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terça-feira, 26 de julho de 2016

Aprovação crítica do regime de contratos no projeto de Código Comercial (parte 1)


Por Gerson Luiz Carlos Branco

Dada a notícia de que aprofundam-se as discussões no Congresso Nacional a respeito da votação do projeto de Código Comercial apresentada pelo deputado Vicente Cândido, torna-se necessário que se aprofundem as reflexões sobre os efeitos de uma possível aprovação de tal projeto de lei.

Nesse sentido, este breve artigo contém reflexão sobre o grau de unificação do Direito das Obrigações que atualmente existe no Direito brasileiro, considerando-se o regime legal unificado do Código Civil vigente e eventuais efeitos de um possível e futuro Código Comercial, especialmente sobre o Direito Contratual, fruto das investigações feitas no grupo de pesquisas em Direito Empresarial na UFRGS, participante da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

Trata-se de um de vários estudos que serão publicados nesta coluna e que tem como objetivo discutir os efeitos práticos e as dificuldades decorrentes de uma possível aprovação do Projeto de Código Comercial.

Nesse sentido, deve-se observar que as reflexões não servem como crítica favorável ou contrária à aplicação dos seus dispositivos, mas apenas como uma contribuição a fim de que tais problemas sejam pensados, seja para aprimoramento do projeto ou mesmo para revisão de propósitos.

Como já afirmei em outras oportunidades, embora o  Código Civil tenha unificado legislativamente a matéria, essa unificação é aparente em alguns casos e parcial em outros.

Iniciando-se pelos contratos em espécie, pode-se observar que muitos dos contratos típicos previstos no Código Civil são unicamente mercantis. Embora a estrutura legal não discrimine, a possibilidade jurídica de sua realização está associada à prática reiterada de uma atividade considerada como objeto da empresa, segundo a determinação do artigo 966 do Código Civil.

Veja-se, por exemplo, o contrato de seguro. Somente pode-se desempenhar a função de seguradora no Brasil uma sociedade empresária organizada sob a forma de S.A., nos termos do que determina o Decreto-lei 73/1966. Embora as disposições do Código Civil nada digam a esse respeito, o código não compreende a totalidade do Direito ou disciplina integral da atividade.

atividade econômica e social, conhecida como seguro, é disciplinada por leis eminentemente empresariais, reservando-se no Código Civil, por força da tradição, as disposições do contrato de seguro.

O seguro nasceu pelas mãos dos comerciantes e é tipicamente um contrato comercial[1].

A disposição do artigo 425 do Código Civil[2] permite que se possa celebrar contratos atípicos e, com isso, nada impede que os particulares, que não façam a atividade de seguro uma atividade profissional, possam celebrar um contrato de seguro mútuo, nos moldes do que previa os artigos 1.466 e subsequentes do Código Civil de 1916, atraindo a regulação atual sobre a matéria[3].

Porém, isso é uma situação absolutamente excepcional que não altera a condição de o seguro de ser um contrato tipicamente empresarial, podendo ser, também, regulado concomitamente pelo Direito do Consumidor, quando for o caso.

Nesse aspecto, o projeto de Código Comercial, ao afirmar, no parágrafo único do artigo 298, que "o Código de Defesa do Consumidor não é aplicável aos contratos empresariais", incorre em uma grave falha sistemática.

Embora o contrato seja empresarial, não é possível deixar de aplicar o Código de Defesa do Consumidor quando a relação for de consumo. Nesse sentido, a tentativa de qualificar como "empresarial" os contratos celebrados entre empresários, analisada em conjunto com a disposição do artigo 9º, de que "empresário é quem, sendo pessoa física ou sociedade, está inscrito como tal no Registro Público de Empresas", representa verdadeiro retrocesso histórico, aos tempos do album mercatorum, ignorando-se as razões históricas e sociais do surgimento da teoria dos atos de comércio.

Não se pode ignorar a interação normativa entre Direito Civil e Comercial, circunstância que Tullio Ascarelli já havia chamado a atenção de que o Código Civil de 1916 havia tratado sobre diversas matérias que eram típicas do Direito Comercial. O autor italiano chama a atenção para a representação, o seguro, os títulos de crédito e as próprias sociedades por ações, como institutos do Direito Comercial que acabaram sendo absorvidos pelo Direito comum, com uma aplicação geral[4].

Porém, surpreendentemente, o contrato de seguro não está regulado no projeto de código.

Isso significa que, na hipótese de aprovação do atual projeto de Código Comercial, será necessário regular a matéria segundo as disposições do Código Civil.

Evidentemente não será novidade termos um Código Comercial e um Código Civil com regulamentação de contratos mercantis. A esse propósito, Ascarelli chamava a atenção da regulamentação da venda por amostras, venda a contento e sujeita a prova no Código Civil de 1916, contratos que desde sempre foram atinentes às atividades empresariais e estavam regulados no Código Civil de 1916[5].

Esses são outros exemplos: venda por amostras, venda sobre documentos, venda a contento, contratos tipicamente empresariais, que raramente podem surgir em uma relação civil, pois a sua prática social está vinculada ao exercício de atividade para a circulação de produtos, nos moldes do artigo 966 do Código Civil. Se aprovado o projeto de Código Comercial, tais contratos continuarão sendo regulados pelo Código Civil.

Contratos de corretagem, distribuição, comissão, assim como um grande número de contratos socialmente típicos, tais como factoringfranchising, shopping center etc., são, em regra, invariavelmente praticados por empresários no exercício de sua atividade, e, por consequência, se submetem aos princípios, regras e métodos do Direito Empresarial.

Considerando que o Código Comercial foi editado 66 anos antes do Código Civil de 1916, pode-se claramente compreender as razões legislativas para disciplinar matérias mercantis no Código Civil. Entretanto será difícil entender ou explicar as razões de se editar um Código Comercial para "resgatar princípios" e deixar um contrato como o de seguro disciplinado unicamente no Código Civil.

É claro que alguns contratos dificilmente podem ser concebidos como contratos empresariais. Assim, todos os contratos gratuitos são previstos no Código Civil, pois a gratuidade não é compatível com a atividade empresarial.

Nesse sentido, contratos que eram presumidamente gratuitos foram regulados pelo Código Civil como presumidamente onerosos se possuírem "fins econômicos". Embora os "fins econômicos" não sejam um privilégio do Direito Empresarial, é certo que todas as relações empresariais possuem, direta ou indiretamente, fins econômicos[6].

Assim, os contratos de depósito, mútuo e mandato, quando feitos por empresários no exercício de sua atividade, serão sempre onerosos e submetidos aos princípios e regras do Direito Empresarial.

Os contratos de comodato e doação, que por sua natureza são sempre gratuitos, também, podem ser usados nas relações empresariais, mas, em tal hipótese, a regulamentação não é propriamente a prevista no Código Civil, mas está acrescida dos princípios e regras que disciplinam a relação empresarial que lhes tem como objeto.

Esses contratos, quando feitos no âmbito das relações empresariais, dificilmente são celebrados de forma isolada, pois, geralmente, estão conectados a outros contratos (típicos ou socialmente típicos), formando um sistema contratual ou um conjunto de contratos conexos, cuja causa atrai a incidência de regras distintas[7].

Diante disso, tanto a doutrina quanto a jurisprudência têm disciplinado, relativamente aos contratos de comodato de tanques de combustíveis, doação de amostras gratuitas etc.[8], a partir da ótica do Direito Empresarial, e não do Direito Civil.

Essa elaboração ou ressignificação tem conteúdo dogmático importante tanto para o reconhecimento da unidade de regime do Direito das Obrigações, quanto da autonomia do Direito Comercial como disciplina jurídica, com princípios e métodos próprios[9].

Além disso, a doutrina, cumprindo o seu papel integrador e estabilizador, também acabou cunhando uma nova classificação para considerar oscontratos interessados. Esses que são aqueles em que, apesar de haver gratuidade, a causa contratual está associada a fins econômicos e, portanto, aplicam-se a esses contratos as regras e princípios dos contratos onerosos.

A esse propósito e por causa da própria unificação legislativa, os elaboradores do código estabelecem como critério de fixação de riscos, atribuição de responsabilidade, a terminologia "contratos benéficos", como sendo aqueles que além de gratuitos não são interessados.

Sobre essa questão, o projeto de Código Comercial contém a disposição do artigo 320, segundo o qual "as obrigações constantes de contrato empresarial presumem-se onerosas". Tal disposição não é expressa como regra geral no Código Civil vigente, mas está inserida como disposição dos contratos que além de gratuitos, também podem ser objeto de relações empresariais, tais como o mútuo, depósito etc.

Ou seja, a solução do projeto de Código Comercial, nesse aspecto, será a de continuar aplicando o Código Civil, o que dispensa qualquer outro comentário.

Há outros contratos, como os de locação e a compra e venda, que, embora regulados sob uma única veste legal, comportam contratos civis e empresariais.

E nesses casos, as regras e princípios são os mesmos, independentemente da matéria?

A resposta a esse questionamento será apresentada na segunda parte deste artigo, na próxima semana.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).


[1] Espínola, EDUARDO. Contratos Nominados no Direito Civil Brasileiro. Campinas, Bookseller, 2002, p. 642 e ss. PASQUALOTTO, Adalberto. Garantias no Direito das Obrigações: um ensaio de sistematização, Porto Alegre, 2005, p. 187.
[2] Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.
[3] Art. 1.466. Pode ajustar-se o seguro, pondo certo número de segurados em comum entre si o prejuízo, que a qualquer deles advenha, do risco por todos corrido.
[4] ASCARELLI, Tullio. Panorama do Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1947, p. 27 e ss. 
[5] Idem, ibidem, p. 40.
[6] Nesse sentido, veja-se no Código Civil os artigos 591, 628, 658.
[7] BESSONE, Darcy. Do Contrato. 4 ed. SP: Saraiva, 1997, p. 99. GOMES, Orlando. Contratos. 18 ed. RJ: Forense, 1998, p. 54.
[8] A propósito, ver pesquisa de PIVA, Luciano Zordan. Os efeitos da unificação do regime das obrigações pelo Código Civil de 2002: estudo do contrato de comodato na relação de distribuição de derivados de petróleo.Cadernos do Programa de Pós-graduação em Direito, 2013. VIII, p. 1, 2013.
[9] A propósito, veja-se MARTINS-COSTA, Judith. Modelos de Direito Privado, p. 09 e ss.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Como se produz um jurista? O modelo russo (parte 50)

A arca russa

Alexandr Nikolaevitch Sokurov filmou em um único dia a película "A arca russa", de 96 minutos, usando a técnica do "plano-sequência" (um registro de ação em sequência única sem cortes). O filme é uma metáfora da História russa, que tem por cenário o Museu Hermitage, de São Petersburgo. A narrativa é conduzida por um nobre francês do século XIX, o Marquês de Custine, que representa a visão de um europeu sobre a Rússia, a simbolizar a dualidade de ser esse imenso país uma contradição essencial euroasiática. Ele atravessa todos os salões do enorme museu e explora diversos momentos da História Russa, como os reinados de Pedro, o Grande, Catarina II e Nicolau II.

As cenas finais da película mostram o que seria o último baile da monarquia Romanov, em 1913, com a Corte e seus elegantes aristocratas dirigindo-se o salão, enquanto Custine parece se recusar a segui-los. O local transformar-se-ia em um hospital militar, dois anos após deflagrada a Primeira Guerra Mundial. Enquanto isso, as águas sobem e o museu transforma-se em uma arca, enquanto o dilúvio destrói o multissecular regime czarista.

Esse belíssimo filme (que pode ser assistido aqui) é mais do que uma aula de História, mas uma forma de se conhecer a alma russa.  Custine, em seu livroA Rússia, de 1839, descrevia os nobres russos como uma classe essencialmente bárbara e que usava o verniz europeu quando lhe convinha. Reacionário, saudoso do Antigo Regime, o marquês viajou à Rússia para conhecer as virtudes de um regime autocrático em plena era de constitucionalização das monarquias nacionais. O que viu corroeu suas ilusões, abalou suas convicções e fez com que sentisse alívio quando atravessou a fronteira com a Prússia.

É sobre esse enigmático, imenso e antigo país que a série sobre a formação jurídica no mundo se dedicará nas próximas semanas.

Do Principado de Kiev aos sucessores de Bizâncio
As armas tradicionais da Rússia compõem-se de uma água bicéfala, um símbolo herdado do Império Bizantino. Até a Revolução Russa de 1917, a água bicéfala ocupou posição central no brasão do Império, o que foi restaurado em 2000, sob o regime republicano pós-comunista. A imagem reflete a pretensão russa de suceder ao Império Bizantino, cujo poder era exercido no Ocidente e no Oriente, daí voltarem-se as cabeças da águia para lados opostos. A religião ortodoxa, as dimensões continentais, a tradição grega e a vocação militar e imperial deram conteúdo às formas que o brasão pretendia traduzir.

No primeiro milênio, na confluência dos territórios russo, bielorrusso  e ucraniano, instalou-se o Rus de Kiev, um principado cuja sede era a atual capital da Ucrânia. Em 867, deu-se início à cristianização do território do principado, graças a ação do Patriarcado de Constantinopla. As ligações com o Império Bizantino nascem dessa época e aprofundaram-se após o Cisma do Oriente, quando os católicos romanos apartaram-se dos católicos ortodoxos. Essa diferenciação serve, até aos dias atuais, para marcar a identidade nacional russa.

No século XV, o Grão-Ducado de Moscou sucedeu a Kiev como núcleo do que viria a ser a Rússia Moderna. A expansão territorial, a partir de Moscou, começou a avançar celeremente no século XVI, quando, no ano de 1547, foi definitivamente atribuído ao soberano de Moscou o título de czar, uma forma sincopada de "césar". Mais do que um título monárquico que evocava o poder de Roma (e Constantinopla era conhecida como a Segunda Roma), ele também timbrava um direito de sangue ao título. Tal se deu após o casamento de Ivã III com Sofia Paleólogo, sobrinha do último basileu (imperador) bizantino.

A região europeia da atual Rússia, nos séculos XVI e XVII, era objeto de intensas disputas entre as potências da época, Suécia, a República das Duas Nações (Polônia e Lituânia) e a Ordem dos Cavaleiros Teutônicos.

A dinastia dos Romanov chegou ao poder  em 1613, com Miguel, o primeiro czar dessa família, que tentou vincular suas origens aos tempos de Roma, dizendo-se descendentes de Júlio César. Na verdade, o nome Romanov foi inventado, com o objetivo de alterar a origem bem pouco aristocrática do sobrenome Kobila (égua).

Pedro, o Grande (1682-1725) é, sem favor, o maior de todos os Romanov. Conquistador de territórios ao Norte, modernizou  e perseguiu a europeização da Rússia. À custa de territórios suecos, estendeu as fronteiras setentrionais do país e edificou a grande cidade "europeia" da Rússia, São Petersburgo (1703), para onde transferiu a capital nacional. Pedro também abriu as portas para emigrantes de origem alemã, que, até a Revolução Russa, consistiriam em uma parcela notável da pequena nobreza russa, quase sempre vinculada à ciência, à tecnologia e à burocracia militar e civil. É desse período que também se acentuou o uso do francês como língua culta entre os russos das classes superiores.  

Os Romanov governaram e expandiram o território de "todas as Rússias" até 1762, quando o ramo foi extinto com a morte da czarina Elizabete, que não deixou herdeiros de seu marido Ivan VI, deposto do trono. A sucessão recaiu no sobrinho da czarina, Pedro de Holstein-Gottorp, o futuro Pedro III. Este último casou-se com a princesa alemã Sofia Frederica Augusta de Anhalt-Zerbst-Dornburg, a qual, por sua vez, em um golpe de Estado patrocinado pela aristocracia russa, veio a derrubar seu marido. A princesa do ramo alemão Anhalt-Dornburg converteu-se em Catarina II, uma das maiores soberanas da Rússia (e da história europeia).

Catarina, a Grande, uma "déspota esclarecida", governou "todas as Rússias" até 1796. Mulher forte, com vários amantes, de entre eles Gregório Alexandrovich Potemkin (que viria a nomear o famoso Encouraçado Potemkin), Catarina modernizou o país, prestigiou institutos de educação e cultura, expandiu os territórios nacionais com a partilha da Polônia e as conquistas de imensas áreas do Império Otomano, além de converter seu país em um ator importante na cena política europeia. Criméia, Ucrânia, Rússia Branca, Lituânia e Letônia tornaram-se parte da Rússia no reinado de Catarina.

Após Catarina, que conservou o sobrenome Romanov a título de tradição, embora não mais fosse este o sangue a governar o país, diversos czares expandiram os territórios russos em detrimento do cada vez mais decadente Império Otomano. Áreas mongóis, tártaras, uzbeques, cazaques, moldavas e outras não eslavas foram-se incorporando ao já gigantesco Império Russo.

Austerlitz e o começo do fim da Rússia czarista
O cometa que rasgou o firmamento europeu após a Revolução Francesa de 1789 passou à História como Napoleão Bonaparte. Após conquistar Espanha, Holanda, Bélgica, Itália, territórios alemães, Áustria e a área da atual Polônia, o general revolucionário, que se tornaria o "imperador dos franceses", invadiu a "Mãe Rússia". Os russos perdem todas as batalhas até Moscou, que é incendiada para não deixar aos invasores qualquer expectativa de ocupação do país. Esgotado e com a cadeia de abastecimento cortada, as legiões francesas são empurradas de volta pela resistência e pelas forças regulares russas. Napoleão I seria arrastado de volta a Paris e render-se-ia ante as forças da coalização britânico-alemã-russa.

A derrota de Napoleão na Rússia, em um dos mais frios invernos da História, impôs à Europa a restauração das monarquias derrubadas pela Revolução Francesa e seus marechais. Essa guerra de quase duas décadas, que contrapôs os ideais revolucionários à ideologia autocrática do Império Russo, deu a vitória ao czar, mas, em perspectiva, esgotou as forças vitais da sociedade russa.

A história dessa epopeia nacional foi narrada por Leão Tolstói em uma das mais importantes obras da literatura, Guerra e paz. Para além do relato das guerras napoleônicas e de seu desfecho no território russo, Guerra e paz é um livro visionário, que explora as virtudes e os vícios da nobreza, do campesinato e da burguesia russos. A vocação militar e política dos aristocratas é iluminada sob diferentes luzes, que ora expõem seu caráter quixotesco, ora exigem sua futilidade. Ao mesmo tempo, o livro registra o avanço do camponês enriquecido sobre a inépcia da nobreza em administrar suas propriedades. Contrapõe os nobres do tempo de Catarina, velhos e sagazes, com seus filhos e netos do século XIX, mal adaptados a um mundo de corte e afrancesado, mas que exige a brutalidade para enfrentar o inimigo, oriundo das classes baixas da França e capaz de tudo para derrotar a autocracia russa.

O clímax do livro está, provavelmente, na Batalha de Austerlitz (ou Batalha dos 3 Imperadores, 2 de dezembro de 1805), quando Napoleão derrota os imperadores da Áustria e da Rússia, em território do Império austríaco, pondo fim temporário às hostilidades das monarquias centrais contra a França.  A personagem Andrei Nikolayevich Bolkonsky, um jovem princípe russo, de família rica e reacionária, é ferido gravemente na batalha. Aquele seria o fim glorioso de qualquer militar russo a serviço de seu czar. Bolkonsky cai e, entre o transe e a inconsciência, sob a luz do céu azul, vê sua vida passar diante de si e põe em dúvida suas antigas certezas. Esse é o ponto de virada da personagem, mas bem que poderia significar o esgotamento de uma era para a Rússia e para a classe destinada de conduzi-la desde seu nascimento.

O século da agitação e dos rebeldes universitários
A Rússia Oitocentista descansou sobre os louros da vitória contra o usurpador da legitimidade dinástica, Napoleão, e as ideias perturbadoras nascidas em França, no final do século XVIII. Nada mais enganoso do que a impressão deixada pela vitória definitiva contra Napoleão, em 1815, pelas forças lideradas pelo Duque de Wellington. A Rússia tentou modernizar-se, ao tempo em que o modelo autocrático lutava contra qualquer mudança real. A contradição levaria ao inevitável colapso.

Entre tentativas de regicídio, massacres aos judeus, guerras de fronteira, avanço da industrialização, crescimento de uma pequena burguesia, libertação dos servos da gleba e decadência militar, a Rússia do século XIX assistiu à formação de uma elite liberal e intelectualizada, que seria doutrinada nas faculdades de Direito (e de outras ciências humanas e sociais aplicadas) que se expandiram no período.

O melhor exemplo disso é a Imperial Universidade de Kazan, na Região do Volga, fundada em 1804 pelo imperador Alexandre. Ela se constituiu em um centro de formação de grandes pesquisadores em Química. De entre seus alunos mais famosos, estão nomes como  Karl Ernst Claus  (químico, descobridor do rutênio) e Leão Tolstói.  Na segunda metade do século XIX, assim como a maioria das universidades russas, Kazan atraiu jovens contestadores, especialmente nas faculdades de Ciências Humanas. Um deles chamava-se Vladimir Ilyich Ulyanov (1870-1924), filho de uma família burguesa, cujo irmão viria a ser enforcado, após seu envolvimento em uma tentativa de regicídio contra o czar Alexandre III.

Ulyanov, cujo irmão enforcado era aluno da Imperial Universidade de São Petersburgo, ingressou na Universidade de Kazan em 1887, na Faculdade de Direito. Rapidamente, ele se engajou em uma célula revolucionária e liderou um protesto contra o Governo Imperial. Ele foi identificado, expulso da universidade e exilado na propriedade rural de sua família.

Outro jovem que se tornaria um rebelde estudantil chamava-se Levi Davidovich Bronstein (1879-1940), um ucraniano de origem judaica, cuja família foi assentada em uma colônia czarista na Criméia, como parte do plano de russificação do território. Aluno dedicado, o jovem Levi ingressou no curso de Matemática na Imperial Universidade de Nova Rússia (posteriormente, Odessa), que havia sido fundada em 1865 pelo czar Alexandre II.

Exemplos de jovens como Bronstein ou de Ulyanov  não faltaram e muitos deles uniram-se a organizações revolucionárias no final do século XIX, que vieram se unir em 1898 sob a bandeira do Partido Operário Social-Democrata Russo, fundado em Minsk, sob inspiração de ideais marxistas.

Sob o reinado de Nicolau II, um czar fraco, essas forças organizaram-se com maior competência e passaram a receber apoio financeiro do imperador da Alemanha, após a declaração da guerra de 1914. Um dos líderes do movimento, Vladimir Ilyich Ulyanov, encontrava-se na Suíça e ali defendia que as classes trabalhadoras unissem-se contra o esforço bélico empreendido por suas nações.

A incompetência da condução da guerra pelo czar e seu estado-maior levou o país a ser derrotado pelos alemães, com desperdício de tropas vitais e das forças de maior lealdade ao regime monárquico. A crise chegou ao frontinterno e a sublevação popular fez com que se instalasse um governo provisório que cometeu o erro de não suspender as hostilidades. Patrocinado pelo Governo Imperial alemão, um trem chegou, em 16 de abril de 1917, à Estação Finlândia, em São Petersburgo (cujo nome havia sido russificado para Petrogrado). Nele estava Vladimir Ilyich Ulyanov, que proferiu a famosa proclamação em favor do fim da guerra e da revolução socialista.

*** 

Na próxima semana, apresentar-se-á o desfecho dessa história, introdutória ao estudo do modelo russo de ensino jurídico.

Talvez seja desnecessário dizer que  Vladimir Ilyich Ulyanov e Levi Davidovich Bronstein, os dois jovens universitários que estudaram em cursos superiores graças às iniciativas czaristas de modernização da Rússia, passaram à história como Vladmir Lênin e Leon Trotsky. Respectivamente, o pai da Revolução Russa de 1917 e do Exército Vermelho. 

Mas isso já é outra coluna.

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Como se produz um jurista? O modelo chinês (parte 49)

Por 

Encerra-se hoje a série sobre o modelo chinês de formação jurídica. Os principais aspectos sobre as universidades, os professores, as carreiras jurídicas e a representação social da docência foram examinados nas colunas precedentes, às quais se remete o leitor.

Nesta última coluna, cuidar-se-á dos seguintes  aspectos: a influência da tradição jurídica de civil law, as matrizes curriculares e  os métodos de ensino.  No fecho, apresentar-se-á uma visão geral do modelo chinês.

O Direito chinês e a tradição jurídica de civil law
O Direito chinês foi profundamente modificado após a queda da dinastia Quing em 1911. Adotou-se uma constituição ao estilo norte-americano e, no intervalo de 1912 a 1931, elaboraram-se seis códigos (Organização Judiciária, Comercial, Civil, Penal, Processo Civil e Processo Penal) no modelo de civil law e em coerência com a ideologia nacionalista do Kuomintang, que buscava ocidentalizar o país. No entanto, esse movimento foi socialmente pouco eficaz. A maior parte da população permaneceu ignorante ou alheia a esses novos códigos e seguiu observando a tradição confucionista, de caráter jusnaturalista. Independentemente desse insucesso fático, é inegável que 6 códigos causaram uma ruptura na tradição jurídica chinesa. Para se ficar apenas com o Código Civil, ele se inspirou nas codificações suíça e alemã, com a recepção de conceitos como negócio jurídico e o método de estudo típico dessa matéria no final do século XIX na Alemanha.[1]

Após a queda do regime nacionalista em 1949, a China ingressou (brevemente) sobre a influência da União Soviética. Foi a época das codificações de inspiração soviética até a ruptura ocorrida em 1957, quando o líder chinês Mao Tsé-Tung resolveu conduzir o país a um caminho próprio, deixando de lado o alinhamento internacional das nações socialistas com Moscou. Esse processo durou até 1966, quando se instalou na China a famigerada Revolução Cultural. Foi um período de destruição das tradições jurídicas, de eliminação da advocacia como atividade profissional, do fechamento de faculdades de Direito e da eliminação dos valores jurídicos soviéticos ou mesmo da incipiente influência das codificações ocidentais.[2]

Nos últimos anos de vida de Mao Tsé-Tung, o poder real na China foi compartilhado com o Bando dos Quatro, um grupo formado Jiang Qing (mulher do líder chinês), Zhang Chunqiao, Wang Hongwen e Yao Wenyua, que controlou politicamente o país até 1976, quando Mao veio a falecer. Nesse ano, o Bando dos Quatro foi alijado de suas funções, muitas delas informais, e uma nova "revolução" teve início na China, que a levou aos patamares atuais de desenvolvimento econômico, a ponto de muitos não mais qualificarem o país como comunista e sim como um exemplo de "capitalismo de Estado" controlado por um partido único.

Em 1982, com a nova constituição da China, foram reconhecidos novos (ou velhos) Direitos, como os direitos de sucessões, minerário, de propriedade intelectual, de falências, eleitoral, contratual, econômico e internacional privado.[3]  No âmbito do Direito Civil, em 1986, editou-se a Lei de Princípios Gerais de Direito Civil, que não se compara a um Código Civil, mas que contempla normas de caráter geral sobre personalidade, negócio jurídico e sua coexistência com a ordem jurídica comunista.[4]

Contemporaneamente, a China passa por turbulências quanto a essa fidelidade às tradições de civil law, confuciana e, mais recentemente, com o aumento da influência de institutos jurídicos norte-americanos, de common law. Em relação a esta última tradição, o fenômeno ainda espera por uma maior sedimentação, até para que se possa apreciá-lo de modo adequado. A presença de estudantes chineses em número cada vez mais crescente em universidades dos Estados Unidos poderá implicar mudanças significativas nesse quadro a médio prazo.

Matrizes curriculares
Compreendida essa realidade complexa do Direito chinês, passa-se ao exame de algumas matrizes curriculares de instituições universitárias do país ou de suas regiões administrativas especiais.

A Faculdade de Direito da Universidade de Macau possui a seguinte estrutura de matriz curricular: [5]

a) Primeiro ano: Introdução ao Direito; História do Direito, Direito Constitucional,  Lei Fundamental de Macau, Direito Internacional Público, disciplinas de Língua Portuguesa e uma disciplina de Educação Geral, que se pode constituir em matérias como Prática Desportiva, Artes Visuais, Artes Dramáticas ou Música.

b) Segundo ano: Teoria Geral do Direito Civil I, Teoria Geral do Direito Civil II,  Direito das Obrigações I, Direito Administrativo I,  Direito Administrativo II, Direito de Família, Direito de Família e Direito Patrimonial Sucessório, Economia e disciplinas de Língua Portuguesa.

c) Terceiro ano: Direito das Obrigações II,  Direito do Trabalho, Direito das Coisas, Direito Comercial I, Direito Comercial II, Direito Penal I, Direito Penal II,  Direito Administrativo III,  Direito Processual Civil I e 1 disciplina optativa.

d) Quarto ano: Direito Internacional Privado, Direito Comercial III, Direito Processual Penal I, Direito Processual Civil II, Direito Processual III, Ciência Política, Pesquisa e Estágio Curricular, além de uma disciplina optativa.

São disciplinas optativas, que o aluno poderá escolher ao longo do curso, a depender de certos pré-requisitos: Economia Pública, Direito Tributário, Sistemas Jurídicos Comparados, Direito Ambiental, Direito Registral e Notarial, Medicina Legal, Parte Especial do Direito Penal, Prática Forense, Teoria Geral do Direito Chinês, Teoria Geral do Direito Português, Português Jurídico, Introdução à Resolução Alternativa de Litígios e História do Direito de Macau.

Na Faculdade de Direito da Universidade Jiao Tong de Xangai, as disciplinas obrigatórias são Introdução ao Direito, Teoria Geral do Direito, Direito Constitucional, História do Direito Chinês, Princípios de Direito Administrativo, Processo Administrativo, Introdução ao Direito Civil, Direito dos Contratos, Direito das Coisas, Responsabilidade Civil, Direito Comercial, Direito Econômico, Direito da Propriedade Intelectual, Processo Civil, Direito Penal I, Direito Penal II, Processo Penal, Direito Internacional Público, Direito Internacional Privado, Direito Econômico Internacional e Direito da Proteção do Meio Ambiente e dos Recursos Minerais.[6] As principais disciplinas optativas, como Direito Societário, Direito Imobiliário, Direito dos Seguros, Direito Financeiro e Tributário, Direitos Humanos, Arbitragem e Mediação, Direito dos Servidores Públicos, Direito do Trabalho e Seguridade Social, Prática Jurídica, além de várias disciplinas de Direito Comparado.[7]

Essas duas matrizes permitem, ainda que de modo não controlável empiricamente, observar uma enorme simetria das estruturas curriculares com os padrões da Europa mediterrânea e com o Brasil.

Chega a ser surpreendente a quantidade de disciplinas de Direito Civil e Direito Comercial, quase todas obrigatórias, em um país comunista e com enorme grau de intervencionismo do Estado na economia.  Talvez seja porque os comunistas chineses sabem que não é possível compreender o capitalismo sem conhecer o que sejam os institutos fundamentais do Direito Privado (contrato, empresa, pessoa e propriedade). Notável também que praticamente não há disciplinas metadogmáticas,  metajurídicas ou matérias híbridas.

Métodos de ensino-aprendizagem
Na 46ª coluna, deixou-se evidenciado o caráter pragmático da formação jurídica chinesa: um país com mais de um bilhão de pessoas, uma enorme população jovem, uma ideologia de Estado igualitária e uma luta encarniçada, todos os anos, por um lugar na universidade. A tradição confucionista da hierarquia e do respeito à autoridade moral acomodou-se ao modelo de aulas magistrais, com provas escritas, avaliações obrigatórias e controles de aprendizagem. Há tentativas de adaptação do modelo à experiência de common law, como as clínicas de prática forense, as clínicas de direitos humanos e as moot corts.

As condicionantes históricas e sociais da China, no entanto, determinam a permanência em um modelo tradicional, que valoriza o estudo, a dedicação e não se importa muito com certas particularidades encontráveis em países ocidentais ricos.

Conclusão
O modelo de educação jurídica chinesa é de tal modo multifacetado e complexo que mereceu o maior número de colunas até agora de nossa série. O tamanho do país e de sua população podem ser indicados como fatores determinantes de uma estrutura educacional competitiva e que tem crescido em importância internacional nos últimos 20 anos.

Com dinheiro para investir em pesquisa, a China tem chamado de volta muitos de seus concidadãos e tentado se abrir para professores estrangeiros. Com o renascimento do Direito, após 1976, a educação jurídica tem assumido relevo crescente na sociedade. Os indicadores da participação de pessoas com formação em Direito nas instâncias de poder chinesas são um dado objetivo dessa mudança.

Os cursos jurídicos, salvo algumas exceções, são jovens e neles se acomodam o confucionismo, a tradição de civil law e a recente influência norte-americana. O ensino superior é um meio de ascensão social, embora se exija uma contraprestação dos alunos.  

As restrições do modelo político chinês e a preocupação em atender a padrões internacionais de segurança jurídica têm determinado mudanças na qualificação dos membros do Poder Judiciário, embora ainda haja percepção social de corrupção, além dos baixos padrões remuneratórios.

Os professores também são remunerados de maneira assimétrica. Não há transparência nesses dados e muitos deles são obrigados a encontrar formas alternativas de complementação de renda. Independentemente disso, há enorme respeito social pela figura do docente universitário.

De tudo, fica o exemplo de um país que, em menos de 40 anos, conseguiu superar indicadores educacionais vexatórios e hoje se apresenta ao mundo como um sério concorrente aos Estados Unidos e à Europa no campo universitário. Talvez tudo isso se explique também por uma humilde consciência de que o estudo sério e a compreensão de que cada um possui deveres para com a sociedade (e não tanto uma ideia de que se é credor universal de direitos). Esses fatores, ao menos para a China, são (e foram) verdadeiramente revolucionários.

 

[1] LUNEY JR., Percy R.  Traditions and foreign influences: Systems of law in China and Japan. Law and Contemporary Problems, v. 52, p.129-150, Spring, 1989. p.131.

[2] LUNEY JR., Percy R.  Op. cit. p.133-134.

[3] LUNEY JR., Percy R.  Op. cit. p.137.

[4] POLIDO, Fabricio Bertini Pasquot; RAMOS, Marcelo Maciel (Orgs). Direito Chinês contemporâneo. São Paulo: Almedina Brasil, 2015. p.208-211.

[6] Disponível em: http://law.sjtu.edu.cn/En/Article110402.aspx. Acesso em 5-7-2016.

[7] Disponível em: http://law.sjtu.edu.cn/En/Article110403.aspx. Acesso em 4-7-2016.

terça-feira, 5 de julho de 2016

Un droit des contrats 2.0 en vigueur à l’automne (Le Figaro), jul 5 2016, 42





Un droit des contrats 2.0 en vigueur à l'automne
PAR BRUNO DONDERO ET PHILIPPE DUPICHOT SENIOR COUNSELS CHEZ GIDE ET PROFESSEURS À L'ÉCOLE DE DROIT DE LA SORBONNE
Le Figaro
jul 5 2016

Les relations économiques reposent juridiquement sur le contrat. Acquisition de biens, commande de services, contrats de travail, de distribution, de société ou d'assurance, franchises ou coopération entre entreprises, le contrat est omniprésent. Dans...
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sexta-feira, 1 de julho de 2016

Como se produz um jurista? O modelo chinês (parte 48)

Por 

O professor de Direito na China
Nas primeiras colunas da série sobre a formação dos juristas na China, anteciparam-se diversas questões sobre como a docência no Direito se representa socialmente. Não é possível, até pela complexidade do modelo chinês, traçar linhas objetivas sobre um perfil docente uniforme, o que é bastante comum no Ocidente. O professor de Direito em Hong Kong, Macau e Pequim atenderá a diferentes perfis, a depender do prestígio, do tamanho e da natureza da instituição ao qual se vincula academicamente.

Alguns pontos, contudo, são minimamente generalizáveis. O primeiro é que a universidade chinesa utiliza-se do plano de carreiras típico das universidades ocidentais: professor assistente, professor doutor, professor associado e professor titular. O segundo está no baixo nível remuneratório e na ausência de padrões objetivos e transparentes para comparação e previsibilidade desses valores. Tais circunstâncias geram dois efeitos colaterais: os docentes necessitam complementar sua renda. Para isso, assumem funções em conselhos de empresas privadas ou de consórcios dos quais participam o governo da China e investidores particulares; exercem a advocacia ou ocupam outros cargos públicos. Essa realidade explica-se quando se observa que há remunerações-base no intervalo de 500 (valor oficial da tabela do Ministério da Educação) e US$ 3 norte-americanos. No entanto, há diversos mecanismos de complementação, como aulas em programas de pós-graduação, financiamentos, bolsas e, obviamente, a importância da universidade pode impulsionar a contraprestação, ao exemplo dos cursos jurídicos de Macau e de Hong Kong, cujos professores são mais bem remunerados que seus congêneres de muitas faculdades de Direito ocidentais.

Outra inovação no quadro universitário chinês é a política de atração a renomados pesquisadores e docentes que se radicaram no exterior, captados pela política de caça-talentos (especialmente nos Estados Unidos) do Ocidente. Algumas universidades chinesas têm oferecido remunerações diferenciadas para essas pessoas, inclusive com a oferta de condições especiais de trabalho em laboratórios e centros de investigação. No Direito, essa realidade não é tão marcante. As razões são simples: a prioridade são as áreas tecnológicas, seja pelo potencial de geração de patentes e de desenvolvimento industrial, seja pelo prestígio natural que elas possuem em uma nação que se orientou por essa linha de crescimento econômico.

O status social do professor de Direito é alto, assim como o dos professores universitários em geral. Como a universidade é um meio de ascensão social, o controle de essa "porta de entrada" para o futuro, que, em última análise pertence aos docentes, é algo valioso.

A crescente importância da formação jurídica na China
A importância das carreiras jurídicas no regime chinês poderá alterar esse quadro em pouco tempo. O número de pessoas formadas em Direito no Comitê Central do Partido Comunista passou de 1,7% (1997) para 14,1% (2012) e aqueles com graduação em "Ciências Sociais" (conceito compreensivo de Ciência Política, Sociologia, História do Partido Comunista e Jornalismo) evoluiu de 5,6% (1997) para 38,2% (2012).[1] Se a comparação é feita entre 2002 e 2012, o cenário é ainda mais surpreendente. Em 2002, o Comitê Central era composto por 45,6% de membros formados em Engenharias e Ciências, ao passo em que Direito e Ciências Sociais correspondia a 11,8% do total. Quase metade do Comitê Central era, portanto, composto por pessoas oriundas das Ciências duras. Em 2012, o quadro inverteu-se por completo. Como já dito, 38,2% dos comissários eram graduados em Direito e nas "Ciências Sociais", ocupando o grupo quantitativamente maior no estrato. As Ciências duras caíram para o terceiro lugar, com 11,1%. Em segundo lugar, estavam os economistas e administradores, com 28,7% dos integrantes do Comitê Central. Os militares caíram de 19,5% (2002) para 8,5% (2012).[2]

A se consolidar essa alternância na composição da elite política chinesa, diversas hipóteses podem-se formar. Uma delas seria uma ampliação do conceito de "estado de direito" no país, algo que começa a ser suposto. Essa hipótese, contudo, é refutável pelo exemplo histórico das "ditaduras de catedráticos", como a que regeu Portugal por quase todo o século XX ou quando se leva em conta a participação dos juristas na sustentação nos governos ditatoriais brasileiros do último século (Floriano Peixoto, Getúlio Vargas, presidentes militares). Outra hipótese seria a de um efeito indireto do renascimento das faculdades de Direito no país após a Revolução Cultural, que permitiu o fornecimento de juristas para o estado chinês. Os egressos dos cursos jurídicos tradicionalmente ocuparam os principais postos burocráticos em países com tradição imperial, como o Brasil e a Áustria-Hungria, ao lado, evidentemente, dos militares. Esse é um problema ainda sem solução, embora as cogitações sobre ele sejam muito relevantes.

Estrutura dos cursos jurídicos chineses
Há faculdades de Direito e faculdades que permitem ao aluno ter uma formação híbrida, envolvendo Direito e Ciência Política, por exemplo, algo semelhante ao que ocorre em França. É possível também encontrar cursos jurídicos "acelerados" e outros que se vinculam diretamente a certas instituições do Estado, como os Ministérios da Justiça, da Segurança, da Defesa ou os órgãos do Poder Judiciário. São exemplos dessa diversidade a Universidade da China de Ciência Política e Direito, a Universidade Chinesa de Segurança Pública, o Departamento de Direito Internacional do Instituto de Negócios Estrangeiros e a Faculdade de Direito, Economia e Finanças da Universidade Central da China.

Há cursos com duração mínima de três e máxima de cinco anos. Apesar de ser um estado comunista, os alunos são obrigados a pagar semestralidades ou anuidades, as quais podem compreender custos de habitação nas residências universitárias. Esses valores são variáveis conforme o tamanho, a localização e a natureza da universidade. Embora existam algumas faculdades privadas, a quase totalidade é de instituições públicas. Independentemente de sua natureza, a exigência de contraprestação aos alunos é universal.

Como esses valores são muito pouco uniformes, pode-se fazer uma estimativa, com base em dados disponíveis na internet: a) taxa de inscrição que varia, a depender da universidade, entre US$ 90 a US$ 150; b) a anuidade é também variável de US$ 3,3 mil a US$ 9,9 mil.[3] Reitera-se que esses dados não são oficiais e existem diversas universidades com custos bem menores do que os indicados. 

As universidades chinesas oferecem diversos cursos de Master of Laws (LL.M). Universidade de Pequim, por exemplo, possui um LL.M. no modelo de um semestre de outono e um semestre de primavera, com disciplinas de Direito Privado, Direito Societário, Direito Penal e Processual Penal, Direito Constitucional e Administrativo, Direito da Propriedade Intelectual, Direito dos Contratos, Direito Econômico ou Direito Internacional aplicado. Além da aprovação nas disciplinas, o candidato deverá apresentar uma "tese" com um mínimo de 12 mil palavras.[4] A Universidade de Xiamen também possui programas de LL.M., com duração de 2 anos, em regime de estudo integral, com aulas em inglês.[5]

Faculdades de Direito chinesas
O ranking internacional de faculdades de Direito da consultoria Quacquarelli Symonds Ltd – QS apresenta 8 instituições chinesas como as mais relevantes: a) Universidade de Pequim (18º lugar no mundo); b) Universidade de Tsinghua (39º lugar no mundo); c) Universidade de Xangai – Jiao Tong; d) Universidade da China de Ciência Política e Direito; e) Universidade de Fudan; f) Universidade Popular da China de Renmin; g) Universidade Normal de Pequim; h) Universidade de Wuhan.  Como são regiões administrativas autônomas, Hong Kong e Macau ocupam posições fora do ranking chinês estrito. A Universidade de Hong Kong está em 19º lugar no âmbito internacional.

A Faculdade de Direito da Universidade de Pequim foi constituída em 1999, como sucessora do Departamento de Direito dessa universidade, o qual se instituiu em 1904. Atualmente, possui 40 professores catedráticos (29 deles com título de doutor), 33 professores associados e 9 professores adjuntos, além de professores auxiliares. Há 217 alunos no doutorado, 1128 estudantes de mestrado e 704 alunos de graduação.[6]

A Universidade de Tsinghua tem um curso jurídico desde 1929, contando com 76 catedráticos, 16 professores associados e três professores convidados.[7] Sediada em Pequim, essa instituição foi criada em 1911. Fundiu-se com a Universidade de Pequim durante a guerra de resistência contra o Império japonês (1937-1945), assim permanecendo até 1952, quando recuperou sua autonomia e assumiu a natureza de uma escola politécnica voltada para a formação de engenheiros. Em 1978, foi aberto o curso de Direito, embora até hoje seja reconhecida como uma universidade voltada para as engenharias.[8] 

A Universidade de Hong Kong é a joia da coroa do sistema universitário chinês. O trocadilho é infame, mas serve para mostrar a complexidade do modelo chinês. A referência à coroa foi propositada.  Na verdade, a instituição nasceu em 1911 como parte dos esforços da metrópole britânica de desenvolver sua longínqua colônia imperial. O curso de Direito é datado de 1969, a partir do Departamento de Direito da Universidade de Hong Kong. A menção à universidade como uma joia não é sem causa. Trata-se da mais importante instituição da Ásia e sua faculdade de Direito possui reconhecimento internacional como um centro de excelência. Outra ironia é que a universidade integra uma região administrativa especial dentro da China, após a devolução britânica ocorrida em 1997.

A Faculdade de Direito de Hong Kong possui 60 professores em regime de tempo integral, 1,5 mil alunos, com dois Departamentos, um de Direito e outro de Educação Profissional Jurídica, além de quatro centros de pesquisa. A graduação é de quatro anos e há um doutorado em dois anos.[9]

***

Na próxima semana, encerrar-se-á o estudo do modelo chinês.

 

[1] CHENG LI. The rise of the legal profession in the chinese leadership. China Leadership

Monitor. n. 42 (2013). p.6

[2] CHENG LI. Op. cit. p.9.

[3] Disponível em: http://www.cucas.edu.cn/feature/index/2325/2325. Acesso em 28-6-2016.

[6] Disponível em:  http://en.law.pku.edu.cn/overview/about/index.htm. Acesso em 25-6-2016.

[9] Disponível em: http://www.law.hku.hk/faculty/index.php. Acesso em 28-6-2016.