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terça-feira, 21 de junho de 2016

Como se produz um jurista? O modelo chinês (parte 47)

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1. Introdução
A importância do Direito e das profissões jurídicas, por decorrência, tem aumentado sensivelmente nos últimos anos. As razões, como já assinalado na última coluna, ligam-se à evolução do Estado de Direito, ao aumento de suas interações comerciais com o estrangeiro e com um certo pragmatismo típico do regime comunista chinês. Prova disso é que, em 2013, havia 230 mil advogados na China, em contraste com os 2 mil existentes em 1983[1].

Nesta coluna, estar-se-ão as profissões jurídicas na China, as quais, como também já salientado, têm se transformado celeremente ao mesmo tempo em que a percepção social do Direito é alterada.   

2. A advocacia chinesa: queda e ascensão
O regime comunista chinês, ao menos na Era Mao, não apreciava os advogados. Exemplo disso está no fato de que, só com a Constituição de 1954, esses profissionais foram admitidos no ordenamento jurídico de modo oficial. Na década de 1950, os "primeiros" advogados admitidos pelo regime eram oriundos de faculdades de Direito da antiga União Soviética. Em nova campanha de perseguição contra os supostos inimigos da ideologia maoista, mais de 2 mil advogados foram incluídos no rol de personalidades suspeitas. Com a Revolução Cultural (1966-1976), os cursos jurídicos chineses foram encerrados, e os escritórios de advocacia, virtualmente extintos[2].

Desaparecido Mao Tsé-Tung, e inaugurada a era de abertura econômica com Deng Xiaoping, a partir de 1976, houve um "renascimento" das codificações chinesas, a começar pelo Código de Processo Penal e, em 1982, com a nova constituição do país, que reconhecia o direito à defesa. Na década de 1980, foram reabertas as faculdades de Direito e criada a Associação de todos os Advogados da China. No entanto, esse período histórico foi marcado pela caracterização dos advogados como profissionais a serviço do Estado, ainda que atuassem de modo autônomo[3].

Os anos 1990 foram de abertura econômica, o que também implicou a liberalização do mercado advocatício chinês, com a abertura de firmas privadas no país. Em 1996, aprovou-se um Estatuto da Advocacia. Uma das principais mudanças advindas dessa lei está na substituição do conceito de advogado como um agente do Estado pelo de um profissional a serviço dos clientes. Outra inovação reside no exame nacional, de caráter ânuo, para admissão no quadro de advogados[4].

O exame nacional para qualificação do bacharel como advogado, desde 2002, realiza-se em uma base unificada. Não há um organismo como a Ordem dos Advogados do Brasil, com poder de certificação profissional. Esse poder é ainda exercitado pelo governo chinês. Detalhe importante: ser advogado não pressupõe o bacharelado em Direito. Qualquer graduado, independentemente do curso, pode requerer essa qualificação[5]. O número de aprovados no exame, contudo, é baixíssimo. Apenas 7% dos candidatos anuais conseguem a aprovação. É necessário ainda ter um ano de experiência em uma firma de advocacia.

Embora não exista algo como a OAB, a Associação de todos os Advogados da China exerce funções de controle disciplinar e de representação da classe. Diferentemente do Brasil, essa associação não goza de autonomia em relação aos órgãos estatais[6].

O número de advogados na China passou de 153.846, no ano de 2005, para 271.452 mil em 2014[7]. Desse total, há 110 mil advogados filiados à Associação de todos os Advogados da China.

Ao passo em que a advocacia privada floresce na China, os advogados criminais padecem com um sistema processual penal extremamente restritivo aos direitos de investigados e acusados. Há dificuldades em relação ao acesso às provas, ao contato com os clientes presos e à assimetria de poderes (e de legitimidade social) com os órgãos do Ministério Público. Um "bom" advogado criminalista é aquele que possui "boas" conexões com autoridades da polícia judiciária ou do Ministério Público[8].

3. A magistratura do povo 
O Poder Judiciário chinês tem como órgão superior o Supremo Tribunal do Povo, formado por 340 magistrados, com jurisdição em matérias cíveis, criminais, econômicas, administrativas e com poder revisor sobre atos de outras cortes.

Os juízes chineses regem-se pelo Estatuto dos Magistrados da República Popular da China, aprovado em 1995, com modificações relevantes em 2001[9]. São requisitos legais para o ingresso na magistratura: a) nacionalidade chinesa; b) idade mínima de 23 anos; c) reputação ilibada, o que compreende aspectos profissionais, políticos e morais; d) prestar juramento de fidelidade à Constituição; e) ter "boa saúde"; f) ser bacharel, não necessariamente em Direito, com exigências particulares de experiência na área jurídica, a depender de ser um egresso de um curso jurídico ou não (art 9º). No entanto, ainda hoje, há juízes sem curso superior. Tal circunstância levou o Supremo Tribunal do Povo a obrigar os magistrados nessa condição a concluírem cursos superiores em um prazo de cinco anos, sob pena de perda de seus cargos[10].

Um dos problemas mais graves da magistratura chinesa é a corrupção, que se opera em dois níveis. O primeiro, de cunho político, é determinado pela dependência do Poder Judiciário às estruturas do Partido Comunista e ao governo. O segundo dá-se no campo das relações pessoais, com a falta de isenção dos juízes em casos concretos, ditada por fatores ordinários de corrupção individual. Neste último campo, as ações cíveis são as mais atingidas e, na sequência, as criminais[11].

Alguns estudos apontam como causa específica da corrupção judicial chinesa o modo como os tribunais são financiados, o que obriga os juízes a buscar meios alternativos de remuneração na iniciativa privada ou por força de taxas judiciárias arbitrárias ou pela priorização de demandas com valores de causa maiores. Outros entendem que os baixos valores da remuneração dos magistrados seriam a causa determinante da corrupção em níveis superiores à média de nações com níveis de desenvolvimento econômico equivalente[12].

O número de juízes na China é relativamente elevado. Há 200 mil magistrados no país, em uma relação de 14 por 100 mil habitantes. Nos Estados Unidos, esse número é de 11 por 100 mil habitantes. Não há como se fixar valores nacionais para a remuneração dos magistrados chineses, dadas as especificidades das funções exercidas e a diferença entre as províncias, no entanto, há estudos que apontam uma remuneração anual bruta de 7.264,93 a 8.475,75 euros por ano para um juiz chinês, ou seja, de 605,41 a 706,31 euros por mês. Detalhe: os valores da remuneração dos juízes não são disponíveis em plataformas de acesso ao público, como ocorre em muitos países[13].

4. Os promotores do povo
Não é possível estabelecer uma equivalência ideal entre os Ministérios Públicos dos países ocidentais e as Procuradorias do Povo chinesas, embora estas últimas concentrem muitas das atribuições típicas dos primeiros. São exemplos de suas funções a promoção de ações penais, o controle da investigação criminal e a defesa da ordem jurídica.

A Suprema Procuradoria do Povo é o órgão central do que se poderia chamar de "Ministério Público" chinês (com aspas em razão do que já mencionado sobre as peculiaridades do modelo da China). A Lei Orgânica das Procuradorias do Povo da República Popular da China data de 1979 e com alterações relevantes em 1980 e 1983[14]. A Procuradoria atua especialmente nos casos criminais e na fiscalização da atuação dos tribunais. Sua vinculação direta é ao Congresso Nacional do Povo chinês, o que demonstra uma ausência de autonomia institucional que é sensível para os padrões ocidentais[15].

Não há dados oficiais sobre a remuneração dos procuradores chineses.

***

Na próxima coluna, retomar-se-á o exame das universidades e do magistério jurídico na China.


[1] YOUXI, Chen. A tale of two cities: the legal profession in China. International Bar Association's Human Rights Institute (IBAHRI): Thematic Papers n. 2, mar.2013. p.3.
[2] YOUXI, Chen. Op. cit. p.4.
[3] YOUXI, Chen. Op. cit. p.5.
[4] YOUXI, Chen. Op. cit. p.6-7.
[5]  POLIDO, Fabricio Bertini Pasquot; RAMOS, Marcelo Maciel (Orgs). Direito Chinês contemporâneo. São Paulo: Almedina Brasil, 2015. p.312-313.
[6] POLIDO, Fabricio Bertini Pasquot; RAMOS, Marcelo Maciel. Op. cit. p.314.
[7] Disponível em: http://www.statista.com/statistics/224787/number-of-lawyers-in-china/. Acesso em 15/6/2016.
[8] YOUXI, Chen. Op. cit. p.12-13.
[9] Disponível em: http://www.npc.gov.cn/englishnpc/Law/2007-12/12/content_1383686.htm. Acesso em 13/6/2016.
[10] POLIDO, Fabricio Bertini Pasquot; RAMOS, Marcelo Maciel. Op. cit. p.150-153.
[11] WANG, Yuhua. Court funding and judicial corruption in China. The China Journal, v. 69, p.43-63, 2013. p.46.
[12] WANG, Yuhua. Op. cit. p.47.
[13] BLASEK, Katrin. Rule of Law in China: A comparative approach. Berlin: Springer, 2015. P.69.
[14] Disponível em: http://www.npc.gov.cn/englishnpc/Law/2007-12/13/content_1384077.htm. Acesso em 10/6/2016.
[15] POLIDO, Fabricio Bertini Pasquot; RAMOS, Marcelo Maciel. Op. cit. p.314.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Como se produz um jurista? O modelo chinês (parte 46)

8 de junho de 2016, 16h33

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1. A grande marcha para o ensino superior


Na coluna anterior, iniciou-se a análise do modelo de educação jurídica chinesa. A tradição confucionista e o modelo burocrático imperial parece que se acomodaram à realidade comunista, o que não deixa de ser, no mínimo, bastante curioso. Em uma metáfora sobre a "grande marcha" de Mao Tsé-Tung, nesta semana, 9 milhões de jovens chineses tomarão parte no GaoKao, o exame nacional de ingresso no ensino superior, o vestibular universal da República Popular da China.

Feito anualmente, o GaoKao é a etapa final da educação pré-universitária chinesa, que dura 12 anos. É o meio de acesso ao sistema de ensino superior chinês e, por essa razão, reveste-se de um caráter simbólico e prático de enormes proporções. A vitória no GaoKao é um rito de passagem na escala social e parece conservar traços do imperial exame de acesso à burocracia imperial (o mandarinato), referido na coluna anterior. Em 2016, 9 milhões de jovens submeter-se-ão ao exame nacional, que se iniciou nesta terça-feira (7/6) e terminará nesta quarta (8/6). A aprovação e a colocação dos candidatos bem-sucedidos definem a entrada na universidade, a definição do curso que ele seguirá e o nível de excelência da carreira profissional do futuro aluno.

Esse sistema de recrutamento da elite intelectual chinesa não é imune a críticas. Alunos oriundos dos grandes centros têm mais oportunidades do que os egressos de escolas rurais ou de províncias mais pobres. Outra restrição está no método de avaliação dos candidatos, fortemente baseado em memorização, o que seria negativo em termos de uma formação criativa e mais livre. Todas essas censuras são refutadas por três fortes argumentos. Em uma sociedade baseada em critérios extremamente subjetivos para a ocupação de postos de relevo (associação ao Partido Comunista, ser membro de famílias influentes no partido ou nas Forças Armadas, a riqueza familiar e outros), o GaoKao é um oásis de impessoalidade, meritocracia e igualitarismo, valores que são defendidos (contraditoriamente?) pela alta hierarquia do Partido Comunista. Esses argumentos assemelham-se e muito ao que se afirma sobre o instituto do concurso público no Brasil. O segundo ponto é a adequação do modelo à mentalidade e aos valores culturais da sociedade chinesa, daí a quase uniforme menção dos estudiosos desses sistema de recrutamento às tradições milenares do mandarinato imperial.

O terceiro argumento, talvez o mais importante, embora o menos referido, está nas limitações demográficas para a oferta de ensino superior a toda a população chinesa, que já ultrapassou a cifra de 1 bilhão de pessoas, elemento que se associa a uma perspectiva muito particular: o reconhecimento de que as limitações derivadas dessa contingência implicam o esforço de toda uma sociedade para prover as necessidades de acesso à educação superior. Esse tipo de pensamento não parece empolgar nações mais pobres como a China, como é o caso do Brasil, onde se construiu uma cultura de direito fundamental à educação superior e que vem desacompanhada da noção do custo para a sociedade e da importância de se retribuir essa oportunidade por meio de estudo sério e comprometido com resultados. Comparativamente com o Brasil, o estudante chinês sabe o quanto custa sua vaga na universidade e se considera parte de um esforço nacional em prol do desenvolvimento científico do país.

2. O Direito e a formação de juristas: a posição no sistema universitário chinês
Outra particularidade chinesa está no papel secundário do Direito no sistema universitário chinês. Não é possível falar em um único modelo educacional jurídico na China. A riqueza geográfica e as especificidades histórico-políticas deram margem a que se desenvolvesse em Hong Hong, colônia britânica até 1997, um Direito de common law, e em Macau, território ultramarino português até 1999, um ordenamento que se conservou ligado à matriz da antiga metrópole.

Na China continental, porém, prevalece um Direito de civil law, o que é tradicional desde o século XIX, com os esforços de modernização das instituições imperiais empreendidos pela dinastia Quing em seus últimos estertores, o que ocorreu de modo bem-sucedido no Japão, com a Era Meiji, e desditosamente na China. Conceitos e princípios como hierarquia normativa, jurisdição e competência, distinção entre regras processuais e materiais, além da centralidade da Constituição (sem previsão de eficácia vinculante ao legislador e ao administrador) são compreendidos e relativamente aceitos no ordenamento jurídico chinês.

O Poder Judiciário não goza da autonomia geralmente encontrada nas nações ocidentais. Esse relativamente baixo prestígio da estrutura judicial reflete-se na importância restrita das carreiras jurídicas, embora isso tenha mudado nas últimas duas décadas. Profissões ligadas às ciências duras (Engenharias, Física e Química) são muito mais prestigiosas e encaradas como fundamentais ao desenvolvimento nacional. A mudança, no entanto, é perceptível, seja pela inserção do país em organismos internacionais, o que demanda maior rigor na observância de princípios geralmente aceitos pela comunidade jurídica, seja pelo aumento considerável de interações econômicas no âmbito do comércio exterior, o que também demanda um número significativamente maior de profissionais aptos a atuar nessas áreas. O discurso em torno da "segurança jurídica" está na raiz dessa alteração de status do Direito e das profissões jurídicas. Embora não se possa ignorar que, muita vez, prevalece uma postura pragmática do Estado chinês em detrimento de uma preocupação real com a efetividade dessas normas. Dito de outro modo: se é necessário aprovar um Código Civil ou um catálogo de direitos fundamentais para ser admitido em uma organização multilateral de comércio ou de educação, a medida é tomada. Se realmente essas normas têm eficácia social, esse é outro problema.

O crescimento da demanda por compliance e o número cada vez maior de altas autoridades partidárias e burocráticas envolvidas em casos de corrupção têm auxiliado na alteração do status do Direito na sociedade chinesa. Identicamente, pode-se falar de áreas como Direito Ambiental e relações de consumo. No entanto, não se pode perder de vista o pragmatismo e a prevalência das instâncias de poder políticas sobre as jurídicas. Diferentemente do que ocorreu nas sociedades ocidentais, o partido, o Parlamento e as Forças Armadas não transmitiram parcelas reais de poder ao Judiciário.

Em síntese, formar-se em Direito não é o sonho de consumo de um estudante de elite. Esse cenário, como já salientado, é cambiável, e o número de graduandos e pós-graduandos chineses nos grandes centros jurídicos estrangeiros é uma prova dessa lenta, mas sensível modificação.

3. Ensino tradicional e influências ocidentais
A China do século XXI é um campo aberto para influências educacionais estrangeiras. Milhares de estudantes oriundos da elite política e econômica, em geral filhos dos hierarcas do Partido Comunista ou de empresários das zonas de livre comércio, frequentam cursos de graduação nos Estados Unidos e na Europa, o que não deixa de trazer contestações e reflexos sobre o modelo educacional universitário existente. No caso do ensino de Direito, o país segue a estrutura das aulas magistrais, com enorme número de alunos por turma, e currículos baseados em disciplinas obrigatórias. As mais importantes disciplinas são Direito Constitucional chinês, Direito Privado, Direito Processual Civil, Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Comercial, Direito da Propriedade Intelectual, Direito do Trabalho, Direito Previdenciário e Direito Ambiental. Persiste ainda uma parte considerável de créditos dedicados à história, à doutrina e às teorias oficiais do Partido Comunista chinês e de seus líderes, como os escritos de Mao Tsé-Tung. Há ainda a abertura para cursar disciplinas não jurídicas[1], ao exemplo de Educação Física ou línguas estrangeiras[2].

Evidentemente que essa realidade é bastante cambiável a depender da faculdade, da província e de seu nível. Instituições de Hong Kong, por exemplo, são muito mais próximas dos modelos inglês e norte-americano, ao passo em que as faculdades de Macau têm enorme identidade com o modelo português. Mesmo dentre instituições que se podem dizer tipicamente "continentais", há uma variação grande nas estruturas curriculares e no perfil do egresso desejado. A Faculdade de Direito da Universidade de Pequim tem uma matriz curricular preponderantemente marcada por disciplinas obrigatórias (dos 150 pontos, 106 são de caráter obrigatório). A Faculdade de Direito da Universidade de Tsinghua tem maior número de disciplinas optativas, além de matérias não jurídicas[3]. As afirmações sobre os cursos jurídicos chineses devem ser tão cautelosas quanto possível dada essa variedade tão própria de um país com as dimensões geográficas e populacionais como a China.

Nos últimos anos, a influência norte-americana acentuou-se nas faculdades de Direito chinesas. Exemplo disso foi a introdução das chamadas "clínicas jurídicas". Graças ao financiamento da Fundação Ford, no ano 2000 instituíram-se, em caráter experimental, "clínicas jurídicas" em sete faculdades de Direito de Pequim, Wuhan e Xangai. Desde então, esse modelo ampliou-se para outras instituições. Essas clínicas permitem uma abertura para estudos e práticas em direitos humanos, direitos trabalhistas e ambientais. Seu foco está na prática jurídica, na relação do aluno com o público e na inserção social do estudante em face de temas de interesse coletivo[4]. Não se pode deixar de identificar aqui também o pragmatismo chinês: essa "reviravolta" para alguns aspectos do modelo norte-americano mira os rankings internacionais de qualidade dos cursos jurídicos (quase todos moldados por critérios preponderantes nos Estados Unidos) e têm por objetivo melhorar a classificação das escolas de Direito da China.

As simulações de julgamentos (moot courts) também cresceram na China, especialmente com ênfase em arbitragens e com foco em competições internacionais. Para além da própria experiência profissional que esses moot courts propiciam, o objetivo de sua disseminação nas faculdades chinesas está na melhoria do nível de inglês de seus alunos, o que tem impacto no objetivo da internacionalização do ensino jurídico[5].

O particularismo chinês também se revela na existência de faculdades não vinculadas ao Ministério da Educação, e sim ao Ministério da Justiça, ao Ministério da Segurança Pública, ao Tribunal Supremo do Povo e ao Ministério Público[6].

***

Na próxima semana, continuar-se-á nesta viagem pelo complexo modelo chinês.


[1] XIANGSHUN, Ding. The reform of legal education in China and Japan: Shifting from the continental to the American model. Journal of Civil  Law Studies. V.3, n.8, 2010. p.114.  Disponível em: http://digitalcommons.law.lsu.edu/jcls/vol3/iss1/8. Acesso em 7/6/2016.
[2] KEYUAN, Zou. Professionalising legal education in the People's Republic of China. Singapore Journal of International & Comparative Law. v. 7, p.159–182, 2003. p. 168.
[3] KEYUAN, Zou. Op. cit. p.170.
[4] PHAN, Pamela N. Clinical legal education in China: In pursuit of a culture of law and a mission of social justice. Yale Human Rights and Development Journal, v. 8, Issue 1, Article 3. Disponível em:
Available at: http://digitalcommons.law.yale.edu/yhrdlj/vol8/iss1/3. Acesso em 6/6/2016.
[5] XIANGSHUN, Ding. Op. cit. p.125.
[6] KEYUAN, Zou. Op. cit.  p.167.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

As teorias ajudam a interpretar as leis sobre pessoas jurídicas

2 de junho de 2016, 8h00

Por João Grandino Rodas

Uma vez surgida a personalidade jurídica da sociedade, a partir do século XVIII, a doutrina passou a tecer teorias a respeito. Tais teorizações, longe de serem elucubrações vazias, servem como fundamento para as elaborações das leis sobre sociedades, bem como fornecem subsídios para interpretação da legislação societária existente.

A mais antiga teoria baseava-se na ficção, data do século XIII e tinha suas raízes no direito canônico. Desenvolvida mormente na Alemanha no século XIX teve largo curso, principalmente na própria Alemanha, na França, na Bélgica, na Itália e no Reino Unido[1].

Embora tenha tido outros arautos, tem-se como assente que sua formulação clássica coube a Savigny, que a delineou, como segue. Somente o ser humano é sujeito de direito, devendo o conceito de pessoa coincidir com o de ser humano. Cabe contudo ao direito positivo influir sobre tal princípio, quer negando capacidade a certos seres humanos, quer estendendo-a a entes que não o são. Nesse caso, seres artificiais criados pela mera ficção — fictio juris — terão capacidade jurídica. É o caso da pessoa jurídica. Como a capacidade artificial das pessoas jurídicas só se pode referir a relações de direito privado, pode-se definir pessoa jurídica como sendo um sujeito criado artificialmente, capaz de possuir patrimônio. Dentre as pessoas jurídicas, algumas têm existência natural ou necessária — o Estado —, enquanto outras são artificiais e arbitrárias — caso das corporações e fundações.

A pessoa jurídica, pelo fato de ser simples ficção, de um lado, não é capaz de querer e de agir; de outro, é inimputável. Sua vontade, assim como a dos loucos e impúberes, manifesta-se por meio da representação. Atos ilícitos somente podem ser cometidos por indivíduos que delas participam. Sublinhe-se, ademais, três pontos. Primeiramente, a personalidade jurídica é um atributo concedido pela lei a certo grupo, não sendo decorrência necessária do direito de associação. Em segundo lugar, que uma pessoa jurídica é distinta das de seus membros componentes, podendo teoricamente sobreviver ao desaparecimento do grupo que a tenha constituído. E, finalmente, que a sua supressão como pessoa jurídica não está na alçada da vontade de seus membros.

Dentre as objeções levantadas contra a teoria da ficção, estão as seguintes.

Não é factível ao Legislativo criar fictamente uma pessoa, quando os requisitos básicos estão ausentes. Um relacionamento social tem existência de per si, embora seja possível a esse Poder estabelecer proibições, quando considerar algo ilícito.

A teoria não traz realmente uma solução, pois uma pessoa ficta, por não possuir vontade própria, é uma não-pessoa. Atribuir a uma pessoa jurídica bens não pertencentes a indivíduos é um eufemismo, para dizer que não pertencem a ninguém. Por não terem um titular, em última análise, poderá o Estado facilmente se manumitir em tais bens.

Não se compreende como é possível ao ente coletivo ficto ser independente e ao mesmo tempo estranho às pessoas físicas que o compõe, chegando ao ponto de a existência ideal poder sobreviver a todos os seus membros. O normal seria o reconhecimento de mútua interdependência.

A teoria da ficção preocupou-se com a noção de personalidade moral no direito privado, pois, no âmbito do direito público, considerava aceitável a atribuição da soberania à pessoa física do soberano e não ao Estado. Peça lógica, entretanto, a noção de personalidade jurídica deve ser comum tanto ao direito privado como ao público. O próprio fato de ter a teoria em questão afirmado ser o Estado uma pessoa jurídica necessária, coloca em xeque a própria teoria, ao admitir a possibilidade do sacimento de uma pessoa jurídica, por outro modo que não pela vontade da lei.

Inobstante ter sido muito criticada, é inegável a notável disseminação e a força da teoria em tela até inícios do século XX. Seus próprios detratores a reconhecem, chegando até mesmo a apontar como razões para tanto, além de estar imbricada na tradição, a sua ínsita simplicidade e seu rigor lógico. Na verdade, toda a teoria é deduzida de uma premissa — só o homem é sujeito de direito — de que deriva o corolário, a pessoa jurídica é um entre fictício.

Acreditar no axioma de que unicamente o homem é sujeito de direitos, mas não aceitar a ficção de personalidade, leva à completa desnecessidade da existência de personalidade jurídica e subsequentemente à sua negação. As teorias que surgiram nessa linha e que procuraram uma resposta para a situação do patrimônio da pessoa jurídica, bem como aos direitos por ela exercidos, podem ser didaticamente agrupadas em duas: teoria dos direitos sem sujeito ou teoria do patrimônio de afetação; e teoria individualista.

Desenvolvendo a possibilidade da existência de direitos sem sujeito, afirmada por Windscheid em 1853, e utilizando também formulações do direito romano, Brinz acabou por deduzir a teoria do patrimônio-fim (Zweckvermögen).

Entre os romanos só havia uma espécie de pessoa, a humana. A criação, modernamente, de uma segunda categoria de personalidade - a jurídica – representa um regresso fantasioso, além de desnecessário. Isso porque os bens podem pertencer ad aliquem - a alguém -, mas também ad aliquid - a uma finalidade – a qual não necessita ser personificada para merecer proteção jurídica. Dessa maneira, os bens da pessoa jurídica seriam patrimônio sem fim. Titular dos direitos e deveres seria o patrimônio, e seus representantes agiriam no intuito da finalidade, e não per se.

Bekker trouxe à teoria em tela novos desenvolvimentos. Face ao direito duas são as situações possíveis: o gozo (genus) e a disposição (verfügung). Nem sempre o gozo – potencialidade de usufruir suas vantagens materiais – vem junto com a disposição – direito de agir como proprietário, administrando-os etc. Enquanto o gozo pode também caber a um incapaz, animal ou coisa inanimada, a disposição é privativa de alguém capaz de volição. Além disso, ele bipartiu os patrimônios-fim em independentes e dependentes. Os primeiros repetem a conceituação de Brinz, conjunto de bens afetados a uma finalidade e sem sujeito. Os últimos são bens, embora compondo um patrimônio maior de uma pessoa, servem como autonomia a um objetivo especial.

Centrada na pessoa dos associados e com raízes na doutrina do direito subjetivo de Ihering, Van der Heuvel propôs uma teoria que foi posteriormente desenvolvida por Vareilles-Sommières.

Para Van der Heuvel não é necessário apelar-se para a ficção, de vez que as regras de associação podem ser explicadas por meio dos princípios gerais. Três seriam as diferenças entre sociedades com personalidade e as dela destituídas: (i) mesmo possuindo a sociedade bens imóveis, sempre se considera mobiliário o direito dos sócios; (ii) o ativo social, patrimônio da sociedade, garante apenas os credores da sociedade, não os credores pessoais dos sócios; e (iii) o gerente representa a sociedade em juízo.

A praticidade está na origem da primeira diferença: simplificação do procedimento de transmissão de ações ou partes da sociedade. A segunda encontra sua explicação na separação de patrimônio e na liberdade contratual. Os sócios, ao formarem a sociedade, afetam certos bens à finalidade social e somente esses bens responderão pelas dívidas dessa sociedade. Isso é factível, desde que se acautelem terceiros. A última se dá, pois o gerente representa todos os sócios.

Em conclusão, as pessoas jurídicas seriam associações às quais a lei concedeu alguns privilégios, além de certas derrogações dos princípios comuns, em suma, um conjunto de privilégios.

Vareilles-Sommières parte do pressuposto de que todas as pessoas jurídicas são associações e considera como sendo, na verdade, dos associados os direitos tidos pela doutrina como pertencentes à pessoa jurídica. Os associados, coproprietários do patrimônio social, no exercício de seus direitos, acham-se sob a égide de um regime personificante — régime personnifiant — cujas feições são : a) um associado, somente com o consentimento de todos, poderá alienar a sua parte da massa comum; b) não pode um associado receber separadamente o seu quinhão de crédito social; c) não se pode exigir isoladamente de um sócio a sua parte da dívida social.

Embora se possa depreender dessa trilogia que exista uma pessoa, pelo fato de os associados possuírem conjuntamente o patrimônio social, na realidade inexiste outra pessoa a não ser a dos indivíduos associados. Assim, a gênese da pessoa jurídica não se deve ao legislador, mas sim ao regime a que se submeteram os associados.

As características do regime personificante, por seu turno, estão em consonância com os princípios gerais de direito obrigacional. Nessa linha, a pessoa jurídica seria um conjunto de cláusulas, devidamente aceitas pelos associados.

Embora creditando à teoria dos direitos sem sujeito, o fato de ter realçado o elemento teleológico no conceito de personalidade jurídica, são as seguintes as objeções mais frequentes contra tal teoria.

A possibilidade da existência da pessoa jurídica destituída de patrimônio comprova que os conceitos de patrimônio-fim e de pessoa jurídica não se superpõem. Qualquer patrimônio, inclusive o pertencente a um indivíduo, serve a uma finalidade. A pessoa jurídica é muito mais que uma simples coleção de bens. A existência de sujeito é imprescindível para que haja direito. Embora se possa imaginar a junção dos direitos patrimoniais em um todo, foge à compreensão como no patrimônio possam residir direitos de outras naturezas, como, exemplificativamente, os corporativos.

Já a teoria individualista ocasionou, mormente, as críticas a seguir:

Não aquilatou a importância do reconhecimento legal no surgimento da associação, acabando por, inter alia, deixar de reconhecer as diferenças entre associações não reconhecidas e pessoas jurídicas, na verdade existentes. Não é possível que a personalidade jurídica se cinja à exterioridade da associação, pois os próprios associados encontram-se perante um ente, o qual inclusive pode pelos mesmos ser acionado.

Ambas as teorias patrimonialistas foram acoimadas de serem apropriadas apenas ao direito privado, não tendo dado explicações à existência das pessoas jurídicas de direito público[2].

Ainda há uma terceira vertente teórica sobre as pessoas jurídicas, a que afirma sua personalidade real. Esta merece ser tratada, em outro momento, especificamente. Do exame das três visões teóricas sobre pessoas jurídicas e da meditação à respeito, exsurge compreensão holística da natureza jurídica dessas pessoas, fundamentais no mundo contemporâneo.


1 Rodas, João Grandino, A evolução que criou a pessoa jurídica merece ser conhecida, Revista eletrônica ConJur, 21 de abril de 2016.

2 Rodas, João Grandino, Sociedade Comercial e Estado, São Paulo, Editora Saraiva, 1995, p. 18/23