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quinta-feira, 31 de março de 2016

Como se produz um jurista? O modelo sul-africano (parte 40)

Introdução
Após uma interrupção excessivamente longa, retoma-se a série de colunas sobre o ensino jurídico no mundo, continuando-se a análise da África do Sul.

Aos leitores que desejarem retomar as duas primeiras colunas da série, recomenda-se a consulta aos textos Como se produz um jurista? O modelo sul-africano (parte 38) e Como se produz um jurista? O modelo sul-africano (parte 39).

1. Faculdades de Direito na África do Sul
A África do Sul não possui um número expressivo de faculdades de Direito. São apenas 17 cursos jurídicos autônomos, sendo que o mais antigo é a Wilfred & Jules Kramer Law School, cuja fundação se deu em 1859 (embora o ato formal tenha se dado em 1858)[1], sendo uma instituição vinculada à Universidade da Cidade do Cabo, a qual foi criada em 1829 e é, por sua vez, a segunda mais antiga do continente africano.

A Faculdade de Direito da Universidade do Cabo[2] é uma instituição pública, dividida em três departamentos (Direito Comercial, Direito Privado e Direito Público), mantida com recursos orçamentários, mas também com apoio financeiro de particulares, inclusive com um espaço próprio para esse fim em sua página eletrônica[3]. A faculdade precedeu a universidade, como é tradição em muitos lugares do mundo. Segundo dados de 2010, o curso possuía 900 alunos e, em termos de qualidade internacional, de acordo com o relatório da consultoria Quacquarelli Symonds (QS), é o melhor da África, figurando na 171ª posição internacional[4].

Outra faculdade sul-africana de tradição é vinculada à Universidade de Pretória. Criada em 1908, a Faculdade de Direito é uma instituição pública conhecida internacionalmente por seu Centro de Direitos Humanos, criado em 1986, em pleno regime do apartheid. Esse centro recebeu em 2006 o prêmio de Educação para Direitos Humanos da Unesco e teve ativa participação nos trabalhos preparatórios da vigente constituição sul-africana[5]. No ranking da QS, Pretória está entre as 500 melhores faculdades de Direito do mundo[6].

Em 331º lugar na classificação da consultoria QS está a Faculdade de Direito da Universidade de Witwatersrand[7], de Johanesburgo, uma instituição pública onde estudou Nelson Mandela. Seu financiamento é público, mas também, à semelhança de outras escolas de Direito sul-africanas, recebe contribuições de particulares[8].

As faculdades possuem autonomia administrativa e são geralmente dirigidas por um deão, com subdivisões internas em departamentos e centros autônomos de pesquisa. Há colegiados acadêmicos e intensa participação estudantil. Os cursos, no entanto, seguem um modelo híbrido, que ora se aproxima dos Estados Unidos e do Reino Unido, ora se amoldam ao padrão europeu continental. Coexistem nas faculdades as formações típicas para graduandos, mas também cursos ao estilo norte-americano, que se aproximam do juris doctor. Encontram-se também cursos mistos, que se conjugam com outras áreas em Ciências Sociais, Administração e Comércio, ao exemplo do que se encontra em algumas universidades francesas.

Outro problema relevante está na cobrança de anuidades dos estudantes. A hibridez do modelo sul-africano torna plúrimas as fontes de custeio das universidades, inclusive por meio de contribuições dos estudantes. Os anos de separação racial pré-democracia e os desníveis entre a população branca e a nativa ou mestiça ainda mostram seus efeitos no baixo índice de conclusão dos cursos superiores pelos estudantes de ascendência africana ou mestiça. O número final de alunos negros e mestiços que conseguem concluir o curso é de 15% dos que ingressam nas faculdades[9].

2. A estrutura dos cursos e dos currículos nas faculdades de Direito na África do Sul
As marcas da hibridez do sistema sul-africano também são perceptíveis na estrutura de seus cursos jurídicos. À semelhança dos Estados Unidos, obachelor of laws (LLB) sul-africano, até 1998, era um curso pós-graduado, de formação complementar, que permitia a seu titular o acesso ao exercício das carreiras jurídicas. No entanto, há 20 anos, a África do Sul admitiu que o LLB fosse ofertado no sistema antigo de pós-graduação e também como um curso de graduação. Na qualidade de curso pós-graduado, o LLB tem duração máxima de três anos. Na modalidade de graduação, sua extensão máxima é de quatro.

Existe uma variedade de curso jurídico mais próxima ainda do modelo norte-americano, no qual o aluno cursa um bachelor of arts ou um bachelor of commerce com especialização em Direito. Posteriormente, o aluno faz curso de pós-graduação com um prazo menor (dois anos), que o habilita ao exercício de profissões jurídicas, desde que aprovado nos instrumentos de acesso às respectivas carreiras.

Tal variedade de formações, períodos e nomenclaturas deve-se a algumas razões particulares. O sistema jurídico sul-africano foi influenciado por matrizes do Direito continental europeu e do Direito inglês, o que permite a convivência de diferentes tipos de formação. Essa dualidade radica-se na existência de universidades fundadas por magnatas ou por instituições filantrópicas britânicas em contrapartida às que nasceram sob a influência dos colonizadores de ascendência holandesa.

Os currículos jurídicos também são marcados pela liberdade de sua conformação pelas diferentes faculdades de Direito. Nesse aspecto, é perceptível a influência europeia e anglo-americana nas matrizes curriculares sul-africanas. Em um primeiro nível, os sul-africanos observam a tradição europeia de autonomia das instituições de ensino superior na definição de suas matrizes, sem observar um corpo comum nacional de disciplinas. Em um segundo nível, percebe-se o efeito da tradição anglo-americana com cursos mais flexíveis e, em algumas faculdades, com formações que conjugam Direito, Economia ou outras ciências sociais, o que, à exceção da França, quanto a este último aspecto, seria algo chocante para um observador europeu. Dada a enorme disparidade entre os cursos jurídicos sul-africanos, não é possível fazer afirmações peremptórias sobre a existência de um "modelo" de matriz curricular ou de estrutura de formação nas faculdades da África do Sul.  Encontram-se ainda as "clínicas jurídicas", de matriz norte-americana, em muitas faculdades de Direito.

A eficiência desse modo híbrido e complexo não é susceptível de avaliação universal. Tudo depende da faculdade e do modo como ela se estrutura. Essas distinções tornam-se notáveis quando se entra em contato com um egresso de uma instituição de ensino superior sul-africana e quando se nota a formação de vínculos desses egressos com as matrizes jurídicas mais próximas do modo de organização curricular e do curso de sua alma mater. Estudantes oriundos de faculdades mais "europeias" buscam a Alemanha como o locus para estudos doutorais ou pós-doutorais. Alunos que saíram de escolas à inglesa vinculam-se a cursos de doutorado ou a estágios pós-doutorais no Reino Unido ou nos Estados Unidos.

Tantas singularidades não têm impedido, porém, de se encontrar críticas ao modelo sul-africano, especialmente em relação a alunos que não são formados em escolas pautadas na centralidade do Direito. Essas críticas acentuam-se quando os alunos iniciam o exercício das profissões jurídicas. Esse, porém, não é um problema exclusivo da África do Sul, mas também dos Estados Unidos. Mais do que isso, é um dilema contemporâneo, quando cada vez mais juristas sentem-se "culpados" por sua formação preponderantemente jurídica, como se não fosse para aprender Direito que eles se matriculam em cursos jurídicos.

Convém examinar alguns das matrizes curriculares sul-africanas.

Veja-se o Bachelor of Laws da Faculdade de Direito da Rhodes University, que oferece ao aluno uma formação baseada na centralidade jurídica. Ele está assim organizado[10]:

a) Primeiro ano: no primeiro semestre, Fundamentos do Direito e, no segundo, Introdução ao Direito. Em paralelo, três disciplinas não jurídicas.

b) Segundo ano: o aluno terá uma disciplina jurídica no segundo ano. No primeiro semestre, têm-se as disciplinas Direito Constitucional A, Direito dos Contratos A, Law of PersonsProperty Law A e Hermenêutica Jurídica. No segundo semestre, Direito Constitucional B, Direito dos Contratos B, Property Law B, Direito Costumeiro e Law of Life Partners (uma parte do Direito de Família, voltada para o estudo das uniões conjugais e não conjugais);

c) Terceiro ano: no primeiro semestre, estudam-se as matérias Processo Civil A, Direito Societário A, Direito Penal A, Processo Penal A, Law of Delict A (uma espécie de Responsabilidade Civil, mas com foco também na responsabilidade criminal e seus efeitos cíveis), Legal Skills (uma espécie de formação em competências jurídicas) e Direito Internacional. No segundo semestre, Direito Societário B, Jurisprudence(Teoria do Direito), Direito Penal B, Law of Delict BLaw of Evidence A(uma espécie de estudo sobre provas), Law of Partnerships and Trusts(sem equivalente no Brasil, que estuda associações e trust). A Prática Jurídica pode ser cursada no primeiro ou no segundo semestre.

d) Quinto ano: no primeiro semestre, Direito Administrativo A, Processo Civil B, Processo Penal B, Direito do Trabalho, Direito da Compra e Venda e da Locação, mais duas eletivas. No segundo semestre, Direito Administrativo B, Law of Evidence B,  Direito Falimentar, Direito dos Contratos Securitários e Creditícios, Direito das Sucessões e de Administração de Imóveis. Em cada semestre, o aluno pode escolher duas das disciplinas ofertadas, de modo livre.

***

Na próxima semana, prossegue-se na série sobre a África do Sul.



Como se produz um jurista? O modelo sul-africano (Parte 39)

1.Introdução

Na sequência da série de colunas sobre a formação em Direito na África do Sul, examinam-se hoje a profissões jurídicas. A Constituição sul-africana de 1996, em vigor desde 1997 e já sucessivamente modificada, é tida como um marco na refundação do estado nacional pós-apartheid. Por seu efeito, consolidou-se o poder do Tribunal Constitucional como um agente moderador dos conflitos e permitiu-se a construção de uma jurisprudência interventiva em questões sociais. Outro ponto de interesse na nova configuração do Direito sul-africano está na justiça restaurativa, que conseguiu levar a público as violações dos direitos humanos no país, mas, em conformidade ao desejo de Nelson Mandela, sem gerar convulsões sociais e aumentar as dissenções raciais que poderiam ter destruído a nascente democracia sul-africana. Nenhum desses aspectos, porém, é insusceptível de críticas. O intervencionismo judicial é crescente, ao exemplo do que ocorre no Brasil, e muita vez não encontra amparo na própria Constituição, ao exemplo da proibição da pena de morte. Além disso, a lentidão judicial, o preenchimento de cargos por critérios não exclusivamente técnicos e ausência de investimentos no setor têm levado a problemas crescentes na área da Justiça.

É possível reconhecer que o Direito na África do Sul vive um dilema estrutural de três ordens: a) parte de seus juristas tendem a uma visão left-liberal em termos sociais e morais, ao passo em que a sociedade é baseada em valores religiosos africanos ou protestantes de viés conservador; b) vive-se um conflito de legados jurídicos, na medida em que sobrevivem tradições inglesas e africâneres, com tudo o que isso implica de diversidade de modelos jurídicos, ao passo em que se tenta criar um novo modelo, em grande medida com o repúdio ao que constituiu a essência metodológica do Direito na África do Sul e com a redescoberta do direito costumeiro autóctone; c) a inserção do Direito sul-africano em um debate comum aos países capitalistas periféricos que é o da formação sem a necessária centralidade da disciplinas jurídicas.

Feita esta introdução, vamos às carreiras jurídicas sul-africanas.

2. A magistratura sul-africana
O Poder Judiciário é constitucionalmente independente e se estrutura de modo relativamente semelhante ao que se dá no Brasil, exceto pela inexistência de uma Justiça Federal. No ápice da estrutura judiciária tem-se o Tribunal Constitucional. Abaixo dele estão o Supremo Tribunal de Recursos e a Corte Eleitoral, esta última reportando-se diretamente ao Tribunal Constitucional. No terceiro nível, encontram-se os tribunais militares de recursos, o Tribunal Superior e o Tribunal Trabalhista de Recursos, com seus respectivos estratos inferiores.

A escolha dos juízes constitucionais dar-se-á por ato do presidente da República, após ouvida a Comissão do Serviço Judicial, um organismo especial de assessoramento na designação de magistrados, e os líderes das representações parlamentares no Congresso Nacional. Os membros do Tribunal Constitucional têm mandatos de 12 anos, não renováveis, até o limite de idade de 60 anos. Ao menos quatro membros do Tribunal Constitucional devem ser selecionados de entre os membros da magistratura de carreira. Toda e qualquer nomeação deve levar em conta critérios de gênero e raça.

Órgão central nas nomeações para o Poder Judiciário, a Comissão do Serviço Judicial lembra o modelo britânico de recrutamento de magistrados, que possui órgão semelhante para assessorar a rainha no preenchimento de cargos judiciais. No caso sul-africano, diferentemente do britânico, essa comissão tem assento constitucional e sua composição é objetivamente prevista, a saber: a) o Chefe do Poder Judiciário, que preside o Tribunal Constitucional e também as reuniões da Comissão do Serviço Judicial; b) o presidente do Supremo Tribunal de Recursos; c) um juiz presidente de uma dos Tribunais Superiores, indicado por seus presidentes; d) um equivalente ao ministro da Justiça no Brasil; e) quatro advogados (sendo dois advocates e dois attorneys) que efetivamente exercem a profissão, indicados pelo presidente da República; f) um professor de Direito, indicado por seus pares de faculdades sul-africanas; g) seis pessoas indicadas pelo Congresso Nacional de entre seus membros, dos quais ao menos três devem ser representantes da oposição; h) quatro representantes do Conselho Nacional de Províncias; i) quatro pessoas indicadas pelo presidente da República, após consultados os líderes do Congresso Nacional.

O ingresso na magistratura não se dá por meio de concursos públicos como existentes no Brasil. Abrem-se seleções nas quais os interessados preenchem um formulário no qual preenchem dados como seu gênero, sua etnia (brancos, negros, mestiços e indianos), sua formação e suas experiências profissionais. Em algumas seleções, exige-se um tempo mínimo de formação acadêmica ou de experiência profissional. O critério de raça e gênero é expressamente indicado como primordial na definição dos pré-selecionados. O candidato deve também apresentar um currículo, cópia de documentos comprobatórios de sua titulação universitária e de experiência na área.

Em 2014, a remuneração de um magistrado em início de carreira era de 708.136 rands (equivalentes a US$ 44.350,48 ou R$ 172.856) por ano. No início de 2015, o presidente Zuma aprovou um reajuste geral no serviço público sul-africano. A remuneração do presidente do Tribunal Constitucional é agora de 2.000.800 rands (R$ 488.395,28 ou US$ 125.309,89), em valores anuais. Um magistrado de primeiro grau faz jus a 788.155,00 rands (US$ 49.362,06 ou R$ 192.388,64) por ano.[1]

Esses valores receberam aumento após inúmeros protestos dos magistrados em 2011, que se queixavam por perceber menos que os promotores de Justiça. Naquele ano, o mais alto magistrado do país – chief justice – ganhava 2.130.769 rands anuais e um juiz de primeiro grau 649.256 anuais.[2] 

A alta magistratura da África do Sul, nos tempos do apartheid, adotou posturas mais liberais nos últimos vinte anos do regime, o que lhe valeu algum respeito público. A imagem de um órgão comprometido com o regime, especialmente no âmbito criminal, custa até hoje à magistratura de carreira um preço relativamente alto em termos de percepção social negativa. Ainda é cedo para avaliar qual a percepção social da "nova" magistratura sul-africana, na medida em que ainda se vive um momento de transição, embora haja sido ampliado o número de juízes não brancos e do sexo feminino. Dados de 2013 dão conta de que 39% de todos os magistrados sul-africanos eram mulheres, sendo que quase metade dos juízes de tribunais de recursos eram desse gênero. Quatro dos nove tribunais de recursos (regionais) eram presididos por mulheres. Por sua vez, conforme números de 2014, 63% dos juízes de carreira na África do Sul eram negros.[3]

 

3. O Ministério Público na África do Sul
Uma instituição temida durante o apartheid, como de resto em todos os países que viveram experiências ditatoriais, era o Ministério Público. Hoje, ele é conhecido como National Prosecuting Authority, referido quase sempre pela sigla em inglês NPA, e tem caráter constitucional, que lhe confere unidade em todo o território sul-africano, a chefia por um diretor nacional, nomeado pelo presidente da República e com funções típicas e clássicas de titular do direito de ação penal em nome do Estado.

O regime jurídico do Ministério Público está previsto no National Prosecuting Authority Act (1998), elaborado dois anos após a promulgação da vigente Constituição sul-africana. O Ministério Público é parte integrante do Poder Executivo. Seu diretor nacional não é submetido ao escrutínio do Congresso Nacional, embora seu mandato seja de dez anos. Atualmente, há muitas críticas à atuação do órgão, que é considerado politicamente frágil e submetido a interferências constantes da Presidência da República. Em 2013, não foi aprovada uma proposta de emenda constitucional que conferia autonomia real à instituição.

Da mesma forma que na magistratura, o preenchimento de cargos no Ministério Público deve refletir a questão racial e de gênero (capítulo 3, item 8, NPA Act 1998).[4] O cargo de diretor nacional não precisa ser preenchido por membro da carreira (capítulo 3, item 9, subitem 1, NPA Act 1998).  O recrutamento dos promotores dá-se por critérios internos do órgão, sem o equivalente a um concurso público no estilo brasileiro.

A remuneração do diretor nacional do Ministério Público não pode ser inferior à equivalente de um membro do Tribunal Superior (capítulo 3, item 17, subitem 1, NPA Act 1998).

4. Advocates e attorneys: a advocacia na África do Sul
Antiga, respeitada e ainda baseada na divisão inglesa entre barristers esolicitors, eis uma síntese da advocacia na África do Sul, uma profissão que deu prestígio a Nelson Mandela no início de sua carreira. Identicamente à tradição inglesa, embora hoje extremamente atenuada, o cliente deve procurar um advocate (equivalente ao inglês barrister) e este utiliza-se dos serviços de um attorney (solicitor) para atuar em juízo.[5] Essas duas atividades não são acumuláveis.  

São requisitos para se tornar um advocate: a)  ter a idade mínima de vinte e um anos; b) possuir qualificação acadêmica; c) ser sul-africano ou possuir visto de residente no país. A profissão de advocate é representada peloGeneral Council of the Bar of South Africa, que exige para nela ingressar o título de bacharel em Direito, obtido em uma instituição universitária sul-africana, haver sido aprovado em um curso profissional e sido aprovado em um exame organizado pelo bar onde deseja exercer suas atividades. Osadvocates atuam perante os tribunais sul-africanos e em procedimentos arbitrais.[6]

Os attorneys exercem suas funções perante os juízos de primeiro grau, admitindo-se, porém, situações excepcionais em que estes podem funcionais em tribunais superiores. Seu órgão de representação é a Law Society of South Africa,[7]órgão que fornece estatísticas bem atualizadas sobre o quadro atual de seus membros.

Em 2005, havia 16.416 attorneys registrados nas diversas Law Societies sul-africans. Esse número cresceu de modo linear anos após ano até chegar a 23.712 membros em 2015. O número de attorneys admitidos anualmente naLaw Society  passou de 1.525 em 2004 para 2.514 no ano de 2014. Na série histórica, em 2007 houve uma queda no número de ingressantes na profissão (1.435), um crescimento em 2008 (1.551), seguido de outro aumento expressivo em 2009 (2.070). Nos anos de 2010 a 2013, os ingressantes na carreira permaneceram em número estável (1.542; 1.588; 1.529 e 1.506).[8]

Ano após ano, desde 2006, o número de mulheres que entram para Law Society é sempre superior ao equivalente de homens. Em 2006, foram 810 mulheres e 761 homens, ao passo em que, no ano de 2014, ingressaram 1.108 homens e 1.416 mulheres. Utilizado o critério racial, o quadro é diverso: a) 2004 – 390 negros; 92 mestiços; 85 asiáticos e 632 brancos; b) 2014 – 856 negros; 207 mestiços; 247 asiáticos e 1.185 brancos.[9]

***

Na próxima coluna, veremos as faculdades de Direito da África do Sul.

 

[3] BAUER, Gretchen; DAWUNI, Josephine. Gender and the Judiciary in Africa: From obscurity to parity.  Routledge: New York, 2016. p. 54

[4] Disponível em: http://www.justice.gov.za/legislation/acts/1998-032.pdf. Acesso em 10-2-2016.

[5] Disponível em: http://www.sabar.co.za/legal-system.html. Acesso em 10-2-2016.

[6] Disponível em: http://www.sabar.co.za/advocates.html. Acesso em 10-2-2016.

[7] Disponível em: http://www.lssa.org.za/about-us/this-is-the-lssa. Acesso em 10-2-2016.

Como se produz um jurista? O modelo sul-africano (Parte 38)

1.Um tormentoso cabo
O mitológico gigante Adamastor, guardião do cabo que era considerado o mais meridional do mundo conhecido, dito Cabo das Tormentas, proferiu a seguinte ameaça contra o descobridor desse cabo, o navegante português Bartolomeu Dias, e os navios de sua gente que ousassem tentar atravessá-lo:

"Aqui espero tomar, se não me engano,
De quem me descobriu suma vingança.
E não se acabará só nisto o dano
De vossa pertinaz confiança:
Antes, em vossas naus verei, cada ano,
Se é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios, perdições de toda sorte,
Que o menor mal de todos seja a morte!
"

E estrofe 44 do Canto V de Os lusíadas, a obra-prima de Luís Vaz de Camões, encerra o quão grandiosa foi a travessia do extremo sul da África pelos navegantes de Portugal. Dessa conquista náutica, advieram riquezas infindáveis para o jovem império marítimo, daí haver el rey D. José II rebatizado o Cabo das Tormentas em Cabo da Boa Esperança, conforme a narrativa de João de Barros:

"Partidos dali, houveram vista daquele grande e notável cabo, ao qual por causa dos perigos e tormentas em o dobrar lhe puseram o nome de Tormentoso, mas el-rei D. João II lhe chamou cabo da Boa Esperança, por aquilo que prometia para o descobrimento da Índia tão desejada".

De tanta opulência das Índias, que deu fama e fortuna aos portugueses do século XV e início do século XVI, resultou também a decadência do reino, como o próprio Camões profetizara pela boca do Velho do Restelo:

"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos fama!
O fraudulento gosto que se atiça
Cu'a aura popular que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça"

Da conquista do Cabo restou uma imagem na rosa-dos-ventos em frente ao Padrão dos Descobrimentos, na margem direita do rio Tejo, em Lisboa, doada sugestivamente pelo governo da África do Sul. E, além disso, uma expressiva colônia de lusófonos, sendo o mais famoso deles o poeta Fernando Pessoa.

Sucederam aos portugueses seus mais ferrenhos adversários nos tempos do colonialismo, as gentes das Províncias Unidas  dos Países Baixos, os atuais holandeses. De um entreposto comercial do século XVII, associado a uma fazenda, que objetivava prover de víveres os navios que atravessavam o  cabo, a região atraiu camponeses, granjeiros e artesãos franceses huguenotes e holandeses. Os primeiros, fugitivos da perseguição religiosa em França. Os segundos, igualmente adeptos da religião Reformada, em busca de um novo futuro em terras distantes. Ambos eram submetidos à Companhia holandesa das Índias, responsável pela exploração do enclave marítimo. Com o passar do tempo, esses indivíduos avançaram pelo interior do sul da África e declararam-se independentes da Companhia das Índias, que pouca proteção lhes conferia em território tão inóspito.

No final do século XVIII e início do século XIX, a Holanda tornou-se um protetorado napoleônico e suas possessões ultramarinas foram vistas como um troféu para os britânicos, que dela se apropriaram. Os descendentes dos fazendeiros holandeses embrenharam-se pelo interior do território do Sul da África e passaram a hostilizar qualquer símbolo da autoridade dos monarcas do Reino Unido. Ao longo do século XIX, à custa dos primitivos habitantes do território, os negros das diferentes etnias, esses fazendeiros ocuparam terras e exerceram sobre elas poderes semifeudais.

Uma personagem central nessa fase da história da região chamou-se Stephanus Johannes Paul Kruger, que era filho de Caspar Kruger, um dos líderes da marcha dos fazendeiros para o interior do país, determinada pela rejeição dos colonos ao fim da escravatura. Em 1857, os fazendeiros proclamaram a República Sul-Africana, no território do Tranvaal. Kruger teve um papel relevante na unificação das lideranças da nova república em face das ameaças constantes dos britânicos. No ano de 1877, o Reino Unido tentou anexar o Transvaal e Kruger apresentou-se como comandante da reação de sua gente, a qual redundou em uma guerra, da qual os britânicos saíram derrotados em 1881.

Na Europa, essa derrota casou sensação, pois uma tropa de soldados irregulares havia vencido o maior império mundial da época. A palavra bôertornou-se conhecida em todo o mundo como designativo dos fazendeiros sul-africanos, que também se autodenominavam Voortrekkers, os que viajam para a frente. A língua desses bôeres  era o africâner, um dialeto do holandês que se converteu em língua autônoma.

A liderança de Kruger atraiu o apoio dos inimigos do Reino Unido na Europa, especialmente na Alemanha. Ele se elegeu presidente da República Sul-Africana, de modo sucessivo, até o mandato iniciado em 1898. Os conflitos com os britânicos, no entanto, só se agravaram com a descoberta de ouro na região e as tentativas de exploradores e políticos do Reino Unido em avançar sobre os territórios do Transvaal, a partir da Colônia do Cabo, de Orange e de Natal, áreas sob administração nominal ou efetiva, a depender das circunstâncias, de autoridades britânicas.

Em 1899, ao final do século XIX, estourou a Guerra dos Bôeres, que envolveu o Reino Unido e as forças irregulares bôeres até 1902. Os britânicos sofreram pesadas derrotas e um severo abalo em sua reputação internacional como força imperialista. A guerra revelou o caráter ultrapassado da organização militar imperial e introduziu técnicas que seriam – infelizmente – utilizadas à larga no século XX, como o uso de escudos humanos, guerrilhas, "campos de concentração" (uma invenção britânica para aprisionar os familiares dos guerrilheiros) e fim dos uniformes coloridos.

Derrotados em 1902, os bôeres firmaram um acordo entre iguais com o Reino Unido e, posteriormente, conseguiram unir as províncias do Transvall, do Cabo, de Orange e de Natal em uma unidade política conhecida como União Sul-Africana. Juridicamente, nascia um domínio do Império Britânico, que se tornaria um estado independente.

Na Primeira e na Segunda Guerra Mundiais, os sul-africanos prestaram decisivo apoio aos britânicos nos diversos teatros de operações. Líderes guerrilheiros da Guerra dos Bôeres converteram-se em comandantes militares ou governantes da África do Sul, com enorme reconhecimento pela Coroa britânica. O mais emblemático deles talvez haja sido Jan Smuts, um advogado, combatente irregular na Guerra dos Bôeres, primeiro-ministro sul-africano e marechal de campo do Exército Imperial. Smuts é o criador da expressão "holismo" (ele era um esotérico) e foi quem forçou a entrada de seu país na Segunda Guerra Mundial ao lado dos britânicos, apesar da forte oposição de seus conterrâneos de ascendência bôer.

Com o segundo pós-guerra, sul-africanos de origem bôer passaram a controlar politicamente o país, superando as forças moderadas pró-britânicas. Essa viragem levou à proclamação da República, à saída do país da Comunidade Britânica das Nações e à criação de um sistema de discriminação racial institucionalizado, que passou à história comoapartheid. Embora a discriminação contra negros e os indianos (que emigraram para a África do Sul a fim de trabalhar na lavoura) já existisse desde o início do século XX, essa situação converteu-se em política de Estado com a vitória do Partido Nacional (representante dos interesses bôeres) e seus governos contínuos a partir de 1948. 

Fundamentalmente, criaram-se três grandes níveis de apartheid: a) proibição de relações sexuais (e uniões estáveis ou casamento) em pessoas de raças diferentes; b) reforma territorial para concentrar as populações negras e indianas em áreas isoladas, criando-se enormes cidades-dormitório; c) acesso a locais públicos, equipamentos urbanos, escolas, universidades, repartições, transporte coletivo de modo diferenciado em função da origem racial. Essa política institucional de discriminação baseou-se em censos periódicos, destinados a identificar as pessoas conforme sua raça. Como resultado, houve uma reação política e armada dos negros, que se estruturou em torno do Congresso Nacional Africano, um movimento político criado em 1912, com conexões sindicais e com o Partido Comunista Sul-Africano. Em contrapartida, a África do Sul criou um dos mais violentos aparelhos de repressão política e policial de que se tem notícia desde o fim do nazismo. Os órgãos de segurança, os serviços secretos e parte das Forças Armadas especializaram-se no combate à resistência dos negros, dissidentes políticos e parte da população branca (predominantemente de origem britânica) que se opunham ao regime do apartheid. Além disso, esses elementos militares e paramilitares tiveram atuação intensa nas guerras coloniais nos territórios vizinhos de Angola, Moçambique, Namíbia e Zimbábue (antiga Rodésia), de modo a apoiar os colonizadores, os colonos ou as forças locais em conflito, a depender dos contornos geopolíticos da ocasião.

2. Um cabo de boas esperanças
A desproporção entre a população branca e os habitantes nativos, a perda crescente de apoio da comunidade internacional e o declínio da importância estratégica da África do Sul ao tempo em que a Guerra Fria se extinguia no final dos anos 1980 podem ser catalogadas como causas do fim do regime doapartheid. O modelo era insustentável sob qualquer óptica. No entanto, uma personagem foi decisiva para que o regime caísse sem sangue e sem uma política de retaliações desastrosa. Ela chamava-se Nelson Mandela (1918-2013), uma das mais celebradas personalidades políticas do século XX.

Nascido na etnia Xhosa, minoritária em relação à maioria dos Bantos, Mandela recebeu o prenome "Nelson" de uma professora inglesa de sua escola primária. Sua ligação com a tradição cultural britânica, seus valores e sua temperança foi reconhecidos por Mandela ao final de sua vida. Nos anos 1940, Mandela cresce na hierarquia do Congresso Nacional Africano e gradua-se em Direito na Universidade de Witwartersrand.

Com o recrudescimento do regime, a aprovação do apartheid e os massacres contra a população negra, Mandela desviou-se a linha de não violência do Congresso Nacional Africano e iniciou sua formação militar na Etiópia, com apoio do imperador etíope Hailê Selassiê. De volta à África do Sul, Mandela foi preso e submetido ao famoso Julgamento de Rivonia, no qual foi condenado à prisão perpétua por "alta traição".

Nos anos 1960-1980, o apartheid atingiu o apogeu de violência e de revolta da população nativa. Como já dito, o fim da Guerra Fria, o isolamento internacional, com sanções econômicas e a percepção de que o regime caminhava para o fim, com um banho de sangue em seus estertores, levaram o presidente da África do Sul, Frederik de Klerk, a negociar uma saída política com Mandela, que seria liberado da prisão e eleito presidente da República.   

Documentários, livros e séries de televisão já tornaram mais do que conhecida a forma como Mandela pacificou a África do Sul pós-apartheid. Não se fará aqui a repetição de tantos e tão notáveis sucessos do líder sul-africano, cujo exemplo de temperança, conciliação e visão de longo prazo deveria ser seguido em todo o mundo.

A passagem de um cabo das tormentas para um cabo das boas esperanças é uma bela metáfora para descrever o papel de Mandela e, porque não dizer, do povo sul-africano como um todo na refundação  nacional. Com uma população de quase 50 milhões de habitantes e um PIB de 683 bilhões de dólares em 2014, a África do Sul possui hoje as melhores universidades e os melhores indicadores educacionais (exceto em relação a Cabo Verde) do continente.  

O abismo de oportunidades entre a população branca e a população nativa nas universidades e no serviço público fez com que fossem adotadas políticas afirmativas intensivas, embora ao tempo de Mandela isso tenha ocorrido com muito mais moderação. A crise econômica de 2009 ainda surte efeitos na África do Sul, o que determinou uma série de protestos estudantis em decorrência do aumento das mensalidades pagas pelos universitários. Em 2015, também se iniciou uma campanha dos estudantes para a derrubada dos antigos símbolos coloniais britânicos,  o que não deixa de ser curioso em razão do papel exercido pelas instituições imperiais no controle dos excessos dos bôeres, ainda que ambos tenham sua responsabilidade pelo tratamento preconceituoso e discriminatório em relação aos povos nativos.

O último presidente da velha África do Sul era um advogado. O primeiro presidente da nova África do Sul também foi um advogado. Os professores de Direito, ligados às instituições anglófonas, como Reinhard Zimmermann, exerceram um papel importante na defesa dos direitos dos africanos nativos. O pós-apartheid e a tentativa de reconciliação também contou com o Direito para a reelaboração do perfil de uma nação.

É sobre a África do Sul e seu modelo de formação jurídica que se iniciará mais uma série de nossas colunas.

Como se produz um jurista? O modelo angolano (parte 37)


1. O professor de Direito em Angola

A estrutura de carreira dos docentes angolanos é muito similar à encontrada em Portugal. Os cargos, por ordem decrescente de hierarquia, são os seguintes: a) professor titular; b) professor associado; c) professor auxiliar; d) assistente; e) assistente estagiário. O titular é correspondente ao catedrático europeu em termos de nomenclatura. No entanto, há somente dois professores titulares nos cursos jurídicos angolanos com o doutoramento em Direito: Carlos Maria da Silva Feijó e Raul Carlos Vasques Araújo. O primeiro é um nome nacionalmente conhecido em Angola, tendo ocupado a pasta de ministro de Estado e chefe da Casa Civil do governo da República. Seu doutorado foi obtido em 2011 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. O segundo doutorou-se na Universidade de Coimbra em 2009 e foi aprovado no concurso público para juiz conselheiro do Tribunal Constitucional de Angola no ano de 2012. Ambos são docentes da Universidade Agostinho Neto.

Verifica-se que não há uma correspondência exata entre a titularidade e a posse de um título de doutor, o que seria o mínimo exigível na experiência comparada. Tal circunstância é, contudo, mais do que natural, dada a criação tardia dos cursos jurídicos em Angola, cujas razões históricas já foram expostas nas colunas anteriores. Recorde-se, ainda, que mesmo no Brasil, ao menos até a década de 1990, havia professores  titulares sem o diploma de doutor.

Não é possível dizer que o professor de Direito em Angola tenha uma representação social equivalente a seus homólogos europeus. Nesse aspecto, há uma maior aproximação com a realidade brasileira, na qual a docência universitária divide seu prestígio com outras profissões, e há níveis de importância diferenciados a depender da universidade ao qual se vincula o docente.

Ressalte-se que são frequentes as reivindicações por melhoria salarial nas universidades angolanas. As greves por questões remuneratórias são comuns. A situação é agravada pelo elevado custo de vida no país, especialmente após o impacto da valorização do petróleo na última década.

O ingresso na docência em Direito segue regras que se adaptam conforme seja pública ou privada a instituição de ensino superior. Na Universidade Agostinho Neto, há avaliações diferenciadas para o assistente e para o professor titular. Quanto ao primeiro, faz-se uma seleção baseada em uma prova oral (aula e debate), com 60 minutos de duração. E outra prova de apresentação e discussão da dissertação, com 30 minutos. O titular submete-se a uma apreciação de currículo (algo equivalente a uma prova de memoriais das universidades públicas paulistas), com 30 minutos de duração. E uma exposição sob o modelo de aula magna, seguida de discussão, que deve perfazer 60 minutos[1]

2. As carreiras jurídicas angolanas
a) Advocacia

De acordo com a Lei 1/95, de 6.1.1995, o exercício profissional da advocacia em Angola é privativo dos inscritos na Ordem dos Advogados. É incompatível com a profissão seu exercício simultâneo com as atividades de membro do governo, integrante da magistratura e do Ministério Público, de assessor popular, de servidores de tribunais e órgãos policiais, de provedor de Justiça, da chefia do Poder Executivo provincial e do Banco Nacional de Angola, além de outras previsões em normas legais específicas. É requisito para inscrição na Ordem dos Advogados a posse do título de bacharel em Direito e, a partir de 2015, a aprovação em um Exame de Ordem.    

Segundo dados estatísticos fornecidos pela Ordem dos Advogados de Angola, no ano de 2012 havia 892 advogados regularmente inscritos em todo o país. Desses, 809 (90% do total) possuíam a sede de seus ofícios em Luanda. O crescimento do número desses profissionais foi exponencial: em 1997 havia 337 advogados, e, em 2012, o número saltou para 892[2].

b) Magistratura
O Poder Judiciário angolano tem em seu vértice o Tribunal Constitucional, composto de 11 juízes, indicados pelo presidente da República (quatro membros, incluído o presidente do tribunal), pela Assembleia Nacional (quatro membros, incluído o vice-presidente do tribunal), pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial (dois membros) e um membro que é selecionado após um concurso público. O mencionado professor Raul Carlos Vasques Araújo integra o Tribunal Constitucional nessa condição muito peculiar, que geralmente só é encontrável nos certames de ingresso nos níveis inferiores da magistratura[3].

Existe também um Tribunal Supremo, cujos integrantes são recrutados de entre magistrados, membros do Ministério Público e "juristas de mérito" (uma espécie de quinto constitucional), por meio de concurso curricular[4].

c) Ministério Público
Os membros do Ministério Público são denominados de "magistrados" e vinculam-se à Procuradoria-Geral da República[5]. O ingresso e a promoção nos níveis iniciais da carreira dão-se por meio de concurso, mérito e tempo de serviço. No mais, comunicam-se ao Ministério Público todas as prerrogativas inerentes aos magistrados judiciais.  

Os níveis remuneratórios das carreiras de magistrado são os seguintes: a) presidente do Tribunal Supremo: 415187,10 kwanzas; b) conselheiro do Tribunal Supremo: 369055,20 kwanzas; c) juiz de Direito-Presidente Provincial com mais de 10 anos: 345989,25 kwanzas; d) juiz de Direito-Presidente Provincial com mais de 5 anos: 322923,30 kwanzas; e) juiz de Direito-Presidente provincial com menos de 5 anos: 376791,40 kwanzas; f) juiz de Direito Provincial com mais de 10 anos:         345989,25 kwanzas; g) juiz de Direito Provincial com mais de 5 anos: 322923,30 kwanzas; h) juiz de Direito Provincial com menos de 5 anos: 276791,40 kwanzas; i) juiz municipal com mais de 10 anos: 253725,45 kwanzas; k) juiz municipal com mais de 5 anos: 230659,50 kwanzas; l) juiz municipal com menos de 5 anos: 207593,55 kwanzas.

A título comparativo, a mais alta remuneração da magistratura angola equivale a US$ 2.658,40 (R$ 10.595,57). E a mais baixa remuneração, corresponde a US$ 1.329,20 (R$ 5.297,79)[6]. Esses valores são, em termos comparativos, os mais altos do serviço público civil angolano. O presidente da República percebe 461.319,00 kwanzas (US$ 2.953,78; R$ 11.772,86).

3. Conclusão
A Universidade Russa da Amizade dos Povos foi criada em 1960 e sua denominação, até o fim da União Soviética, era de Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba, uma homenagem ao líder independentista do Congo, um guerrilheiro alinhado politicamente com Moscou. Nessa instituição, estudaram milhares de alunos oriundos de Ásia, África e América Latina, muitos deles com participação nas guerras coloniais ou em grupos de contestação armada a regimes militares ou a governos simpáticos aos Estados Unidos. No Ocidente, a Universidade da Amizade dos Povos era reconhecida como um celeiro de novos quadros para territórios nos quais os soviéticos disputavam influência e poder com os norte-americanos e seus aliados europeus.

Nessa universidade, estudaram muitos angolanos. Com o paulatino abandono da ideologia marxista, o que se acelerou a partir de 1992, o governo de Angola iniciou uma política cada vez mais intensa de estímulo à preparação da juventude para uma formação universitária de cunho desenvolvimentista e destinada a suprir o país de profissionais necessários no campo da saúde e da educação. Nesse cenário, as carreiras jurídicas representam um espaço burocrático não tão relevante quanto se observa no Brasil ou em outros países de tradição "bacharelesca". Esse quadro foi exposto nas primeiras colunas sobre o ensino jurídico angolano.

Os traços históricos que unem as culturas brasileira e angolana, no que há de positivo e também no que há de negativo, se revelam no estudo comparado da formação jurídica em ambos os países. A influência da matriz comum, a herança portuguesa, é também perceptível com variedade de colorações. Em alguns aspectos, Angola é mais próxima do modelo português (e, por consequência, continental-europeu) e, em outros, o distanciamento é maior, provavelmente decorrente da busca por um caminho autônomo em reação aos padrões do antigo colonizador.

A interação entre universidades e juristas portugueses e angolanos é cada vez mais intensa e isso tem contribuído para a melhoria das instituições nacionais de ponta. Infelizmente, o Brasil não se tem feito presente de modo mais eficaz na evolução do modelo angolano de formação jurídica. Trata-se de um ponto a se lastimar, dada a notória simpatia dos angolanos por tudo que diga respeito ao Brasil.

Conhecer Angola e sua realidade jurídica é aprender sobre nós mesmos e uma forma de partilhar os frutos de nossa tradição lusófona.

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Não poderia encerrar esta série sobre Angola sem expressar meus agradecimentos ao professor Dario Moura Vicente, sem favor um dos grandes nomes do Direito Comparado em todo o mundo e um embaixador da lusofonia nos meios jurídicos, percorrendo, quase todos os anos, as linhas deixadas pelos grandes navegadores portugueses da América até as antigas possessões em Macau e Goa. Graças a ele recebi informações valiosas do professor angolano Lino Diamvutu, da Universidade Agostinho Neto, por intermédio de respostas a um amplo questionário sobre a realidade educacional jurídica angolana. Essa colaboração euro-americano-africana esteve na base de todas as colunas. Minha gratidão a ambos.


[1] Disponível em http://www.fduan.ao/regimedeacesso.php. Acesso em 12-1-2016.
[2] Disponível em http://www.oaang.org/content/graficos-advogados. Acesso em 12-1-2016.
[3] Artigo 180º, Constituição de Angola.
[4] Artigo 181º, Constituição de Angola.
[5] Artigo 185º, Constituição de Angola.
[6] Disponível em: http://www.meusalario.org/angola/main/salario/sector-publico-angolano/salarios-de-dirigentes-do-estado/ao.meusalario.org/main/salario/sector-publico-angolano/salario-dos-juizes. Acesso em 12-1-2016.