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quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Como se produz um jurista? O modelo angolano (parte 36)

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1. A graduação em Direito em Angola
Na sequência das colunas anteriores sobre a formação jurídica em Angola (veja mais emhttp://www.conjur.com.br/2015-dez-23/direito-comparado-produz-jurista-modelo-angolano-parte-34 e http://www.conjur.com.br/2015-dez-30/direito-comparado-produz-jurista-modelo-angolano-parte-35), inicia-se esta terceira parte da série sobre a graduação em Direito.

Os alunos ingressam na faculdade de Direito por duas formas. Nas instituições públicas, faz-se o equivalente a um exame vestibular, como no Brasil. Na Universidade Agostinho Neto, que é pública, as provas compreendem conhecimentos de língua portuguesa, matemática, história geral e de Angola.

Se o interessado pretender cursar uma faculdade privada, ele será selecionado de acordo com suas notas no ensino pré-universitário e, em algumas universidades, como a Católica de Angola, o candidato submete-se a provas de ingresso abrangendo o conteúdo de língua portuguesa e cultura geral, além de haver comprovado a conclusão do ensino médio[1].

O curso de Direito tem duração de cinco anos. As avaliações seguem o modelo português, com exames para cada disciplina ao final do período letivo. As notas também são atribuídas à moda portuguesa, com o sistema de valores (20 valores correspondem à nota 10 no Brasil, e assim de modo decrescente). 

As aulas seguem o modelo magistral, no que não se diferenciam muito do padrão usual seguido na Europa.

Segundo informações gentilmente oferecidas pelo professor Lino Diamvutu, da Universidade Agostinho Neto, os estudantes angolanos valem-se de manuais para as disciplinas básicas do curso. São exemplos de obras de reconhecido destaque na bibliografia jurídica angolana os livros de Carlos Alberto Burity da Silva (Teoria Geral do Direito Civil. Luanda: Faculdade de Direito da UAN, 2004), Maria do Carmo Medina (Direito de Família. Lobito: Escolar Editora, 2011), Raúl Carlos Vasques Araújo (Constituição da República de Angola: Anotada. Luanda: Dos Autores, 2014. t.1, em coautoria com Elisa Rangel. Luanda) e Luzia Bebiana de Almeida Sebastião (Sobre o tipo de ilícito: Contributo para uma aproximação à evolução da doutrina penal contemporânea. Luanda: Faculdade de Direito da UAN, 2005).

No campo bibliográfico, as relações com a cultura jurídica portuguesa seguem muito profundas. Autores como José Joaquim Gomes Canotilho, Jorge Miranda, António Menezes Cordeiro, Carlos Alberto da Mota Pinto, Antunes Varela e Dario Moura Vicente têm seus trabalhos divulgados e estudados em Angola, além de sua participação pessoal em cursos, bancas examinadoras e seminários nas instituições de ensino superior angolanas. Esses vínculos permanecem fortalecidos tanto na graduação quanto na pós-graduação. Em contraponto, não há semelhante conhecimento de livros jurídicos brasileiros, e, salvo em relação a ministros de cortes superiores lusófonas, não há também uma maior interação com juristas brasileiros no âmbito universitário. 

2. A matriz curricular da graduação em Direito
À semelhança dos modelos europeus do continente, o ensino jurídico angolano defere autonomia para a formação das matrizes curriculares pelas instituições de ensino superior. A estrutura dessas matrizes, conhecidas como "plano de estudos", uma expressão também tipicamente europeia, é variável conforme a universidade pesquisada.

Veja-se a estrutura curricular da Universidade Agostinho Neto[2]:

a) Primeiro ano: Ciências Políticas (primeiro e segundo semestres); Introdução ao Estudo do Direito (primeiro e segundo semestres); Filosofia (primeiro semestre); História das Ideias Políticas e Jurídicas (segundo semestre) e Economia Política (segundo semestre);

b) Segundo ano: Teoria Geral do Direito Civil (primeiro e segundo semestres); Direito Administrativo (primeiro e segundo semestres); Direito Internacional Público (primeiro e segundo semestres); Finanças Públicas (primeiro semestre);

c) Terceiro ano: Direito Processual Civil (primeiro e segundo semestres); Direito Penal (primeiro e segundo semestres); Direito das Obrigações (primeiro e segundo semestres); Direito Econômico (primeiro semestre); Direitos Reais (segundo semestre);

d) Quarto ano: Direito Comercial (primeiro e segundo semestres); Direito da Família (primeiro semestre); Direito Processual Penal (primeiro semestre); Direito Fiscal (segundo semestre); Direito do Trabalho (segundo semestre) e Direito das Sucessões (segundo semestre).

No quinto ano, os alunos devem cursar duas chamadas "disciplinas gerais", que são Direito Internacional Privado (primeiro e segundo semestres) e Medicina Legal (primeiro semestre). Nessa última etapa do curso, o estudante de Direito pode escolher três áreas de especialização, com disciplinas específicas. A primeira delas é a relativa às Ciências Jurídico-Políticas, compreensiva de Direito Constitucional II (primeiro semestre), Direito Administrativo II (segundo semestre) e Direito Internacional Público II (segundo semestre). A segunda área é denominada de Ciências Jurídico-Civis, integrada por Direito Processual Civil II (primeiro semestre), Direito Processual Civil III (segundo semestre) e Direito Penal II (segundo semestre). A terceira área denomina-se de Ciências Jurídico-Econômicas, integrada pelas disciplinas Direito dos Recursos Minerais (primeiro semestre), Direito do Comércio Internacional (segundo semestre) e Moeda, Crédito e Bancos (segundo semestre).   

O exame dessa matriz curricular é interessante sob vários aspectos. Pode-se aprender com a experiência de um país africano, lusófono e que saiu parcialmente de uma de organização econômica marxista. Olha-se para além da perspectiva europeísta e de uma economia desenvolvida para uma realidade mais próxima da nossa, seja em termos étnicos, seja em termos econômicos. E, ao final, encontra-se uma estrutura de formação discente organizada, sóbria e com distribuição equilibrada de disciplinas, prestigiando-se as disciplinas-eixo (Direito Civil e Direito Público, em suas diferentes emanações) com uma preocupação com as áreas metadogmáticas, sem, no entanto, desviar o foco de um curso jurídico, que é dotar o aluno de conhecimentos operacionais para sua profissão.        

No modelo angolano não há também, como de resto ocorre em Portugal e Itália, uma contraposição entre disciplinas obrigatórias e optativas, como se entre estas houvesse uma preeminência qualitativa para a formação discente. Por igual, não existem disciplinas metajurídicas para além das que usualmente dialogam com o Direito no âmbito axiológico (Filosofia e Economia).

Comparativamente com outra instituição respeitada no país, a Faculdade de Direito da Universidade Católica de Angola, o plano de estudos da Universidade Agostinho Neto não apresenta maiores diferenças. Na Católica, sobressaem algumas disciplinas específicas, como Direito Romano, Direito Comparado e Direito Eclesiástico, reveladoras de um perfil peculiar dessa universidade, que não se pretende alheia de suas origens religiosas e do papel de sua mantenedora, a Igreja Católica[3].   

A matriz curricular do curso de Direito da Universidade Metodista de Angola aproxima-se do perfil de sua homóloga católica. A instituição metodista apresenta como diferenciais um maior número de matérias optativas ao longo dos anos (e não concentradas no final da faculdade) ou de caráter confessional, como Informática para Juristas (primeiro ano, um semestre), Inglês para Juristas (segundo semestre), Bioética e Biodireito, além de Metodismo e Doutrina Social[4]. Em Angola, os cursos confessionais parecem não ter vergonha de suas origens.

 3. Profissões jurídicas em Angola
Como já salientado na coluna anterior, o Direito não ocupa um espaço de centralidade em Angola. A tendência é que essa realidade mude com o passar do tempo, dado o movimento quase universal de substituição dos militares (em países economicamente mais atrasados) e do Parlamento ou do monarca (nas nações mais ricas) como árbitros dos conflitos políticos. Chega a ser visionário — ou freudianamente curioso — o dístico da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto: cedant arma togae (cedam as armas seu espaço às togas).

São profissões admitidas ao exercício de egressos das faculdades de Direito a advocacia, a consultoria jurídica (atividade de parecerista), o conservador (equivalente no Brasil ao registrador), o notário, o professor de Direito, o membro de carreira diplomática, o integrante de carreiras administrativas no serviço público e o magistrado, que pode exercer suas funções no Poder Judiciário ou no Ministério Público.

Na próxima e última coluna, examinar-se-ão essas carreiras, com especial ênfase no papel do professor de Direito.


[1] Informações disponíveis em:http://www.ucan.edu/www14/index.php/2014-07-23-23-38-34/informacoes-licenciatura-direito. Acesso em 3-1-2016.
[2] Informações disponíveis em: http://www.fduan.ao/licenciatura.php. Acesso em 6-1-2016.
[3] Informações disponíveis em:http://www.ucan.edu/www14/index.php/2014-07-23-23-38-34/plano-licenciatura-direito. Acesso em 3-1-2016.
[4] Informações disponíveis em:http://www.uma.co.ao/Ensino/Cursos/Licenciaturas/Direito/(ver)/plano/(codigo)/20. Acesso em 2-1-2016

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Despesas nas transações imobiliárias no Brasil e no mundo

04/01/2016 por Reinaldo Velloso dos Santos


A edição 2015 do Relatório Doing Business, elaborado pelo Banco Mundial e disponível para consulta em worldbank.org, apontou que no Brasil o custo percentual para formalização e registro da transação imobiliária, calculado sobre o valor da propriedade, é semelhante ao dos Estados Unidos e Noruega; sendo inferior ao do Reino Unido e Singapura, e equivalente a menos de metade do custo de países como Alemanha, Argentina, Austrália, França e Japão.

 

Seguem alguns percentuais: África do Sul 6,2%; Alemanha 6,7%; Argentina 6,6%; Austrália 5,2%; Áustria 4,6%; Bélgica 12,7%; Brasil 2,5%; Canadá 3,3%; Chile 1,2%; China 3,6%; Colômbia 2,0%; Dinamarca 0,6%; Espanha 6,1%; Estados Unidos 2,4%; Finlândia 4,0%; França, 6,1%; Hong Kong 7,7%; Índia 7,0%; Itália 4,4%; Japão 5,8%; México 5,1%; Holanda 6,1%; Nova Zelândia 0,1%; Noruega 2,5%; Paraguai 1,9%; Peru 3,3%; Portugal 7,3%; Reino Unido 4,6%; Rússia 0,1%;  Singapura 2,8%; Suécia 4,3%; Suíça 0,3%; Uruguai 7,0%; e Venezuela 2,5%.

 

Nesse contexto, percebe-se que o valor despendido para formalização e registro da transação imobiliária em nosso país está entre os menores do mundo.

 

Ao se comparar o sistema notarial e registral, vigorante no Brasil e outros países de tradição jurídica romano-germânica, com aquele existente nos Estados Unidos da América, verifica-se que o primeiro sistema, diante do maior grau de segurança jurídica propiciada, reduz a possibilidade de litígios e eventuais custos futuros. No sistema norte-americano, para se mitigar esse risco se faz necessária a contratação de um seguro.

 

Nesse sentido, Fernando P. Mendéz González, no brilhante artigo Registro de la propiedad y desarrollo de los mercados de crédito hipotecario, afirmou que: "en los Estados Unidos los expertos independientes consideran ineficiente su peculiar sistema, basado en la mayoría de los condados en unos registros públicos de documentos – mal organizados – lo que ha hecho necesario suplir la inseguridad jurídica con un seguro privado de títulos".

 

Ou seja, o sistema existente no Brasil é mais eficiente, proporcionando maior segurança jurídica a um custo menor.

 

Em nosso país os emolumentos dos serviços notariais e de registro são fixados por lei, conforme previsão do art. 236, § 2º, da Constituição Federal. No Estado de São Paulo, por exemplo, a elaboração da Lei nº 11.331/2002 decorreu de amplos estudos realizados por Comissão instituída por Decreto do Governador de Estado. Aproximadamente 40% do valor dos emolumentos representam taxas e contribuições, destinadas ao Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Ministério Público, à Carteira de Serventias do Instituto de Pagamentos Especiais do Estado, à compensação dos atos gratuitos de Registro Civil e às Santas Casas de Misericórdia.

 

Os emolumentos são fixados mediante a observância de faixas com valores mínimos e máximos, conforme valor da transação imobiliária ou valor tributário do imóvel. E, no Brasil, o valor dos emolumentos é bem inferior ao de outros países de tradição jurídica romano-germânica.

 

Por outro lado, cabe apontar que na formalização da transação imobiliária incide imposto de transmissão da propriedade, de competência municipal nos atos inter vivos; ou estadual, em se tratando de transmissão mortis causa ou doação. Essa tributação, aliás, representa a maior despesa em uma transação imobiliária, sendo muitas vezes superior ao valor dos emolumentos. No Município de São Paulo a alíquota do ITBI é atualmente de 3% e, no Rio de Janeiro, de 2%. A título comparativo, em Santiago do Chile a tributação é de apenas 0,2%, fato que justifica o menor custo final na transação.

 

Feitas essas considerações, cabe apontar que, em princípio, a escritura pública é essencial à validade do negócio jurídico que vise à transferência de direitos reais sobre imóveis, conforme disposto no art. 108 do Código Civil. A lavratura do ato pelo tabelião de notas, profissional do direito aprovado em concurso público, que atua de forma imparcial, confere a necessária segurança jurídica.

 

Em algumas hipóteses, no entanto, o negócio jurídico é formalizado por instrumento particular, como na concessão de financiamento imobiliário por uma instituição financeira. Nessas circunstâncias, não há a intervenção no ato de agente imparcial, com comprometimento do equilíbrio contratual. Além disso, a tarifa bancária incidente é estabelecida de forma unilateral e em valores geralmente superiores aos emolumentos notariais, especialmente quando utilizados recursos do FGTS pelo comprador.

 

Após a formalização da transação imobiliária, o título de transmissão – escritura pública ou instrumento particular – é encaminhado ao Registro de Imóveis da circunscrição do imóvel para qualificação e registro.

 

Os emolumentos relativos ao registro são cobrados apenas por ocasião do registro, sendo que a matrícula do imóvel permanece indefinidamente na serventia, cabendo ao oficial respectivo zelar por sua ordem e conservação, na forma dos artigos 24 e 26 da Lei de Registros Públicos.

 

É oportuno ressaltar que não existe necessidade de renovação periódica, como no seguro, ou a previsão de remuneração pela custódia do documento. Ou seja, os emolumentos são pagos apenas por ocasião do registro.

 

Nesse aspecto, a fixação dos emolumentos para os atos de registro de imóveis difere daquela existente em entidades privadas que atuam no mercado. A BM&F Bovespa, por exemplo, cobra uma taxa de custódia de 0,30% ao ano sobre o valor dos títulos do Tesouro Nacional, referente aos serviços de guarda dos títulos e às informações e movimentações dos saldos. Tal procedimento onera excessivamente os investimentos de longo prazo.

 

Enfim, a sistemática de remuneração dos serviços notariais e de registro no Brasil relativamente às transações imobiliárias segue critérios adequados e está em valores inferiores aos padrões internacionais. Além disso, confere a necessária segurança jurídica para essas transações que envolvem, quase sempre, recursos poupados ao longo da vida do comprador. Por fim, essa sistemática assegura a manutenção de um sistema confiável e eficiente.