas a cumprir a obrigação. Nesses casos, além de fazer justiça no tocante ao retorno ao “status quo”, a condenação do inadimplente ao pagamento dos honorários contratuais serve de desestímulo a futuros descumprimentos.

 

A jurisprudência é pacífica no sentido de que meros descumprimentos contratuais não configuram dano moral. Se o inadimplente for compelido judicialmente apenas a cumprir a obrigação, sob pena de multa, ver-se-á estimulado a reiteradamente descumprir os contratos, até que seja judicialmente compelido a fazê-lo.

 

Os honorários advocatícios sucumbenciais, que são pagos pela parte vencida diretamente ao advogado da parte vencedora, não compensam os honorários pagos pelo credor ao seu advogado para o ajuizamento da ação. Por disposição do art. 23 da lei 8.906/94, os honorários sucumbenciais pertencem ao advogado e são pagos diretamente pelo vencido. Decorrem esses honorários da sucumbência processual e não têm nada a ver com o contrato de prestação de serviços advocatícios, mandato e honorários, que o credor tem que firmar com seu advogado para exigir que o Estado obrigue o devedor a pagar aquilo que ele já deveria em decorrência do pactuado. Não integram, assim, a indenização da parte vencedora.

 

Mesmo nos casos em que a presença de advogado é dispensável, tem o credor o direito de ser assessorado por advogado, para sentir-se mais seguro. Os valores gastos com essa contratação integram o dano material a ser indenizado, nos termos dos artigos 389, 395 e 404 do Código Civil. A jurisprudência do STJ tem clara a distinção entre os honorários advocatícios contratuais, que compõem o dano material daquele que venceu a demanda, e os honorários sucumbenciais: “A previsão contratual de honorários advocatícios em caso de inadimplemento da obrigação decorre diretamente do art. 389 do CC, não guardando qualquer relação com os honorários de sucumbência.”, AgRg no REsp 1312613, j. 23.09.2014, Relator Paulo de Tarso Sanseverino, DJe de 30.09.2014.

 

Tal julgado reforça a posição anteriormente adotada pela Corte quando do julgamento do Resp 1.027.797, j. 17.02.2011, DJ de 23.02.2011 e do Resp 1.134.725, j. 14.06.2011, DJ de 24.06.2011, ambos da relatoria da Ministra Nancy Andrighi. Nessa última oportunidade decidiu o STJ que: “Aquele que deu causa ao processo deve restituir os valores despendidos pela outra parte com honorários contratuais, que integram o valor devido a título de perdas e danos, nos termos dos arts. 389, 395 e 404 do CC/02.”.

 

Inúmeros são os julgamentos do TJ-SP nesse mesmo sentido. Quando do julgamento da Apelação n° 0002470-05.2012.8.26.0577, Relatora Rosa Maria de Andrade Nery, j. 10.04.2014, decidiu o TJ-SP que: “... o valor dos honorários advocatícios que integraram o demonstrativo de débito, compõem o dano material experimentado pela autora-apelante, pois consiste nos honorários contratuais de seu patrono, pelo ajuizamento da ação, nos termos do CC 389, 395 e 404. ... Os honorários advocatícios de 20% do total da condenação tem natureza diversa, pois não são honorários contratuais, mas decorrem da sucumbência experimentada pela parte.”. Seguem a mesma orientação os precedentes TJ-SP: Embargos Infringentes n° 0214164-94.2011.8.26.0100/50001, Relator Eduardo Sá Pinto Sandeville, j. 10.04.2014; Apelação n° 1012716-82.2013.8.26.0100, Relator James Siano, j. 09.03.2014; Apelação n° 0036072-84.2012.8.26.0577, Relator Mendes Pereira, j. 18.12.2013.

 

A distinção entre os honorários advocatícios convencionais e sucumbenciais também é feita por Humberto Theodoro Júnior, para quem: “O STJ vem decidindo que os honorários contratuais não se confundem com os sucumbenciais. Estes, de acordo com a Lei n° 8.906/1994, constituem ´crédito autônomo´ do advogado da parte vencedora. São reclamáveis pelo causídico diretamente da parte vencida, como crédito próprio, não beneficiando, portanto, o cliente. ...Os honorários despendidos pela parte vencedora com a contratação de seu advogado correspondem a um desfalque patrimonial que teve de ser suportado pelo demandante para alcançar a tutela jurisdicional de seu direito.” Em “Curso de Direito Processual Civil, Volume I”, Humberto Theodoro Júnior, Grupo Gen, 53ª edição, 2012, p. 117-118.

 

Comentando a distinção entre os honorários contratuais, previstos no art. 389 do Código Civil, e os honorários sucumbenciais, tratados no art. 20 do CPC, decidiu o TJ-SP que:  “É texto expresso do artigo 389 do Código Civil que ´não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários advocatícios´. ... Não se pode supor que tenha feito menção a essa verba apenas para o caso de ajuizamento da ação, quando houver sucumbência, pois, nessa hipótese, a solução já existiria no art. 20 do CPC e não é adequada a interpretação que conclui pela inutilidade do dispositivo´ (Código Civil Comentado, diversos autores coordenado pelo Min. Cezar Peluso, Manole, 2007, p. 278). Há que se distinguir entre os honorários processuais (art. 20, CPC) e a indenização dos gastos com honorários contratuais (art. 388, CC). Aqueles são devidos pela parte sucumbente diretamente ao advogado da vencedora, sendo arbitrados pelo Juiz conforme a qualidade do trabalho do patrono, o valor dos interesses em litígio, etc. Estes são devidos pela parte sucumbente à parte vencedora, sendo uma forma de compensar o gasto que esta última teve com a contratação de advogado, despesa que não ocorreria se a parte sucumbente cumprisse sua obrigação sem a intervenção do Poder Judiciário.” Apelação n° 0145946-48.2010.8.26.100, Relator Francisco Loureiro, j. 23.08.2012.

 

Os honorários sucumbenciais possuem caráter processual, enquanto que os convencionais têm sua previsão de ressarcimento no direito material, conforme preveem os artigos 389, 395 e 404 do Código Civil. Estes sim são pagos pelo contratante diretamente ao seu advogado, o que significa que, se não forem ressarcidos ao final da demanda, não haverá o ressarcimento integral do dano daquele que teve que se socorrer do Judiciário, que é a base da responsabilidade civil.

 

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Como se produz um jurista? O modelo italiano (Parte 10)

 8 de abril de 2015, 18h26

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

 

O aluno de Direito na Itália: ingresso, aulas e formação


Muitos desconhecem que as Institutas de Justiniano, um dos livros do famoso Corpus Iuris Civilis, foi um dos primeiros manuais de ensino do Direito na História. Para integrar o monumental projeto de consolidação normativa do imperador bizantino, era de todo conveniente que houvesse um livro para uso nas faculdades de Direito do Império.

Justiniano elaborou um prefácio para as Institutas, no qual se percebe imediatamente sua dupla finalidade: explicar quem e como se elaborou o livro e convidar os estudantes de Direito para que aprendessem as leis romanas a partir de suas próprias fontes e não em textos antigos. Segundo Justiniano, o aprendizado das lições contidas em seu manual viria acompanhado da esperança do imperador de que os alunos se ilustrassem a fim de governar o Império nas funções que ele lhes confiaria. Em suma, Justiniano passava a seguinte mensagem: aprendam o Direito, pois um Império não se governa apenas com armas mas também com leis. E também compreendam que esse aprendizado há de servir ao combate das injustiças, que muitas vezes se escondem nas fímbrias das fórmulas da lei.[1]

É pensando nessa personagem – o aluno – que a terceira coluna sobre o ensino jurídico na Itália tem início, na sequência das duas colunas anteriores (clique aqui e aqui). 

Para os cursos jurídicos, não há um equivalente ao vestibular na Itália. À exceção das faculdades de Medicina e de Arquitetura, para os quais existe um exame nacional de admissão, o ingresso nas faculdades de Direito dá-se por efeito da classificação do aluno no equivalente ao ensino médio. Essa nota definirá também a faculdade (de maior ou menor nível) na qual ele ingressará.

Ao iniciar o curso de Direito, o estudante terá de cursar um número específico de disciplinas obrigatórias e outra optativas (sobre as quais se cuidará na próxima e última coluna sobre o ensino jurídico italiano). Não há um estágio curricular como no Brasil e sim uma obrigação de exercício de atividade prática para quem deseja se submeter ao exame que permite o acesso à profissão de advogado.

O modelo das aulas é bastante similar ao que existe na Alemanha. Aulas magistrais com um professor catedrático em salas que mais lembram auditórios e, posteriormente, a divisão das turmas entre os assistentes. Não há grandes diferenças da aula expositiva que é praticada em boa parte do continente europeu e também no Brasil. As aulas são ministradas em italiano.

A formação do aluno é preponderantemente jurídica. Nesse ponto, a Itália é mais aberta para disciplinas como o Direito Romano, o Direito Comparado e a História do Direito. As razões para isso foram de certo modo adiantadas na primeira coluna: a forte herança do Direito Romano, a ligação com a Alemanha e o papel dos italianos como agentes difusores do Direito de língua alemã para os países latinos e a capacidade de formulação original do pensamento jurídico pelos juristas italianos, que não temiam usar a seu favor os métodos comparatistas. O elemento histórico-jurídico também foi favorecido por se depositarem nas bibliotecas italianas um conjunto notável de obras jurídicas milenares, graças à função de guardiã da memória cultural do Ocidente exercida pela  Igreja Católica desde antes do fim do Império Romano.

Nas instituições tradicionais, não há a figura do curso noturno. A atividade didática é desenvolvida nos períodos matutino e vespertino, com ênfase na pesquisa nas bibliotecas. A estrutura das bibliotecas, até por seu caráter avoengo, não é comparável a dos grandes centros de pesquisa na Alemanha, no Reino Unido ou nos Estados Unidos. Em muitos lugares, os livros estão dispersos em locais reservados e o contato se dá por meio de requisição ao bibliotecário.

O acesso à literatura jurídica pelos alunos dá-se por meio de manuais, livros-texto ou códigos com anotações breves. A Itália é a sede de editoras tradicionais e muito conhecidas do público brasileiro, como a UTET, de Turim, a CEDAM, de Pádua, e a Giuffrè, de Milão. Atualmente, existe o grave problema da cópia ilegal dos livros jurídicos, o que tem enfraquecido a capacidade dessas casas editoriais de produzir as clássicas obras monográficas italianas.

Um detalhe interessante é que, em algumas universidades, existem regras que exigem a adoção de um manual específico para cada matéria e é com base nesse livro que os conteúdos devem ser exigidos nas provas. É uma disposição altamente polêmica e que gera problemas operacionais de grande monta, além de limitar e muito a liberdade expositiva do docente.

Uma nota característica da graduação italiana é a tese de láurea. No Brasil, seu equivalente seria o trabalho de conclusão de curso, exigência das diretrizes curriculares nacionais desde 2004, mas cuja forma de apresentação é mais livre que a tesi di laurea. Em verdade, sua correspondência mais fiel no Brasil é a "tese de láurea" da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, uma monografia de apresentação obrigatória pelos alunos que pretendem se graduar em Direito e que deve ser defendida, salvo situações excepcionais, perante uma banca examinadora, presidida pelo orientador. O modelo italiano é a matriz que serviu de inspiração à USP.

A importância da tesi di laurea é tamanha que Umberto Eco, em 1977, publicou um opúsculo intitulado Come si fa uma tesi di láurea (Como se faz uma tese de láurea), destinado a orientar os estudantes de graduação italianos na elaboração dessa monografia. No Brasil, esse livro foi traduzido por Gilson Cesar Cardoso de Souza com o ambíguo (para não se dizer algo mais forte a respeito dessa opção do tradutor ou da editora) título Como se faz uma tese (22 ed. São Paulo: Perspectiva). Essa omissão do qualificativo "de láurea" muda completamente o contexto do título, cuja versão maisinformativa ao leitor sobre seu conteúdo seria: Como se faz uma monografia. Muito bem, o livro de Umberto Eco tem sido muito usado no Brasil como referência metodológica para dissertações de mestrado e teses de doutorado. Isso diz muito sobre a qualidade do livro, a importância da tesi di laurea e também como um erro(?) de tradução pode gerar efeitos imprevisíveis.

O aluno de graduação, de acordo com o Decreto no 270, de 22.10.2004, é quem está matriculado em um curso di laurea, o título básico oferecido pela universidade italiana (art.3o), que tem por objetivo a aquisição de conceitos e o domínio de métodos científicos gerais, ainda que tais venham a servir a um conhecimento de caráter profissional.

curso di laurea tem duração de 3 anos, após a criticada Reforma de Bolonha, seguidos de 2 anos de uma laurea magistrale, um curso de pós-graduação que, a depender do modo como ele é desenvolvido pode equivaler a uma especialização ou um mestrado no Brasil.

 

Mestrado e doutorado

O mestrado (laurea magistrale, considerando as adequações de carga horária e de exigências nacionais para revalidação)  e o doutorado (dottorato di ricerca) são títulos universitários de pós-graduação, ao lado da especialização (diploma di specializzazione).

As instituições são livres para organizar o currículo e o modo de acesso desses cursos de pós-graduação, conforme as Lei Ruberti (Lei 341, de 1990, e a Lei 168, de 1989. Na Universidade de Roma – La Sapienza exige-se que o candidato se submeta a uma prova escrita e outra de natureza oral, esta última com a finalidade de expor e defender seu projeto de pesquisa. Em outras instituições, exige-se apenas uma nota mínima global na graduação e a apresentação do currículo.

Se a laurea magistrale pode ser concluída em 2 anos, o dottorado di ricercaexige um mínimo de 3 anos, com defesa de tese ao final. Como se dá na Alemanha, o doutorando deve usar de seu tempo para realizar pesquisas e não assistir às aulas, o que se pressupõe ocorreu durante o período de seminários no mestrado.

 

Carreiras jurídicas na Itália

Além da carreira docente, sobre a qual falamos na coluna anterior, é possível oferecer informações sobre algumas das principais profissões jurídicas na Itália.[2]

Os magistrados compõem o Poder Judicial e são divididos em juízes togados e juízes honorários, de entre os quais se incluem os juízes de paz, os juízes honorários de primeiro grau e os agregados. Os primeiros são admitidos ao serviço público por meio de concurso e integram uma carreira de Estado. O segundo grupo exerce suas atribuições em caráter provisório e não se consideram membros da magistratura em sentido estrito.

Os togados percebem uma remuneração mensal fixada pelo Estado, cujo valor depende de sua posição na carreira. Os magistrados honorários são remunerados em conformidade com o número de sentenças produzidas e de audiências realizadas.

Integram também a magistratura, mas com funções de investigação, aqueles que se vinculam aos órgãos da Procuradoria da República Italiana, que oficiam junto à Corte de Cassação, aos tribunais de relação e aos tribunais de primeiro grau. Esses magistrados são procuradores, embora se considerem da mesma natureza que os juízes togados, inclusive quanto ao ingresso por concurso público e às formas de remuneração.

Magistrados togados que exercem suas funções na judicatura ou na procuratura evoluem na carreia por critério de exclusiva antiguidade, conforme a seguinte escala: a) auditor judicial; b) magistrado de tribunal (de primeiro grau); c)  magistrado da Relação (de segundo grau); d) Magistrado de Cassação (ministro da Corte de Cassação); e) magistrado habilitado para as funções de direção superior da magistratura.

A advocacia e o notariado não integram carreiras no serviço público, considerando-se como profissionais liberais.

O ingresso na advocacia depende da aprovação em um exame nacional organizado pelo Estado italiano, coordenado pelo Ministério da Justiça, que ocorre todos os anos e é realizado junto a um tribunal de relação (segundo grau). As provas são teórico-práticas, de natureza escrita e oral. A prova escrita divide-se em três: a) elaboração de um parecer em matéria regida pelo Código Civil; b) redação de um parecer sobre tema submetido ao Código Penal; c) confecção de um ato judiciário com aspectos de direito material e de direito processual, cujo tema se liga ao quesito proposto, em matéria escolhida pelo candidato nas áreas de Direito Privado, Direito Penal e Direito Administrativo.

A prova oral, por sua vez, consiste na discussão sucinta sobre temas ligados ao Direito Constitucional, Direito Civil, Direito Administrativo, Direito Comercial, Direito do Trabalho, Direito Penal, Direito Tributário, Direito Processual Civil, Direito Processual Penal, Direito Internacional Privado, Direito Eclesiástico e Direito Comunitário. O candidato escolhe 5 dessas matérias, sendo que uma delas tem de ser de natureza processual. A prova oral também exige a demonstração de conhecimento das normas de organização judiciária e da deontologia profissional.

O conteúdo programático é fornecido pelo Ministério da Justiça a cada ano.

Uma vez admitido na profissão, o advogado divide-se entre os ordinários, que podem exercer suas atribuições em qualquer tribunal de primeiro ou de segundo graus, e os que são habilitados a atuar também na Corte de Cassação. O ius postulandi é privativo dos advogados, exceto perante os juízos de paz. 

Os notários, por sua vez, submetem-se a um concurso público de caráter nacional, que fica a cargo do Ministério da Justiça. É uma profissão extremamente prestigiada e que oferece um excelente retorno financeiro, ainda que variável.

Na próxima semana, concluiremos o estudo do modelo italiano com o exame das universidades e da polêmica Reforma de Bolonha.  


[1] O proêmio das Institutas está disponível aqui: http://droitromain.upmf-grenoble.fr/. Acesso em 7-7-2015.

[2] Dados extraídos da Rede Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial. O texto é baseado em paráfrases e as informações são totalmente atribuídas a essa fonte, sem qualquer pretensão de originalidade:http://ec.europa.eu/civiljustice/legal_prof/legal_prof_ita_pt.htm. Acesso em 7-4-2015. 

 

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

 

Revista Consultor Jurídico, 8 de abril de 2015, 18h26

 

Como se produz um jurista? O modelo italiano (Parte 11)

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

 

Introdução

Na última coluna sobre o ensino jurídico na Itália, analisaremos a situação estrutural dos cursos de Direito e seus currículos, mas começaremos com uma seção sobre o chamado Processo de Bolonha, que reformulou profundamente o 

ensino superior na Europa.


Bolonha, vergonha!


Em muitos países europeus, tornou-se comum ouvir de autoridades educacionais e professores universitários a expressão "Bolonha, vergonha!", que, em português, é bem mais sonora pelo efeito da aliteração. Trata-se de uma reação crítica aos efeitos do Processo de Bolonha, a reforma do ensino superior na União Europeia que teve seu marco na chamada Declaração de Bolonha, firmada em 19 de junho de 1999, com a participação de ministros da Educação (ou equivalentes) de  29 estados da Europa.


Para além do conteúdo puramente programático e mesmo se considerando que a Declaração não possui natureza de um tratado europeu, esse documento alcançou enorme eficácia no espaço da União e terminou por ser implementado na maior parte dos estados signatários, com maior ou menor intensidade. Ressalvam-se a Alemanha e o Reino Unido, que se conservaram quase imunes a vários aspectos da Declaração de Bolonha.


Em termos bem sintéticos, a Declaração de Bolonha[1] apresenta o seguinte conteúdo, considerado o que tem maior interesse para o exame dos cursos jurídicos:


a) O documento prevê a criação de um sistema comum de graus acadêmicos, com objetivo de facilitar a equivalência de títulos no espaço europeu, que tem por base o conceito de ECTS, sigla em inglês para European Credit Transfer and Accumulation System (Sistema Europeu de Acumulação e Transferência de Créditos).b) A educação superior dividir-se-ia em 3 ciclos: a) o primeiro com duração de 6 a 8 semestres; b) o segundo com duração de 3 a 4 semestres, com possibilidade excepcional de se estender por 2 semestres apenas, que corresponderia a um "mestrado profissional"; c) o terceiro, que equivaleria a um doutorado ou diploma equivalente conforme a denominação em outros países.

Na prática, Bolonha permitiu aos estados europeus a redução do tempo mínimo de uma graduação para 3 anos e a transformação do antigo quarto ano de graduação em uma espécie de "mestrado profissional", cuja equivalência, no Brasil, seria mais próxima ao conceito de especialização (pós-graduação em sentido lato). Essas mudanças, na prática, reduziram o tempo de permanência do aluno no curso de bacharelado, o que implicou uma diminuição dos gastos com educação superior.[2]

 

Posteriormente, houve diversas outras declarações complementares a Bolonha, como as firmadas em Berlim, Praga, Bergen e Londres, que visaram à ampliação das reformas, ao exemplo da melhoria do sistema de acumulação e transferência de créditos (a contabilização por  ECTS's) ou da busca por padrões comuns de qualidade do ensino. Os efeitos da Declaração de 1999, como já demarcado por alguns, também se sentem na "perda de protagonismo dos estados nacionais" no processo educacional, a ponto de se "falar de uma espécie de 'desnacionalização' da educação superior ou, de outro ponto de vista, de uma decisiva e definitiva 'europeização' das universidades e outras escolas superiores, optando por políticas de liberalização".[3]  


Esse processo, que ainda não terminou, avança por diversas universidades europeias e, de um modo geral, não afetou os grandes centros (Alemanha, Reino Unido e França), mas permitiu uma maior flexibilização em estados menos centrais da União, o que é visto com enormes resistências. E tudo teve início na sede da que é considerada uma das mais antigas universidades europeias, a velha Università di Bologna.


As universidades italianas


Se o marco da "nova universidade" é a Declaração de Bolonha, convém iniciar a análise da estrutura dos cursos jurídicos italianos.


A Itália, diferentemente de outros países já analisados, como a Alemanha e Portugal, possui um conjunto de cursos jurídicos privados, ao lado dos tradicionais centros mantidos pelo Estado. Há, por conseguinte, um espaço maior para as faculdades particulares, algumas delas com relativo prestígio.

Em Milão, tem-se a Università Bocconi, fundada em 1902, com um curso de Economia. O nome da instituição é uma homenagem ao filho de seu fundador Ferdinando Bocconi, que veio a morrer em combate na Primeira Guerra Ítalo-Abissínia. De entre seus alunos mais notáveis estão o ex-primeiro-ministro Mario Monti, um respeitado economista nos círculos internacionais. O curso de Direito da Universidade Bocconi foi instalado em 2006 e é voltado para uma formação interdisciplinar com foco em Economia e Negócios.


A Libera Università Maria SS. Assunta - LUMSA é outra referência no ensino privado italiano. Fundada em 1939, na cidade de Roma, tem hoje 8 mil alunos e é ligada ao catolicismo desde sua origem. Seu curso de Direito funciona em Roma e Palermo.


No entanto, as instituições públicas ainda são as melhores e apresentam maior capilaridade do que suas congêneres privadas. Em termos comparativos com a realidade brasileira, não deixa de causar certa estranheza essa assimetria, dada a preeminência das universidades particulares no Brasil. Esse é, porém, o padrão europeu e suas raízes estão, como salientado em coluna anterior, no modelo continental de amplo acesso ao ensino superior e seu caráter de direito fundamental, além, é claro, da ausência de centralidade universal do Direito na sociedade europeia contemporânea. Com isso, há uma distribuição mais equitativa de "vocações" para outros cursos.


Tenho muita desconfiança dos rankings universitários, seja porque sua estrutura leva em conta fatores muitas vezes insusceptíveis de comparação por causa das normas regulatórias de cada país, seja pela falta de atenção às peculiaridades de cada área. Veja-se, por exemplo, um ranking que compare uma faculdade de Direito norte-americana (cujos alunos são pós-graduandos e não graduandos, um caso único no mundo) com uma equivalente europeia, cujos estudantes são realmente graduandos. Como se comparar algo tão diferente?

Feita essa ressalva, apresento aos leitores os resultados da classificação 2013-2014 da fundação italiana Censis, que tem o mérito de distinguir as universidades em grupos (mega, grandes, médias e pequenas), conforme o número de alunos matriculados (mais de 40 mil; entre 20 e 40 mil; entre 10 e 20 mil e até 10 mil estudantes, respectivamente). O levantamento leva em conta os serviços (alimentação e alojamento para os alunos), a oferta de bolsas, a estrutura física (salas de aula, bibliotecas, laboratórios), a qualidade do portal da instituição na web e o nível de internacionalização (matrículas de estudantes estrangeiros e alunos intercambistas, além de outros fatores. Segundo o Censis, as melhores universidades italianas são, em ordem decrescente[4]:

a)  Mega-universidades: Bolonha, Pádua, Pisa, Florença, Turim, Roma-Sapienza, Palermo, Milão, Bari, Catânia e Nápoles.

b) Grandes universidades: Pavia, Cosenza, Parma, Cagliari, Gênova, Perugia, Verona, Roma-Tor Vergata, Milão-Bicocca, Salerno, Roma-3, Messina, Chieti, Pescara, L'Aquila e Caserta.

c) Universidades médias: Siena, Trieste, Sassari, Trento, Módena, Reggio, Macerata, Udine, Marche, Brescia, Salento, Urbino, Ferrara, Veneza, Foscari, Bérgamo, Cassino, Forma e Nápoles.

d) Universidades pequenas: Provador, Teramo, Tuscia, Basilicata, Piemonte, Sannio, Insubria, Campobasso, Catanzaro, Reggio Calabria e Nápoles Or.


A questão curricular


Um ponto que sempre desperta interesse nos leitores é a questão da matriz curricular nas faculdades de Direito. Na Itália, no que não é diferente da Alemanha e de Portugal, as instituições possuem ampla liberdade para compor suas matrizes. Como o primeiro ciclo tem duração de 3 anos, um dos efeitos da Declaração de Bolonha, há bem menos tempo para se ministrar o conteúdo do que nas congêneres brasileiras. Conforme o Decreto no 270, de 22.10.2004, em seu art.11, a universidade tem competência para elaborar as normas sobre a estrutura didática, de entre essas as relativas às disciplinas a serem incluídas nas matrizes curriculares de cada unidade.    


O curso de graduação deve atingir um total de 180 créditos, sendo que cada crédito corresponde a 25 horas de atividades letivas. O crédito italiano equivale a um ECTS, segundo a nomenclatura da Declaração de Bolonha. No entanto, só é possível cursar o doutorado se, além do primeiro ciclo, o aluno comprovar que concluiu o segundo ciclo, que corresponde a um "mestrado profissional", equivalente, como já dito, a uma especialização brasileira.

 

Como há enorme autonomia didático-pedagógica em cada universidade, não é possível cuidar de diretrizes curriculares nacionais, como existe no Brasil. Em razão disso, deve-se observar o modelo de algumas instituições mais representativas.


Fique-se, por exemplo, com a Universidade de Roma 2-Tor Vergata, que é muito frequentada por estudantes brasileiros em cursos de pós-graduação. No primeiro ciclo (graduação em 3 anos), há 22 disciplinas obrigatórias, a saber: Direito Administrativo 1 e 2, Direito Civil 1, Direito Comercial, Direito Constitucional, Direito do Trabalho, Direito da União Europeia, Direito Eclesiástico, Direito Internacional, Direito Penal 1 e 2, Direito Privado Comparado, Direito Processual Civil, Direito Romano 1, Direito Tributário, Economia Política, Filosofia do Direito 1, Instituições de Direito Privado, Instituições de Direito Público, Instituições de Direito Romano, Direito Penal e História do Direito Italiano 1. O aluno pode cursar até 5 disciplinas optativas, de entre as quais Direito Agrário, Direito Bancário, Direito Comercial Europeu, História do Direito Romano, Direito Romano 2, Direito Industrial, Direito de Família e outras matérias. Não há disciplinas não jurídicas entre as optativas, salvo Ciências das Finanças, que é uma matéria tradicional em qualquer curso jurídico. O conhecimento de língua estrangeira é obrigatório e deve ser comprovado por meio de exames próprios, que contam como créditos.

Cada ano é composto por um número variável de disciplinas. No primeiro ano, têm-se 7 disciplinas: Economia Política, Filosofia do Direito 1, Instituições de Direito Privado, Instituições de Direito Público, Instituições de Direito Romano, Língua estrangeira e Linguagem jurídica estrangeira e habilidades em informática. Note-se que, na prática, há 2 semestres dedicados a cada uma dessas matérias. Não há grande possibilidade de escolha pelo aluno dos créditos não obrigatórios.

Em termos gerais, nota-se uma preponderância do Direito Privado, que termina por ser lecionado no primeiro ano (Instituições de Direito Privado e Instituições de Direito Romano), no segundo ano (Direito Civil 1) e no terceiro ano (Direito Comercial), além das cadeiras de Direito Privado Comparado e Direito Romano no quarto e quinto ano, na sequência do chamado segundo ciclo. Essa preponderância também se nota entre as optativas.


Conclusão


O ensino jurídico na Itália apresenta diversas convergências com a Alemanha e Portugal, especialmente no formato das aulas, na estrutura das matérias e na representação social do docente. Na Itália, a construção da unidade nacional passou pela captura dos professores universitários pelo projeto da monarquia saboiana e, nos dois períodos pós-guerra, houve um realinhamento dos docentes com o fascismo (com muitas honrosas exceções) e com a república.

Os docentes italianos dividem-se entre os que exercem o magistério em regime parcial e em regime de dedicação exclusiva. Há grandes nomes em ambos os grupos. Diferentemente da Alemanha, o ensino privado tem mais espaço e algumas instituições são respeitadas. Os currículos são livremente fixados pelas instituições. No entanto, há uma característica comum: a correlação entre disciplinas obrigatórias e optativas é muito próxima ao que ocorre em Portugal, com uma proporção de 25 para 5. Os cursos são anualizados e há forte estímulo ao conhecimento de línguas estrangeiras. A série de colunas terá continuidade na próxima semana.

 

[1] A íntegra da Declaração de Bolonha, em português, está disponível aqui: http://www.ond.vlaanderen.be/hogeronderwijs/bologna/links/language/1999_Bologna_Declaration_Portuguese.pdf. Acesso em 21-4-2015.

[2] LIMA, Licínio C.; AZEVEDO, Mário Luiz Neves de; CATANI, Afrânio Mendes. O processo de Bolonha, a avaliação da educação superior e algumas considerações sobre a Universidade Nova. Avaliação (Campinas) [online]. 2008, vol.13, n.1, pp. 7-36. ISSN 1414-4077.  http://dx.doi.org/10.1590/S1414-40772008000100002.

[3] LIMA, Licínio C.; AZEVEDO, Mário Luiz Neves de; CATANI, Afrânio Mendes. Op. cit., loc. cit.

[4] Disponível em: http://www.censis.it/8?shadow_testo=1. Acesso em 21-4-2015.



Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

 

Revista Consultor Jurídico, 22 de abril de 2015, 16h06

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Third year of law school (The Washington Post Sunday), abr 12 2015, 23





Third year of law school
BY DAVID LAT
The Washington Post Sunday
abr 12 2015

There's a wise old saying about lawschool: The first year they scare you to death, the second year they work you to death, and the third year they bore you to death. Why waste students' time and money? Let's eliminate the 3L year of lawschool. Cutting...
leia mais...

Este e-mail foi-lhe enviado por um utilizador do PressDisplay.com, serviço do NewspaperDirect – uma fonte de publicações online de todo o mundo. O PressDisplay Service contém material sujeito a copyright, marcas registadas e outra informação proprietária. A recepção deste e-mail não deve ser interpretada como concessão de quaisquer autorizações, expressas ou implícitas, à propriedade intelectual do NewspaperDirect, PressDisplay ou aos editores das publicações apresentadas.

PressDisplay – Redefinindo a Experiência de Leitura .

PressDisplay é um serviço do NewspaperDirect, Inc.
NewspaperDirect, Inc., 200-13111 Vanier Place, Richmond BC V6V 2J1, Canada
Telefone: +1 (604) 278-4604

©2003-2006 NewspaperDirect, Inc. Todos os direitos reservados. Condições de Utilização  |  Política de Privacidade

domingo, 12 de abril de 2015

The basics of the Maltese legal system (The Malta Independent on Sunday), abr 12 2015, 30





The basics of the Maltese legal system
Noel Grima
The Malta Independent on Sunday
abr 12 2015

The Maltese legal system is what is known as a mixed legal system. To understand this, one must go back to the history of Maltese legal practice over the centuries. Malta's legal system for many centuries was based on the Roman law as codified by the...
leia mais...

Este e-mail foi-lhe enviado por um utilizador do PressDisplay.com, serviço do NewspaperDirect – uma fonte de publicações online de todo o mundo. O PressDisplay Service contém material sujeito a copyright, marcas registadas e outra informação proprietária. A recepção deste e-mail não deve ser interpretada como concessão de quaisquer autorizações, expressas ou implícitas, à propriedade intelectual do NewspaperDirect, PressDisplay ou aos editores das publicações apresentadas.

PressDisplay – Redefinindo a Experiência de Leitura .

PressDisplay é um serviço do NewspaperDirect, Inc.
NewspaperDirect, Inc., 200-13111 Vanier Place, Richmond BC V6V 2J1, Canada
Telefone: +1 (604) 278-4604

©2003-2006 NewspaperDirect, Inc. Todos os direitos reservados. Condições de Utilização  |  Política de Privacidade

sábado, 11 de abril de 2015

A teoria do adimplemento substancial na doutrina e na jurisprudência

A teoria do adimplemento substancial goza de grande prestígio doutrinário e jurisprudencial na atualidade do Direito Contratual Brasileiro. Por essa teoria, nos casos em que o contrato tiver sido quase todo cumprido, sendo a mora insignificante, não caberá sua extinção, mas apenas outros efeitos jurídicos, como a cobrança ou o pleito de indenização por perdas e danos.

A origem da teoria se encontra no Direito Costumeiro Inglês, especialmente na utilização do termo substancial performance, sendo mencionado como um dos seus primeiros casos a contenda Boone v. Eyre, de 1779. No Código Civil Italiano, há previsão expressa sobre o adimplemento substancial, no seu art. 1.455, segundo o qual o contrato não será resolvido se o inadimplemento de uma das partes tiverescassa importância, levando-se em conta o interesse da outra parte.

No caso brasileiro, a despeito da ausência de previsão expressa na codificação material privada, tem-se associado o adimplemento substancial com os princípios contratuais contemporâneos, especialmente com a boa-fé objetiva e a função social do contrato. Nesse sentido, na IV Jornada de Direito Civil, evento promovido pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em 2006, aprovou-se o Enunciado n. 361 CJF/STJ, estabelecendo que "O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475". Vale lembrar que o art. 475 do Código Civil trata do inadimplemento voluntário ou culposo do contrato, preceituando que a parte lesada pelo descumprimento pode exigir o cumprimento forçado da avença ou a sua resolução por perdas e danos.

Pontue-se que diante de divergência sobre qual princípio fundamentaria a teoria, aprovou-se um enunciado doutrinário em sentido amplo naquele evento, para satisfazer as duas correntes então existentes. De toda sorte, esclareça-se que, na opinião deste autor, o esteio principiológico do adimplemento substancial é a função social do contrato (art. 421 do CC), diante da busca de preservação da autonomia privada e da conservação do negócio jurídico.

No âmbito da jurisprudência superior, numerosos são os arestos que aplicam o adimplemento substancial. Partindo para os casos concretos, de início, incidiu-se a ideia à hipótese envolvendo a busca e apreensão de veículo objeto de venda com reserva de domínio, confirmando-se a impossibilidade de retomada do bem, com a consequente extinção do negócio (STJ, Agravo n. 607.406/RS, QUARTA TURMA, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, julgado em 09.11.2004, DJ 29.11.2004, p. 346). O mesmo caminho foi percorrido para afastar a liminar em ação de busca e apreensão concernente a alienação fiduciária em garantia de bem móvel, considerando-se o pequeno montante da dívida em relação ao valor do bem e o fato de ser a coisa essencial à atividade da devedora (STJ, REsp. 469.577/SC, QUARTA TURMA, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, julgado em 25.03.2003, DJ 05.05.2003, p. 310).

Mais recentemente, e na mesma linha, o Tribunal da Cidadania aplicou a teoriasubstantial performance a contrato de leasing celebrado entre duas empresas, uma financeira e uma empresa transportadora de mercadorias. O contrato dizia respeito à aquisição de 135 carretas, para a atividade da última. Como houve o adimplemento de 30 das 36 parcelas, correspondente a cerca de oitenta e três por cento do contrato, foi confirmado o afastamento da então ação reintegração de posse das carretas (STJ, REsp. 1.200.105/AM, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, j. 19.06.2012, DJe 27.06.2012). O aresto também traz como conteúdo a função social da empresa, pelo fato de que a retomada dos bens móveis fariam com que a atividade da devedora se tornasse totalmente inviável.

A evidenciar o grande desafio da ideia de cumprimento relevante, deve-se analisá-lo casuisticamente, tendo em vista a finalidade econômico-social do contrato e dos negócios envolvidos. Sobre a análise dos critérios para a aplicação da teoria, elucida Anderson Schreiber que "o atual desafio da doutrina está em fixar parâmetros que permitam ao Poder Judiciário dizer, em cada caso, se o adimplemento afigura-se ou não significativo, substancial. À falta de suporte teórico, as cortes brasileiras têm se mostrado tímidas e invocado o adimplemento substancial apenas em abordagem quantitativa. A jurisprudência tem, assim, reconhecido a configuração de adimplemento substancial quando se verifica o cumprimento do contrato 'com a falta apenas da última prestação', ou o recebimento pelo credor de '16 das 18 parcelas do financiamento', ou a 'hipótese em que 94% do preço do negócio de promessa de compra e venda de imóvel encontrava-se satisfeito'. Em outros casos, a análise judicial tem descido mesmo a uma impressionante aferição percentual, declarando substancial o adimplemento nas hipóteses 'em que a parcela contratual inadimplida representa apenas 8,33% do valor total das prestações devidas', ou de pagamento 'que representa 62,43% do preço contratado'." (A boa­ fé objetiva e o adimplemento substancial. Direito contratual. Temas atuais. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes e TARTUCE, Flávio. São Paulo: Método, 2008, p. 140).

De fato, como pondera o jurista, a análise do adimplemento substancial não deve ser meramente quantitativa, levando-se em conta somente o cálculo matemático do montante do cumprimento do negócio. Deve-se considerar também o aspecto qualitativo, afastando-se a sua incidência, por exemplo, em situações de moras sucessivas, purgadas reiteradamente pelo devedor, em claro abuso de direito.

A propósito, como têm pontuado doutrina e jurisprudência italianas, a análise do adimplemento substancial passa por dois filtros. O primeiro deles, é objetivo, a partir da medida econômica do descumprimento, dentro da relação jurídica existente entre os envolvidos. O segundo é subjetivo, sob o foco dos comportamentos das partes noprocesso contratual (CHINÉ, Giuseppe; FRATINI, Marco; ZOPPINI, Andrea. Manuale di Diritto Civile. Roma: Nel Diritto, IV Edizioni, 2013, p. 1369; citando a Decisão n. 6463, da Corte de Cassação Italiana, prolatada em 11 de março de 2008). Acreditamos que tais parâmetros também possam ser perfeitamente utilizados nos casos brasileiros, incrementando a sua aplicação em nosso País.

[1] Publicado no Jornal Carta Forense, edição de abril de 2015.