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quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Como se produz um jurista? O modelo colombiano (Parte 31)

28 de outubro de 2015, 20h58

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

Evolução da educação jurídica colombiana
O Colégio Maior de Santa Fé de Bogotá teve seu funcionamento autorizado por el rey D. Filipe IV, o penúltimo dos monarcas espanhóis da Casa de Habsburgo. Nessa instituição ministraram-se aulas de Direito para os filhos da elite colonial. A matriz curricular do período estruturava-se no Direito Romano, no Direito Canônico e nas “Interpretações”, com objeto de estudo muito peculiar: teologia e sentenças latinas.[1]

Nos tempos da Casa de Bourbon, que sucedeu no trono aos austríacos após a sangrenta Guerra de Sucessão Espanhola, a Ilustração reverteu a ascendência religiosa sobre a formação jurídica e o Reino de Granada, o nome de parte do território correspondente à Colômbia moderna, secularizou a “matriz curricular” (ou plano de estudos, na linguagem colombiana). É desse período a marcante “proliferação de normas jurídicas, o tratamento casuístico da lei, pelas contínuas reformas seguidas de dezenas de recopilações e codificações que tornavam dificultosa a aplicação da lei exata para um caso determinado e fomentavam o descumprimento das leis”. De modo chistoso, dizia-se que “se obedece, mas não se cumpre”.[2]

Fora das universidades, no entanto, em tertúlias e em grupos literários, bem assim pela aquisição pessoal de livros e a formação de bibliotecas particulares, nasceu o espírito independentista, que contagiaria boa parte da elite colonial colombiana. Um dessas tertúlias era organizada por Antonio Nariño, futuro líder pró-independência e cujo sobrenome serve para designar a sede do Executivo colombiano. Nesses espaços, começou-se a formar a clivagem da elite colombiana entre liberais e conservadores, aqueles ligados aos maçons e estes últimos à Igreja Católica.[3]

No período republicano, a conformação das matrizes curriculares dos cursos jurídicos foi objeto de influência permanente dos titulares do poder central na Colômbia. A Lei sobre a Organização da Instrução Pública de 1826, baixada pelo presidente Francisco de Paul Santander, prócer da independência colombiana, previa as seguintes disciplinas para o curso jurídico: Legislação Universal; Direito Constitucional; Ciência da Administração e do Estado; Direito Civil Romano e Civil Nacional; Econômica Polícia e Estatal; e Direito Internacional.[4]

No final do século XIX até a década de 1930, houve diversas reformas universitárias, as quais refletiram as alterações no cenário político-ideológico na Colômbia, especialmente com o período de poder liberal. Um exemplo dessas mudanças está no Decreto 369, de 28 de março de 1906, que altera o nome do curso jurídico de “Direito e Jurisprudência” para “Faculdade de Ciências Jurídicas Sociais”, no âmbito da Universidade Nacional da Colômbia. O currículo agora se comporia de Direito Romano, Direito Civil, Direito Penal, Direito Processual, Direito Internacional, Direito Comercial, Direito Administrativo, Economia Política e Filosofia do Direito.[5] Em paralelo, a Universidade Externato da Colômbia, uma instituição privada, surgia como uma alternativa inovadora na formação do currículo do curso de Direito.[6]

As mudanças do período de 1930-1990 implicam-se com as transformações sociais do país, especialmente com a reação ou a assimilação dos levantes populares, da aliança das elites contra a formação de um estado ditatorial militar e o combate às guerrilhas. O marco da Constituição de 1991 foi relevante como divisor de águas, na medida em que constitucionalizou a noção de autonomia universitária como um princípio, embora isso tenha coincidido com a explosão do número de cursos jurídicos no país.[7]

Cursos jurídicos pós-1990: qualidade, privatização e ampliação
A virada dos anos 1980 para a década de 1990 não veio desacompanhada de uma intensa transformação no número de cursos jurídicos colombianos: em 1989, havia 37 faculdades de Direito e, no ano de 1999, chegava-se a 66 faculdades.  Ainda em 1992, o número de bacharéis em Direito na Colômbia era de 90 mil pessoas, o maior da América Latina à época.[8]

Essa expansão dos cursos jurídicos deu-se em bases muito semelhantes a que ocorreria no Brasil na segunda metade da década de 1990: a) baseou-se na iniciativa privada; b) trouxe consigo uma expansão regional; c) implicou uma queda sensível na qualidade média do egresso, que procuraria suprir as lacunas de formação com cursos de pós-graduação em instituições de elite; d) o ingresso deixou de ser uma questão de mérito. A reação a isso veio as administrações de Andrés Pastrana (1998-2002) e Álvaro Uribe (2002-2010), que, por meio de decretos, criaram padrões de qualidade para os cursos de graduação em Direito, bem como requisitos mínimos para a oferta de cursos superiores.[9]

A realidade atual dos cursos jurídicos colombianos é bastante ambígua. De acordo com o QS Wolrd University Ranking, organizado pela consultoria Quacquarelli Symonds (QS), do Reino Unido, com dados de 2015, as dez melhores faculdades de Direito da Colômbia são as seguintes: 1) Universidad de los Andes (7ª na América do Sul; 262ª no mundo); 2) Universidad Nacional de Colombia (13ª na América do Sul; 316ª no mundo) 3) Universidad de Antioquia (27ª na América do Sul; 501ª no mundo); 4) Pontificia Universidad Javeriana (27ª na América do Sul; 347ª no mundo); 5) Colegio Mayor de Nuestra Senora del Rosario (46ª na América do Sul; 701ª no mundo); 6) Universidad de la Sabana (54ª na América do Sul; 701ª no mundo); 7) Universidad del Valle (61ª na América do Sul; 701ª no mundo); 8) Universidad Externado de Colombia (66ª na América do Sul; 701ª no mundo); 9) Universidad EAFIT (69ª na América do Sul; 701ª no mundo); 10)  Universidad del Norte (80ª na América do Sul; 701ª no mundo).[10]

Nessa classificação, há instituições públicas e privadas, embora haja preponderância dessas últimas de entre as melhores. 

A melhor do país, a Universidade de los Andes, é uma pessoa jurídica de Direito Privado, fundada em 1948, e seu curso jurídico data de 1968, contando hoje com 1.033 alunos na graduação e 307 na pós-graduação (um doutorado, seis mestrados e sete especializações). Nesse grupo também está a Pontificia Universidad Javeriana, uma instituição católica, fundada em 1607 pela Companhia de Jesus e por esta mantida até hoje. A Universidad del Rosario, cujo nome oficial é Colegio Mayor de Nuestra Senora del Rosario, é outra universidade católica, fundada em 1653. Sua faculdade de Direito tem o nome à italiana: Facultad de Jurisprudencia.  A Universidad Externado de Colombia, igualmente privada, foi tratada na coluna anterior (http://www.conjur.com.br/2015-out-14/direito-comparado-produz-jurista-modelo-colombiano-parte-30) e é uma das mais prestigiadas faculdades de Direito colombianas no plano internacional.

As instituições públicas são representadas pela Universidad Nacional de Colombia, fundada em 1867, cuja faculdade de Direito foi criada formalmente em 1867, embora só tenha iniciado suas atividades em 1869.  Seu nome oficial é Faculdade de Direito, Ciências Políticas e Sociais, com oferta de duas graduações, uma em Direito e outra em Ciência Política. O curso possui nove mestrados em Direito, um em Políticas Públicas e um em Estudos Políticos Latino-americanos, além de dois doutorados (Direito e Estudos Políticos e Relações Internacionais). A Universidad de Antioquia é outra instituição pública, fundada em 1803, cujo curso de Direito foi criado em 1827 por decreto do presidente Simón Bolívar.

A preponderância de universidades privadas de qualidade é uma característica colombiana e resultou de investimentos eclesiais e de setores da elite nacional em prol da criação de ilhas de excelência, ao passo em que essa disparidade se acentuou com a instabilidade política e econômica dos anos 1980-1990.

A estrutura da educação superior colombiana
As universidades colombianas dividem-se em públicos e privados. As instituições públicas dividem-se em “estabelecimentos públicos” e em “entes universitários autônomos”, gozando estes últimos de autonomia para contratação de servidores, regime especial remuneratório e maior liberdade no trato orçamentário, além de não se vincularem a órgãos estatais. As universidades privadas organizam-se como pessoas jurídicas de utilidade pública, sem ânimo de lucro, com natureza fundacional ou corporativa, bem as pessoas de “economia solidária”, ainda por serem regulamentadas.[11]

De modo muito semelhante ao Brasil, a educação superior na Colômbia divide-se em títulos de graduação e de pós-graduação. Nesta segunda espécie, encontram-se as especializações, os mestrados e os doutorados.[12]

O ingresso na universidade colombiana dá-se após a conclusão do ensino médio e posterior aprovação no Exame de Estado, uma espécie de Enem cumulado com vestibular, de responsabilidade do ICFES (Instituto Colombiano para la Evaluación de la Educación). O aluno aprovado nessa etapa recebe o título de Bachiller, traduzível literalmente por “bacharel”, mas que não tem o sentido do vocábulo em língua portuguesa. Por sua vez, só é possível ingressar na pós-graduação depois de concluído a graduação e, por consequência, para o ingresso no doutorado é necessário ter o grau de mestre.[13]

O custo de um curso de Direito
Fazer a graduação em Direito em uma universidade colombiana de qualidade exige um investimento significativo para os padrões locais. Veja-se abaixo uma tabela de valores de anuidades, com referência a 2014, consideradas as 6 mais caras e as 6 mais baratas:[14]

a) Maiores anuidades: 1) Universidad de Los Andes, 13.144.000 pesos colombianos (equivalentes a R$ 17.566,17 ou a US$ 4.494,26); 2) Universidad del Rosario,  9.710.000 pesos colombianos (equivalentes a  R$ 12.976,84  ou a US$ 3.320,09); 3) Universidad Javeriana – Sede Bogotá,  8.721.000 pesos colombianos (equivalentes a R$ 11.655,10 ou a US$ 2.981,92); 4) Universidad Sergio Arboleda – Sede Bogotá, 8.600.000 pesos colombianos  (equivalentes a R$ 11.493,39 ou US$ 2.940,55); 5) Universidad de La Sabana, 8.210.000 pesos colombianos (equivalentes a R$ 10.972,17   ou a US$ 2.807,20); 6) Universidad Externado de Colombia, 7.180.000 pesos colombianos (equivalentes a R$ 9.595,64 ou a US$ 2.455,02).

b) Menores anuidades: 1) Corporación Universitaria Antonio José de Sucre,           1.316.932 pesos colombianos (equivalentes a R$ 1.760,00   ou a US$ 450,29); 2) Universidad Cooperativa de Colombia – Sede Montería, 1.723,046 pesos colombianos (equivalentes a R$ 2.302,75 ou a US$ 589,15); 3) Universidad Cooperativa de Colombia – Sede Cartago, 1.935.438 pesos colombianos (equivalentes a R$ 2.586,60    ou a US$ 661,77); 4)  Universidad Cooperativa de Colombia – Sede Montería, 1.723.046 pesos colombianos (equivalentes a R$ 2.302,75  ou a US$ 589,15); 5) Universidad Cooperativa de Colombia- Sede Quibdó,         1.967.605 pesos colombianos (equivalentes a R$ 2.629,59   ou a US$ 672,77); 6) Corporación Universitaria Americana, 1.997.320 pesos colombianos (equivalentes a R$ 2.669,30  ou a US$ 682,93).

***

Na próxima coluna, dar-se-á sequência ao estudo da formação jurídica na Colômbia, com ênfase na matriz curricular e na carreira docente.

 


[1]LEGUIZAMÓN ACOSTA, William. Enseñanza del derecho y formación de abogados en la Nueva Granada: 1774–1842.  Revista Histpria de la Educación Colombiana. n. 8, pp. 135-154, 2005. p. 140.

[2]LEGUIZAMÓN ACOSTA, William. Op. cit. p. 142.

[3] LEGUIZAMÓN ACOSTA, William. Op. cit. p. 149.

[4] LEGUIZAMÓN ACOSTA, William. Op. cit.p. 152.

[5] GOYES MORENO, Isabel.  La Enseñanza del Derecho en Colombia 1886 – 1930. San Juan de Pasto: Editorial Universitaria - Universidad de Nariño, 2010. p.165-170.

[6] GOYES MORENO, Isabel.  Op. cit. p.424.

[7] MONROY CABRA, Marco Gerardo. Reflexiones sobre la enseñanza del derecho en Colombia. Estudios Socio-Jurídicos. v.1, n.1, p. 162-180, 1999. p.166.

[8]  MONROY CABRA, Marco Gerardo. Op. cit. 168.

[9] OCAMPO CANTILLO, Jhon Jairo. Estudio documental sobre la enseñanza del derecho. Memorias, v.10, n.18, p.148-158, 2010. p.152.

[10] Disponível em: http://www.acofade.org/documentos/digitales/ranking_latinoamericano.pdf. Acesso em 27-10-2015.

[11] Disponível em: http://www.mineducacion.gov.co/1621/w3-article-231240.html. Acesso em 27-10-2015.

[12] Disponível em: http://www.mineducacion.gov.co/1621/w3-article-231238.html. Acesso e 27-10-2015.

[13] Disponível em: http://www.mineducacion.gov.co/1621/w3-article-235581.html. Acesso em 27-10-2015.

[14]Disponível em: http://www.universidad.edu.co/index.php?option=com_content&task=view&id=167&Itemid=53. Acesso em 27-10-2015.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Revista Consultor Jurídico, 28 de outubro de 2015, 20h58

 

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

The Law School Debt Crisis

By THE EDITORIAL BOARD
OCTOBER 24, 2015

In 2013, the median LSAT score of students admitted to Florida Coastal School of Law was in the bottom quarter of all test-takers nationwide. According to the test's administrators, students with scores this low are unlikely to ever pass the bar exam.

Despite this bleak outlook, Florida Coastal charges nearly $45,000 a year in tuition, which, with living expenses, can lead to crushing amounts of debt for its students. Ninety-three percent of the school's 2014 graduating class of 484 had debts and the average was almost $163,000 — a higher average than all but three law schools in the country. In short, most of Florida Coastal's students are leaving law school with a degree they can't use, bought with a debt they can't repay.

If this sounds like a scam, that's because it is. Florida Coastal, in Jacksonville, is one of six for-profit law schools in the country that have been vacuuming up hordes of young people, charging them outrageously high tuition and, after many of the students fail to become lawyers, sticking taxpayers with the tab for their loan defaults.

Yet for-profit schools are not the only offenders. A majority of American law schools, which have nonprofit status, are increasingly engaging in such behavior, and in the process threatening the future of legal education.

Why? The most significant explanation is also the simplest — free money.

In 2006, Congress extended the federal Direct PLUS Loan program to allow a graduate or professional student to borrow the full amount of tuition, no matter how high, and living expenses. The idea was to give more people access to higher education and thus, in theory, higher lifetime earnings. But broader access doesn't mean much if degrees lead not to well-paying jobs but to heavy debt burdens. That is all too often the result with PLUS loans.

The consequences of this free flow of federal loans have been entirely predictable: Law schools jacked up tuition and accepted more students, even after the legal job market stalled and shrank in the wake of the recession. For years, law schools were able to obscure the poor market by refusing to publish meaningful employment information about their graduates. But in response to pressure from skeptical lawmakers and unhappy graduates, the schools began sharing the data — and it wasn't a pretty picture. Forty-three percent of all 2013 law school graduates did not have long-term full-time legal jobs nine months after graduation, and the numbers are only getting worse. In 2012, the average law graduate's debt was $140,000, 59 percent higher than eight years earlier.

This reality has contributed to the drastic drop in law school applications since 2011, which has in turn exacerbated the problem — to maintain enrollment numbers, law schools have had to lower their admissions standards and take even more unqualified students. These students then fail to pass the bar in alarmingly high numbers — in 2014, the average score on the common portion of the test was the lowest in more than 25 years.

How can this death spiral be stopped? For starters, the government must require accountability from the law schools that live off student loans. This year, the Obama administration extended the so-called gainful employment rule, which ties a school's eligibility to receive federal student loans to its success in preparing graduates for jobs that will enable them to repay their debt. The rule currently applies only to for-profit law schools, all of which, given their track records, would fail to qualify for federal loans.

This rule should also apply to nonprofit schools. If it did, as many as 50 nonprofit schools could fail as well, based on one measure that considers students' debt-to-income ratio. Another good idea would be to cap the amount of federal loansavailable to individual schools or to students. This could drive down tuition costs, and reduce the debt loads students carry when they leave school.

Perhaps the most galling part of this crisis is the misallocation of resources. Even as law schools are churning out unqualified graduates stuck under hopeless mountains of debt, millions of poor and lower-income Americans remain desperate for quality legal representation. Public defenders around the country rely on minuscule budgets to handle overwhelming caseloads. In many cases, the lawyers are so overworked that they cannot provide constitutionally adequate representation for criminal defendants. Civil legal services that help people with housing, immigration and workplace issues are even more scarce, with hardly any public support.

If fewer federal dollars were streaming into law schools' coffers and more were directed to fund legal services organizations, the legal profession — and the American legal system as a whole — would be better for it.

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quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Como se produz um jurista? O modelo colombiano (Parte 30)

Por 

Entre liberais e conservadores: uma pequena história da Colômbia

André Maurois, em sua biografia do rei Eduardo VII, afirma que "em todo país parlamentarista, disfarçados sob máscaras transparentes e convencionais, dois grandes partidos disputam o poder. A França, no tempo de Louis Philippe, conhecia-os como Resistência e Movimento; sob Loubet, foram intitulados Direita e Esquerda. A Inglaterra de 1830, dizia Whigs e Tories; a de 1870, Conservadores e Liberais. Os nomes mudam, o debate continua"[1]

Retire-se o adjetivo "parlamentarista", e essa definição de Maurois se aplicaria a vários outros países. A um deles é particularmente adequada: a Colômbia. Na era colonial, foi o centro do Vice-Reino de Nova Granada. Após a independência, como fruto do sonho de Simon Bolívar, renasceu sob o nome de Grã-Colômbia, a qual foi sucessivamente perdendo territórios, como os correspondentes às atuais repúblicas da Venezuela, do Equador e, no início do século XX, do Panamá. Os partidos Liberal e Conservador dominam a vida política colombiana desde meados do século XIX.

A designação de "liberais" aos membros desse partido colombiano, que se reconhece por sua bandeira vermelha, vem dos tempos da libertação e deve-se à identificação dos seguidores do general Francisco de Paula Santander (1792-1840), um advogado e militar, segundo presidente da República (1832-1837) e opositor de Bolívar. Fundado em 1848, os integrantes desse partido transitaram entre uma ideologia econômico-política liberal e, mais recentemente, com ligações ao que se poderia chamar de left-liberal, no jargão norte-americano. Independentemente dessas variantes em termos de economia e política, ser liberal quase sempre foi assumir-se como anticlerical, a favor da liberdade de imprensa e da ampliação do direito de voto. Essas contradições não explicam como o Partido Liberal foi um dos próceres do neoliberalismo nos anos 1980 e é membro da Internacional Socialista, mas só enaltecem o quão complicado é a qualificação de um liberal, algo sobre o que já escrevemos em outra coluna.

Os conservadores colombianos usam o estandarte azul, e seu partido foi criado em 1849. Dividiram a cena política com os liberais desde então, embora estes últimos tenham ocupado o poder por muito mais tempo ao longo do século XX. Com simpatias pela tradição católica e defensores das tradições rurais, os conservadores são internacionalistas em termos de política externa, mas não defendem uma maior integração do país com a América Latina. Suas conexões com o campo não se limitam à defesa dos grandes produtores rurais, embora assim tenha sido por muito tempo, e sim à proteção do setor e ao seu desenvolvimento. Seu domínio político estendeu-se até 1930, quando o crescimento da classe operária levou os liberais novamente ao poder.

Em todo esse período de alternância entre liberais e conservadores, revoltas sangrentas, guerrilhas e disputas internas dentro dos partidos levaram a Colômbia a experimentar os efeitos colaterais da transposição da luta política para o combate militar. A população mais humilde sofreu com os excessos de cada lado. 

Na segunda metade do século XX, com receio de uma militarização política, algo comum na América Latina, as elites colombianas uniram-se por 16 anos sob um movimento chamado Frente Nacional, que permitiu uma alternância controlada do poder, bem semelhante à política brasileira da República Velha.

O alheamento do campesinato e de setores urbanos dos centros decisórios reais, somados à formação de uma base estudantil revolucionária, determinaram o surgimento de movimentos guerrilheiros. Em contrapartida, a expulsão e a eliminação física dos traficantes de cocaína do Chile, nos anos 1970, graças às ações da ditadura do general Augusto Pinochet Ugarte, transferiu para a Colômbia o controle desse negócio, que se tornaria bilionário nas mãos de Pablo Emilio Escobar Gaviria.

De um ladrão de mármore de sepulturas e guarda-costas de um contrabandista de Medellín, no Departamento de Antioquia, Pablo Escobar criou o Cartel de Medellín e converteu-se em um dos homens mais ricos do mundo, graças ao tráfico de cocaína. Dizendo-se um "homem de esquerda" e inimigo da oligarquia que governava a Colômbia desde antes de sua independência, Escobar coordenou programas assistencialistas, corrompeu amplos setores da Polícia Nacional, do Exército e da política, fez-se eleger deputado ao Parlamento colombiano (até sua rápida renúncia) e, após ter-se iniciado a reação do governo a suas atividades, conduziu uma ação terrorista sem precedentes na América, com derrubada de aviões, explosões de prédios públicos, apoio à guerrilha (que invadiu a sede do Supremo Tribunal de Justiça) e sequestros.

Nos anos 1990, a Colômbia derrotou Pablo Escobar, mas a ação das guerrilhas de esquerda e dos grupos de paramilitares, criados para combatê-las, assumiu proporções ainda piores. O financiamento de guerrilheiros e paramilitares deu-se por meio do narcotráfico. Parte das forças do Estado que combateram o Cartel de Medellín associaram-se aos paramilitares e aos traficantes, criando-se uma promiscuidade vergonhosa entre esses setores. Muitos dos policiais e militares que lutaram contra o narcotráfico, incluindo-se os que caçaram e mataram Escobar, elegeram-se para cargos públicos com dinheiro dos cartéis ou dos paramilitares e terminaram por perder seus mandatos e encerrar suas carreiras políticas na prisão.

O combate à guerrilha, após o fracasso das negociações dos anos 1990-2000, tornou-se o ponto central da política colombiana, o que permitiu a eleição de Álvaro Uribe Vélez, ex-governador de Antioquia, para a presidência da República em 2002. Católico fervoroso e filiado ao Partido Liberal, Uribe desligou-se de sua agremiação e elegeu-se por um grupo independente. Seu governo, que se desdobrou em dois mandatos (2002-2006 e 2006-2010), foi marcado pelo crescimento econômico (duplicação do PIB), abertura para o mercado internacional, combate violento à guerrilha, apoio financeiro norte-americano e resgate de centenas de sequestrados pelos guerrilheiros. Em termos de moral, o governo foi conservador. As relações com o Poder Judiciário não foram das melhores, e houve denúncias de ligação de membros do governo com os paramilitares.

A clivagem liberais-conservadores foi posta em causa nos anos 2000 em diante. Antigos guerrilheiros tornaram-se atores políticos de destaque, e o movimento independente de Uribe congregou diversas forças anteriormente dispersas nos partidos tradicionais.

O atual presidente da República, o jornalista e economista Juan Manuel Santos Calderón, é membro da elite colombiana, com antepassados entre os líderes da independência nacional e políticos de destaque na cena nacional dos séculos XIX e XX. Durante o terror conduzido por Pablo Escobar, Santos foi um dos sequestrados a mando do narcotraficante, com o objetivo de pressionar o governo para a realização de um acordo. O presidente Santos é liberal de origem, mas hoje chefia um partido autônomo e tem conseguido enormes avanços na política de acordo e anistia aos guerrilheiros. Essa distensão provocou sua ruptura com Álvaro Uribe, seu antigo líder e de quem foi ministro da Defesa.

"Homens vestidos de preto" e as mudanças no Direito colombiano
Se o Peru tem suas glórias literárias na pessoa do prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa, criado Marquês de Vargas Llosa pelo rei Juan Carlos, a Colômbia tem seu equivalente em Gabriel García Márquez. Em sua obra-prima, Cem Anos de Solidão, pode-se compreender a Colômbia do final do século XIX e início do século XX, com a chegada das ferrovias, a decadência das famílias aristocráticas dos tempos coloniais, as guerras civis e o papel das armas como fator decisivo nas lutas entre liberais e conservadores. Emociona-me até hoje lembrar a descoberta do gelo por José Arcadio Buendía, que, ao vê-lo pela primeira vez, murmurou: "É o maior diamante do mundo"[2].

García Márquez foi um estudante de Direito em 1947, período de enorme agitação política na Colômbia. E, em Cem Anos de Solidão, os advogados aparecem quase sempre como homens "vestidos de negro", com a "gola das casacas levantada até as orelhas". Eles são descritos como "os advogados de terno escuro que em outra época esvoaçavam como corvos em torno do coronel". Serviçais do governo central, em busca do coronel Aureliano Buendía, prócer da nação e líder dos liberais nas guerras civis, a propositura da paz, eles voltavam, agora como "decrépitos advogados vestidos de negro". Eles, que "em outros tempos tinham assediado o coronel Aureliano Buendía", "agora eram procuradores da companhia bananeira, desvirtuavam a função com arbitrariedades que pareciam passes de mágica". Nessa nova fase, os advogados serviam ao poder econômico, que transformaria a face da Colômbia, durante o período de fastígio do Partido Conservador, e se mimetizavam como prestigitadores das palavras. Se antes tentavam ludibriar o antigo cabo de guerra liberal, agora o faziam, com seus trajes ainda escuros e seus cabelos já encanecidos, de modo idêntico em relação aos trabalhadores.

A presença dos juristas na Colômbia, à semelhança do que ocorreu no Brasil, foi importante para a organização nacional após a independência, e boa parte dos líderes nacionais alternaram-se nos ofícios de advogado, militar, sacerdote e jornalista. Os liberais foram pródigos no uso dos jornais. O clero foi, ao menos até o Vaticano II, profundamente conservador. Militares houve de ambas as fileiras, assim como os advogados.

O Direito, nos séculos XIX e XX, foi central para a formação da elite política colombiana. Mesmo nos mais críticos momentos históricos, como o período da violência (final da década de 1940), a guerra contra o narcotráfico (1980-1990) e contra a guerrilha (segunda metade do século XX), a formação jurídica não deixou de ser uma forma de acesso aos postos de relevo no Estado colombiano.

A abertura para os Estados Unidos, resultado de uma intensa política de cooperação militar, de inteligência e financeira decorrente da luta contra o narcotráfico e a guerrilha, também serviu para ampliar a influência cultural norte-americana no meio universitário, o que se refletiu na formação de centros de excelência privados. Criada em 1948, a Universidad de los Andes é um exemplo dessa visão internacionalizada do ensino colombiano. Nos últimos 50 anos, muitos membros das classes alta e média da Colômbia estudaram nos Estados Unidos, como é o caso dos presidentes Juan Manuel Santos (Kansas e Harvard) e Andrés Pastrana (Harvard).

Outra instituição emblemática no ensino superior colombiano é a Universidad Externado de Colombia, fundada em 1886 pelo jurista Nicolás Pinzón Warlosten. Seu nome "externato" foi-lhe atribuído para representar uma ruptura com os modelos então prevalecentes de formação pedagógica, marcados pela ideia de clausura dos alunos (os internatos). Sua faculdade de Direito tem 126 anos e é considerada a melhor do país. Um verdadeiro celeiro de pesquisadores, o Externato da Colômbia tem fortes ligações com a Alemanha e a Itália, sendo patrocinadas por essa instituição as traduções de relevantes obras estrangeiras.

O Tribunal Constitucional da Colômbia é outro exemplo da evolução do Direito nesse país da América do Sul. Muitas construções dessa corte são hoje examinadas como referência em Direito Constitucional Comparado.

Conclusões
A influência do entorno sobre as instituições de um país nunca deve ser mitigada. Em geral, não adianta construir castelos e torres de marfim na burocracia, na universidade, na ciência e tecnologia, quando os arredores sociais são incomparavelmente atrasados e há uma nítida dissociação entre o plano civilizatório e a realidade de pobreza e de desvios éticos. Com o tempo, a contaminação dessa realidade suja termina por corroer as bases desses centros de excelência. Japão, Alemanha e Coreia, para se ficar apenas nessas três nações arrasadas pela guerra, reconstruíram suas instituições a partir da formação de base. Os coreanos sacrificaram duas gerações para só muito recentemente conseguirem êxitos efetivos no ensino universitário.

Os colombianos viveram décadas de guerra civil (que ainda persiste) e de conflitos com narcotraficantes, com milhares de mortos anuais. A captura de parte significativa da burocracia e de setores econômicos também contribuiu para a perpetuação de problemas seculares, como a corrupção policial, a ineficiência administrativa e a evasão de divisas. Mesmo com tantos problemas, os colombianos conseguiram manter e melhorar sua estrutura universitária em relação ao Direito, e hoje o país desponta, ao lado do Chile, como um exemplo de qualidade e internacionalização em plena América do Sul.

A descoberta desse modelo desconhecido começa com a coluna de hoje e terá sequência nas próximas semanas.


[1] MAUROIS, André. Depois da rainha Victoria, Edward VII: Os anos que levaram à Primeira Guerra Mundial. Tradução de Vera Giambastiani. São Paulo: Globo Livros, 2014. p.79.
[2] GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cem anos de solidão. Tradução de Eliane Zagury. 48ª ed. Rio de Janeiro: 1967. 

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Compradora desistente terá de pagar taxa pelo tempo em que ficou no imóvel

Uma compradora de imóvel que pediu rescisão do compromisso de compra e venda por não conseguir pagar as parcelas terá de indenizar a construtora por todo o tempo em que esteve na posse do bem. A decisão é da 4ª turma do STJ.

Despesas administrativas

O TJ/MS havia definido que a compradora desistente receberia de volta o que pagou, impedindo que a construtora retivesse valores relativos a corretagem, publicidade e outras despesas administrativas. O tribunal estadual também afirmou que seria devida uma taxa de ocupação, mas apenas pelo período em que a compradora permaneceu no imóvel sem pagar as parcelas.

Ao analisar o recurso da construtora, o relator, ministro Luis Felipe Salomão, disse que a 2ª seção do STJ já confirmou a possibilidade de o comprador encerrar o contrato quando não conseguir mais pagar a dívida. Mas, neste caso, cabe o ressarcimento parcial do que foi pago. Em geral, a jurisprudência considera retenção de 25% para a construtora para cobertura dos custos administrativos.

Taxa de ocupação

Salomão esclareceu também que a retenção de valores pela construtora não se confunde com o pagamento pelo uso do imóvel. O ministro avaliou que a taxa de ocupação deve incidir desde o início da ocupação até a devolução do imóvel. Do contrário, haveria enriquecimento sem causa do comprador. Para o relator, o efeito pretendido é deixar as partes, tanto quanto possível, na situação em que estavam antes do negócio.

"Se as partes são restituídas ao estado inicial, a taxa de ocupação deve abranger todo o tempo de posse sobre o imóvel."

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Prescrição quinquenal de dívidas tem diferentes interpretações no país

Existem obras do espírito humano que são consideradas clássicas, como os grandes textos literários, as músicas mais emocionantes e os quadros mais admirados. Até o futebol no Brasil tomou para si o conceito de "clássico" para designar as importantes partidas regionais

Ítalo Calvino, no primeiro capítulo de seu livro intitulado Por que ler os clássicos, listou critérios para identificação de obras às quais se atribui essa qualidade, entre os quais: "Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los"; "os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos"; ou, ainda, "um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer".[i]

No Direito, evidentemente, há obras clássicas. São aquelas que, além de atender aos critérios acima indicados, não perdem a sua utilidade com o passar do tempo e proporcionam autoridade na argumentação jurídica por várias gerações de profissionais do Direito.  No Brasil, exemplo disso é a obra de Carlos Maximiliano, intitulada "Hermenêutica e Aplicação do Direito",[ii] de 1925 e reeditada até hoje, que trata de importantes aspectos da atividade de interpretação, entre os quais os métodos filológico, lógico, sistemático, teleológico e histórico. Por mais sofisticadas e refinadas que sejam as teorias contemporâneas sobre interpretação, as quais, inclusive, suscitam debates acalorados, não há como fugir do uso daqueles métodos na aplicação prática do direito no caso concreto.

Nos últimos tempos, tivemos um caso bastante curioso, decorrente da não-aplicação dos tradicionais métodos de interpretação do Direito.[iii] Trata-se da prescrição quinquenal da pretensão para a cobrança de dívidas, conforme disposto no artigo 206, parágrafo 5º, I, do Código Civil brasileiro, nos seguintes termos: "Artigo 206. Prescreve: (...) parágrafo 5º Em cinco anos: I – a pretensão para a cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular".

A prescrição, no Direito Privado, é a extinção da pretensão do credor à satisfação do seu crédito em razão da inércia na exigência de que o devedor cumpra com sua obrigação. É o que se estabeleceu no artigo 189 do Código Civil de 2002, ao dispor que "Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, que se extingue pela prescrição, nos prazos a que aludem os artigos 205 e 206".

O fato jurídico que enseja a ocorrência da prescrição, manifesta-se na dinâmica das relações privadas, nas quais o comportamento esperado é o adimplemento da obrigação. O credor tem a expectativa de que o devedor assim o fará, mas essa pode ser quebrada pelo inadimplemento. Ao credor resta tentar restabelecê-la, aguardando que o devedor cumpra a obrigação, ainda que em atraso, ou, então, que resolva, formalmente, exercer sua pretensão ao crédito. Considerando que o inadimplemento é fato indesejado pelo legislador, estabelecem-se prazos para que o credor tome uma atitude ou que se conforme com o inadimplemento, a fim de que relações jurídicas não continuem pendentes indefinidamente.

Parece condizente com os tempos atuais, para não usar o termo "sociedade pós-moderna", que seja de cinco anos o prazo para que o credor exija do devedor o cumprimento da obrigação de pagar uma dívida constante de instrumento público ou particular. Afinal, tornou-se quase impossível não ser localizado — ou ser considerado juridicamente ausente — em razão dos avanços da informática, da telemática e da Internet, termos que se referem a aplicações distintas das tecnologias, ainda que aparentemente semelhantes. Todos os dias, dados pessoais são automaticamente coletados em grande quantidade e armazenados indefinidamente. Os salários são pagos mediante depósitos em contas bancárias. Produtos são comprados com cartões de débito e de crédito. Contas são pagas mediante boletos nos bancos ou em casas lotéricas. Por toda parte, o número do CPF ou do CNPJ é solicitado e anualmente se devem apresentar as declarações do imposto de renda, sob pena de tornar a inscrição em situação irregular, inviabilizando boa parte das relações jurídicas.

Ademais, houve praticamente a universalização dos serviços de telefonia móvel, de modo que quase todas as pessoas têm um número de telefone para contato. As redes sociais permitem a localização fácil de quem dela faz parte, mostrando, inclusive, com quem mantém relacionamentos sociais. Inclusive há casos em que se citou ou se intimou pelo Facebook ou pelo Whatsapp.[iv] Contra este estado de coisas, só restam as limitações do direito à privacidade e ao sigilo de dados e de comunicações.

Mas, na prática, nem sempre o que a lei dispõe com clareza — in claris cessat interpretatio — é interpretado da maneira mais adequada.

Por meio da interpretação sistemática em matéria de prescrição, constata-se que o legislador costuma adotar o prazo quinquenal para a prescrição da pretensão à cobrança de dívidas. O Código Tributário Nacional, no artigo 174, estabelece o prazo prescricional de cinco anos para cobrança do crédito tributário. A prescrição para a cobrança de créditos trabalhistas é quinquenal (CF/1988, artigo 7º, XXIX e artigo 11 da CLT), a pretensão para a cobrança de honorários também é quinquenal (EOAB, artigo 25 e CC, artigo 206, parágrafo 5º, II) e o Código de Defesa do Consumidor estabelece, no artigo 27, o prazo quinquenal para a pretensão à reparação de danos.

Ademais, do ponto de vista histórico, o prazo prescricional quinquenal no Direito luso-brasileiro já estava previsto no Regimento dos Almoxarifes, Recebedores e Ordenações, de 1516, o qual estabelecia o prazo de cinco anos para cobrança de dívidas d'El Rey. Essa regra se trasladou pela legislação imperial brasileira, foi recepcionada no Código Civil de 1916 e está até hoje no Decreto 20.910/1932.

No Código Civil de 1916, havia dois prazos prescricionais para a cobrança de dívidas: um inicialmente de 30 anos — depois reduzido para 20 anos — fixado no artigo 177, e outro prazo de dois anos, para dívidas de pequeno valor, do artigo 178, parágrafo 7º, II. No caso, aplicável a dívidas inferiores a 100 mil réis. Com a desvalorização da moeda brasileira, este prazo prescricional caiu em desuso, porque não havia mais dívida no Brasil com valor tão irrisório. Assim, consolidou-se a regra de que o prazo prescricional seria aquele maior, geral, de 20 anos.

Já no Código Civil de 2002, estatuiu-se o artigo 206, parágrafo 5º I, cujo prazo é quinquenal, o qual atinge, com clareza, todas as dívidas constantes de instrumento público ou particular. Em uma interpretação teleológica, houve evidente intenção de harmonizar o prazo de cinco anos para toda e qualquer cobrança de dívida, tal como já ocorre em matéria tributária, administrativa, trabalhista e consumerista.

A título de esclarecimento, a origem remota da redação do artigo 206, parágrafo 5º, I, está no Livro III, Título LIX, das Ordenações Filipinas e a origem próxima da redação está no artigo 442 do Código Comercial de 1850. Como diferenças específicas, as Ordenações usavam o termo "contraídas" e o Código Civil de 2002, a expressão "constantes". Por sua vez, o Código Comercial estabelecia o prazo vintenário e o Código Civil de 2002, o prazo quinquenal.               

Mesmo com todas as advertências de que não se poderia interpretar o Código Civil de 2002 como se interpretava o Código Civil de 1916, o artigo 206, parágrafo 5º, I, do Código Civil não era aplicado corretamente! A explicação é simples: como a pretensão para a cobrança de dívidas era vintenária por aplicação do artigo 177 do Código Civil de 1916, aplicou-se, por curiosa "analogia" — na verdade, incorria-se na falácia post hoc ergo propter hoc — o artigo 205 do Código Civil de 2002, regra geral que estabelece o prazo de prescrição decenal.

Assim, surgiram problemas relativos a essa matéria. O primeiro deles é a contradição entre o prazo prescricional para a cobrança de dívidas e o prazo para manutenção do devedor em cadastros de restrição ao crédito, o que compromete a ideia de pacificação social. No imaginário popular, a prescrição para o exercício da pretensão de cobrança de dívidas é quinquenal, porque o leigo confunde prescrição com retirada da restrição ao crédito. O prazo máximo para manutenção dessa restrição foi fixado como quinquenal pelo Superior Tribunal de Justiça, pela Súmula 323, que, inclusive, foi reeditada e deixa claro que o prazo prescricional não é necessariamente quinquenal, quando distingue a natureza dos dois prazos, conforme segue: "[a] inscrição do nome do devedor pode ser mantida nos serviços de proteção ao crédito até o prazo máximo de cinco anos, independentemente da prescrição da execução".

Ao que parece, o Superior Tribunal de Justiça vem consolidando o entendimento de que, ao menos em matéria de dívida decorrente de contrato de abertura de crédito em conta-corrente, o prazo prescricional é quinquenal, a partir do Recurso Especial 1.327.786/RS.

Vale a pena repetir: o Código Civil de 2002 estabeleceu no artigo 206, parágrafo 5º I, que todas as dívidas constantes de instrumento público ou particular têm prazo quinquenal de prescrição. Consequentemente, é quinquenal o prazo prescricional de toda e qualquer dívida contraída por consumidor, a qual possa ser provada por escrito, porque todas essas dívidas costumam ser registradas em contratos de adesão em papel ou virtuais e são apresentadas para pagamento por meio de faturas e boletos bancários. Além disso, nada mais lógico e sistemático conicidir em cinco anos os prazos de prescrição e o de manutenção do nome do consumidor em cadastros de restrição ao crédito.

Outro problema foi o prazo para a cobrança das contribuições condominiais. Anteriormente, o prazo era vintenário, pela aplicação da regra geral do artigo 177 do Código Civil de 1916. A jurisprudência entendia ser decenal o prazo prescricional, não apenas pela falácia post hoc ergo propter hoc, mas também por não se vislumbrar contribuições condominiais como dívidas consubstanciadas em instrumento público ou particular. Porém, débitos condominiais são obrigações propter rem e a liquidez e certeza destas advém da convenção de condomínio e das subsequentes atas de assembleia. Consequentemente, a cobrança é feita mediante apresentação de boleto bancário para pagamento. Felizmente, esse lapso hermenêutico foi corrigido pelo Superior Tribunal de Justiça e o entendimento atual é o de que o prazo prescricional para cobrança de dívidas é quinquenal, a partir do Recurso Especial 1.139.030/RJ. Nada mais justo e coerente, não só pela aplicação correta do artigo 206, parágrafo 5º I, como também por ser inadmissível a alegação por parte do condomínio edilício que era impossível localizar o condômino inadimplente.

Em se tratando de títulos de crédito, o Código Civil estabeleceu, no artigo 206, parágrafo 3º VIII, o prazo trienal para a cobrança destes. Porém, mesmo sendo a pretensão fulminada pela prescrição, isso não faz com que o título de crédito perca a sua característica de dívida constante de instrumento particular, em razão de a cartularidade ser um dos requisitos para a constituição de um título de crédito. Por isso, quando estes são atingidos pela prescrição trienal, ainda podem ser cobrados em cinco anos como se fossem dívidas constantes de instrumentos particulares. É o que está consolidado na Súmula 503 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual "[o] prazo para ajuizamento de ação monitória em face do emitente de cheque sem força executiva é quinquenal, a contar do dia seguinte à data de emissão estampada na cártula" e também na Súmula nº 504 do mesmo Tribunal: "[o] prazo para ajuizamento de ação monitória em face do emitente de nota promissória sem força executiva é quinquenal, a contar do dia seguinte ao vencimento do título".

Ainda merece reparo a interpretação relativa ao prazo prescricional para a cobrança de tarifas, sobretudo as de água. Por muito tempo, houve dúvidas quanto à sua natureza jurídica: a de taxa, regida pelo direito tributário, ou a de preço público, cuja natureza jurídica seria de Direito Privado. Após longo debate, decidiu-se que a tarifa não tem natureza jurídica de taxa, sendo inaplicável o prazo prescricional quinquenal fixado no Código Tributário Nacional, mas o do Código Civil. Entretanto, considera-se decenal esse prazo, conforme julgamento no Recurso Especial 1.113.403/RJ, sob o regime dos Recursos Repetitivos.

Deve-se observar que o envio de contas impressas em papel para a casa do consumidor — portanto, instrumentos particulares — ou, se o consumidor desejar, por e-mail ou por SMS, é justamente o fato descrito no artigo 206, parágrafo 5º, I, sendo, portanto, prazo quinquenal e não, decenal. Também cabe questionar se uma prestadora desses serviços públicos tem mesmo enormes dificuldades para fazer valer sua pretensão à satisfação do crédito.

À guisa de conclusão, vale ainda refletir sobre mais um aspecto referente à prescrição, por uma questão lógica: se dívidas registradas em instrumentos particulares têm prazos prescricionais quinquenais, as dívidas não formalizadas por escrito deveriam ter prazos prescricionais menores, e não, maiores, ante a dificuldade maior quanto à sua prova, comprometendo-se a pacificação social. Por isso, bom seria a redução do prazo prescricional do artigo 205 para cinco anos, estabelecendo-se prazo maior somente quando expressamente previsto em lei. Mas que isso se dê por alteração legislativa e não, por distorções interpretativas, porque ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus.[v] Ou, como diria Carlos Maximiliano, "(..) cumpra a norma tal qual é, sem acrescentar condições novas, nem dispensar nenhuma das expressas".[vi]

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).

 

[i] CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos; tradução Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 10-12

[ii] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e applicação do direito. Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, Barcellos, Bertaso & Cia, 1925 (A 20ª edição de 2011, mas optei por usar a primeira edição).

[iii] Para maiores detalhes, deixo o texto usado como base para a elaboração deste menor: TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. "A prescrição quinquenal para cobrança de dívidas no Código Civil de 2002". São Paulo. Revista dos Tribunais. Volume 100. Número 907, pp. 31–58. maio de 2011.

[iv] Cf. CONJUR. "NOVOS TEMPOS. Corte inglesa autoriza citação de parte pelo Facebook". São Paulo, 23 de fevereiro de 2012. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-fev-23/corte-superior-inglaterra-autoriza-parte-seja-citada-facebook;  CONJUR. "CELERIDADE PROCESSUAL. Juiz usa Whatsapp para intimar réu que vive no exterior". São Paulo, 10 de julho de 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-jul-10/juiz-usa-whatsapp-intimar-reu-vive-exterior

[v] A tradução é a seguinte: "Não cabe ao intérprete distinguir, se a lei não distingue". Para Carlos Maximiliano (Idem. p. 264),

[vi] MAXIMILIANO, Carlos. Idem. p. 264