Powered By Blogger

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Como se produz um jurista: final (parte 58)

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

1. O fim (ou o início) de uma longa jornada
Em uma sequência não contínua de 57 semanas, apresentou-se ao público o que pode ser reconhecido como o mais amplo estudo feito em língua portuguesa sobre a educação jurídica no Direito Comparado. Com base em uma estrutura relativamente uniforme, expôs-se o modo como se produz um jurista em alguns países do mundo. Essa estrutura, na maior parte das vezes, iniciou-se pela contextualização histórica do país, suas tradições culturais e jurídicas, e teve seguimento com o enfoque dos seguintes tópicos: a) estrutura do ensino superior, modos de avaliação, disciplinas obrigatórias e optativas (com a informação sobre quais seriam em algumas das principais faculdades de Direito); b) número e qualidade dos cursos jurídicos, sua filiação às tradições de common law e de civil law, bem como seu eventual hibridismo, posição das unidades nos rankings internacionais; c) a carreira docente, sua estrutura, a remuneração dos professores (com termos de comparação face à realidade brasileira e com a oferta da equivalência em dólares e em reais); d) o perfil dos estudantes; e) as principais carreiras jurídicas, suas estruturas, remunerações e suas posições na ordem jurídica interna.

O estudo compreendeu todos os continentes: Europa (Alemanha, França, Itália, Portugal, Rússia e Inglaterra e País de Gales), América (Estados Unidos, Chile e Colômbia), África (Angola e África do Sul), Oceania (Nova Zelândia) e Ásia (China e Japão). Ao todo, examinou-se a realidade de 14 Estados, sendo 9 deles pertencentes ao modelo de civil law, três integrantes do modelo de civil law (Inglaterra e País de Gales, Estados Unidos e Nova Zelândia), além de dois que apresentam características híbridas: África do Sul, com preponderância para o comon law, e Japão, originalmente vinculado de modo estrito ao modelo de civil law, mas que passou a adotar parcialmente elementos de common law.

Para além da diferenciação geográfica, elegeram-se algumas variáveis para tornar o estudo mais representativo e menos vulnerável aos efeitos do reducionismo: a) países originalmente capitalistas e países oriundos do antigo sistema socialista ou que ainda se declaram como tais (Angola, China e Rússia); b) países capitalistas centrais e países capitalistas periféricos (Chile, Colômbia, Angola e África do Sul), além do caso particular da Rússia; c) países ocidentais e países orientais (China, Japão e parcialmente a Rússia); d) países geograficamente pequenos (Portugal, Inglaterra e País de Gales, Itália e Chile), médios (França, Alemanha, Japão, África do Sul, Angola, Colômbia e Nova Zelândia) e continentais (Rússia, China e Estados Unidos); e) países com intervenções do Direito na vida política classificáveis em forte (Alemanha, Colômbia, África do Sul), média (Itália, Estados Unidos e Portugal) ou fraca (Rússia, Angola, Inglaterra e País de Gales, Chile, Japão, China e França).

Todas essas variáveis poderiam ser combinadas para se chegar a conclusões sobre a correlação entre elas. Na versão consolidada dessas colunas, cujo preparo já se iniciou, tentar-se-á apresentar conclusões levando-se em conta essa combinação de variáveis. De modo superficial, porém, já se percebe que é interessante notar que não é possível construir teorizações a respeito. Só isso já é um resultado muito interessante, na medida em que servirá para combater certos mitos fecundados no Brasil.

Interessa, porém, apresentar alguns desses resultados, considerando-se tipologias sobre ensino, estrutura acadêmica, representação social do professor, metodologias de ensino e aprendizagem e centralidade do controle das diretrizes curriculares.

2. Alguns resultados interessantes (ou "assim é, se lhe parece")
Luigi Pirandello (1867-1936), o grande renovador da dramaturgia no século XX, é autor de uma peça muito famosa, intitulada Assim é, se lhe parece (Così è, se vi pare), de 1917. O coração da peça é a ambivalência entre a vida externa de uma família, que é bastante exótica para os padrões provincianos do interior da Sicília do início do século XX, e a percepção da realidade por seus vizinhos. Com o tempo, a família tenta se adaptar a essas percepções e muda seus hábitos para parecer o que não é.

Em certa medida, alguns aspectos do debate sobre educação jurídica no Brasil estão cercados por essas aparências e pelo uso que delas se faz. Criam-se lendas, mistificações ou se invocam exemplos estrangeiros (o velho mal do bartolismo, que há séculos contamina nossa vida jurídica) de modo desastrado para fundamentar guinadas na estrutura da formação jurídica no país. A pesquisa revelou o quão desastrosas podem ser essas mudanças sem fundamento empírico ou mesmo teórico, ao exemplo do que ocorreu no Japão.

Uma das mais importantes contribuições da série de colunas sobre a educação jurídica no Direito Comparado foi a de expor as contradições entre o discurso reformista e a realidade estrangeira. Alguns exemplos confirmam o que ora se afirma.

2.1 Estrutura curricular aberta
O estudo demonstrou que não há correlação entre matrizes curriculares abertas e qualidade do ensino jurídico. Há países com preponderância de disciplinas obrigatórias (como Portugal, França e Itália) cujos modelos são considerados exitosos. Mesmo na Inglaterra e País de Gales, há um núcleo comum de disciplinas obrigatórias relativamente elevado. Os Estados Unidos são o grande exemplo de grades abertas, embora lá também haja um núcleo de disciplinas comuns, formado no final do século XIX e praticamente inalterado desde então. Dá-se, porém, como revelado pela coluna, uma diferença essencial dos Estados Unidos com a quase totalidade dos países pesquisados: o curso de Direito norte-americano não é de graduação, e sim de pós-graduação. Só essa diferença seria suficiente para demonstrar a falácia do argumento de que maior liberdade de escolha implica qualidade superior da formação jurídica.

2.2. Caráter residual das disciplinas não dogmáticas
A totalidade dos países pesquisados, mesmo aqueles que adotam matrizes mais abertas, têm disciplinas não dogmáticas como parte residual do currículo. Na Alemanha, um país que adota um eixo comum dogmático (Direito Civil, Direito do Estado e Direito Penal), estudar disciplinas como Filosofia ou Sociologia é facultativo e é muito pequeno o número de matriculados. A formação do aluno é preponderantemente dogmática e voltada para a preparação para os Exames de Estado.

Se isso é bom ou ruim, trata-se de um ponto discutível. Este colunista considera muito importante a formação metadogmática, o que é bem perceptível pelo leitor das 57 colunas anteriores, nas quais elementos metajurídicos impregnaram todo o texto. Mas, por um dever de honestidade intelectual, o colunista reconhece que os dados coletados não permitem associar qualidade do ensino ao caráter central ou residual dessa formação metadogmática. A pesquisa demonstrou que a preocupação das faculdades de Direito é dotar os alunos de uma formação jurídica básica.

2.3. Barreiras de controle de qualidade na saída
Nos países europeus continentais, as regras de universalização do ensino superior criaram regras de barreira à saída, e não à entrada. Os vestibulares ou índices de aproveitamento do ensino pré-universitário definem o ingresso no ensino superior ou a colocação do aluno em universidades melhores ou não tão boas. Quem deseja ingressar na universidade, porém, dificilmente terá uma barreira de entrada tão rígida. O controle da qualidade dá-se preponderantemente à saída.

Os Exames de Estado (modelo alemão), os Exames de Ordem (modelo japonês) e os controles ao longo do curso (modelo português nas universidades públicas) são eficientes (e algumas vezes draconianos) meios de seleção dos egressos. No caso alemão, o fracasso por duas vezes nos Exames de Estado (na maioria dos Estados) elimina as oportunidades de seguir carreira jurídica. A pontuação nesses exames é decisiva para a colocação do egresso em carreiras de maior ou de menor prestígio profissional.

2.4. Metodologias ativas e aulas magistrais
Alemanha, França, Itália, Inglaterra e País de Gales, Angola, Japão (nas faculdades que não adotaram o modelo de common law), Rússia, China e Colômbia são exemplos da preponderância até hoje do modelo de aulas magistrais.

No caso dos países europeus continentais, a estrutura da docência centrada no professor catedrático reforça esse modelo. O catedrático dá aulas magistrais e os assistentes (cujos nomes são variáveis conforme o sistema) dividem-se com grupos menores de alunos para as aulas de "repetição" ou de "explicação" (os "repetidores", como se diz em Portugal) ou para estudos de caso.

O método socrático combinado com o estudo de caso é uma das técnicas mais antigas de ensino jurídico, surgido nos Estados Unidos no final do século XIX, graças a Christopher Columbus Langdell. É um sistema que exige o conhecimento pessoal dos alunos por parte do professor, que dispõe de um mapa da sala, com fotografia de cada discente e que deles exige uma carga de leitura semanal pesadíssima. Seu uso tem sido crescentemente contestado desde a década de 1960 por movimentos de teoria crítica do Direito norte-americano, por considerarem-no muitas vezes agressivo com o aluno.

Na Alemanha, combinam-se uma aula magistral fortemente baseada no estudo do Código Civil (ou do Código Penal), com estudos em grupos menores, com os assistentes, voltados para a discussão de casos práticos, os quais serão resolvidos pelos estudantes como forma de preparação para os futuros Exames de Estado.

2.5. Número de professores e de alunos
Não há correlação entre qualidade de ensino e número elevado de professores e de estudantes.

Na verdade, os países que possuem carreiras docentes mais fortes, bem remuneradas e com representação social mais alta (Portugal e Alemanha, por exemplo) têm características comuns em relação a esse tópico: número pequeno de catedráticos (com uma hierarquização forte das carreiras, que progridem com enorme lentidão) e número grande de alunos. É comum que as avaliações de algumas disciplinas ocorram em auditórios e que as aulas magistrais façam uso de anfiteatros e telões para auditórios anexos, a fim de comportar todos os alunos.

É óbvio que não se está a recomendar a importação desse modelo para o Brasil, pois ele só justificaria o aumento exponencial da exploração capitalista da mão de obra docente em instituições privadas. No caso europeu, essa combinação é possível porque aliada a dois princípios: (a) "Muitos são chamados, poucos são escolhidos": o amplo acesso à universidade pressupõe um número grande de alunos, mas o desempenho individual é avaliado com rigor, e a aprovação não é automática. O comparecimento em aula é mais baixo. Mas quem não estuda terminará por ser reprovado ou ser retido pelas frestas dos Exames de Estado ou de Ordem, ao final do processo de formação; b) "Menos é mais": o catedrático é o eixo do sistema. Ocorre que são poucos os professores catedráticos, o que permite que sejam muito bem remunerados (ao menos para os padrões brasileiros).

2.6. Representação social e dedicação exclusiva
Nos países capitalistas centrais pesquisados, o catedrático possui variáveis níveis de prestígio social. Portugal e Alemanha, por exemplo, têm no catedrático uma das posições de maior dignidade na burocracia e na sociedade. Esse prestígio vem acompanhado de remunerações elevadas. Em França, há um nivelamento de remuneração entre as carreiras públicas, o que impede distorções como as existentes no Brasil entre "carreiras estratégicas" e "carreiras não estratégicas".

A dedicação exclusiva é uma decorrência jurídica da organização do sistema burocrático europeu, mais antigo e que precisa comportar regras de isonomia mais duras do que as existentes em países mais jovens. Só é possível ter um único cargo público em vários países europeus, em sendo assim a dedicação exclusiva se torna menos uma opção e mais uma decorrência da estrutura do cargo. Entretanto, há exceções em países como Portugal, Chile, África do Sul, Rússia, China e Inglaterra e País de Gales, nos quais existem professores catedráticos não exclusivos. Nos Estados Unidos e na Inglaterra e País de Gales, as figuras de maior prestígio são advogados e juízes. O ingresso na docência é, em muitos casos, resultante da uma migração parcial ou total do grande advogado ou do juiz de tribunais superiores.

2.7. Importância das carreiras jurídicas
Na Europa, à exceção de Portugal, a terra dos "catedráticos mandarins" e parcialmente da Alemanha e Itália, há relativa autonomia da política em relação ao Direito, o que se reflete na importância das carreiras jurídicas. Nos países pesquisados, encontraram-se exemplos extremos, como Japão, Chile, Rússia e China, de segmentação e alheamento das carreiras jurídicas dos núcleos de poder. Na Rússia e na China, esse quadro tem mudado lentamente com a abertura dos sistemas político e econômico desde o final dos anos 1980.

Em nenhum país pesquisado, todavia, encontrou-se algo semelhante ao grau de importância das carreiras jurídicas nas definições políticas fundamentais do Estado, como se dá no Brasil desde fins dos anos 1990.

***

Estes são apenas alguns dos resultados alcançados após tanto tempo dedicado ao tema da formação dos juristas no mundo. Com falhas e imprecisões, as quais se deseja corrigir quando o livro que consolidará este trabalho for publicado, este é o resultado que se oferece à comunidade jurídica de língua portuguesa.

Agradece-se, com enorme ênfase, a todos os que ajudaram à composição desta pesquisa: Jan Peter Schmidt, Tilman Quarch, Alexandre Veronese, Fernando Fontainha, Luís Felipe Rasmuss de Almeida, Dario Moura Vicente, Ibsen Noronha, Rui de Figueiredo Marcos, Masato Ninomiya, Takashi Kojiro, Rute Teixeira Pedro, Martônio Mont'Alverne Barreto Lima, Lino Diamvutu, Riccardo Cardilli, Luciana Rodrigues, Denis Halis, Augusto Jaegger Jr, Karina Nunes Fritz e Stefan Grundmann. Todos eles, oriundos do Brasil e de "várias partes do mundo", são também responsáveis direta ou indiretamente pelo êxito deste projeto. Finalmente, agradeço ao advogado Bruno de Ávila Borgarelli, que tem sido incansável na compilação e na complementação destes estudos.

terça-feira, 18 de julho de 2017

Pessoa jurídica e direitos de personalidade (parte 2)

1. A tutela da personalidade segundo o ponto de vista doutrinário
As limitações impostas a esse trabalho afastam a realização de um estudo longo e aprofundado das diversas teorias sobre o conceito e a natureza da pessoa jurídica, uma vez que o tema, pela sua complexidade e importância, merece um estudo específico, a exemplo da obra de José Lamartine Corrêa de Oliveira, Conceito de Pessoa Jurídica, tese que lhe outorgou o título de livre-docente de Direito Civil, da Faculdade de Direito da UFPR, em 1962. Por essa razão, abordaremos de imediato a noção de pessoa jurídica desenvolvida pela doutrina de José Lamartine Corrêa de Oliveira, necessária para embasar nosso pensamento.

Corrêa de Oliveira concebe a pessoa jurídica como sendo um ser, uma unidade ontológica constituída pela reunião de seres humanos que a integram em uma existência autônoma, revelando-se uma "realidade permanente, individual, completa, incomunicável fonte de atividade consciente e livre, realidade distinta. Realiza todas as características da personalidade, menos uma: a substancialidade"[1]. Lamartine sustenta que essa unidade ontológica não possui "forma substancial", mas, sim, "forma acidental", uma vez que para existir depende dos seres humanos que estão sob sua existência[2]. A pessoa jurídica é uma "realidade análoga à pessoa humana pelo fato de ela se identificar em muitos pontos com a pessoa natural; distinguindo-se, porém, dessa, pelo fato de aquela revelar substancialidade, sendo que a pessoa jurídica é destituída de substância"[3].

A visualização pelo autor da categoria pessoa natural se dá em consonância com o pensamento de São Tomás de Aquino e da filosofia Tomista. Para São Tomás de Aquino a pessoa natural é "reconhecida como indivíduo, como substância, por ser um ente que existe por si mesmo"[4]. Os seres de forma substancial seriam aqueles que não necessitariam de fundamentos extrínsecos para esteio, ou seja, existem por si mesmos. Os seres acidentais embora sejam, também, considerados seres, os ens, são, porém, ens entis, isto é, destituídos de forma substancial, não tendo, por essa razão, existência em si mesmos, "existindo como complemento ou acabamento de outro ser"[5].

As pessoas jurídicas sob o ponto de vista ontológico são verdadeiras pessoas, classificadas como sujeitos de direito, sendo, porém, sua personalidade meramente analógica à da pessoa natural. A ideia de estabelecer-se uma analogia entre pessoa natural e pessoa jurídica foi retomada por Zambrano e Rénard, os quais atribuem ao ens entis a consistência de um ser de razão, por constituir-se em um ser que depende da razão como o efeito da causa, possuindo, portanto, existência real e verdadeira. Dessa maneira, pode-se afirmar que a pessoa jurídica consiste em uma realidade analógica ao ser humano. Compete, ainda, ao Estado o reconhecimento jurídico desse ente, preexistente a tal declaração. O direito objetivo, ao reconhecer a personalidade de determinada reunião de pessoas ou de bens, reconhece e declara algo que já existe. Trata-se do cumprimento de um requisito extrínseco e não constitutivo[6].

A afirmação da realidade da pessoa jurídica, per si, se mostra insuficiente, carecendo harmonizar essa realidade à noção de direito subjetivo. Qualificando-se como entes dotados de personalidade, poderiam ser titulares de direitos subjetivos, não decorrentes do poder de vontade ou do interesse juridicamente protegido, mas decorrente de uma ligação da ordem do ter, que firmaria a titularidade de um direito subjetivo outorgado pelo direito objetivo[7]. A vinculação entre o direito objetivo e o direito subjetivo não significa, para Lamartine, uma opção legalista ou positivista, mas o sentido de que o direito objetivo abrange tanto o direito positivo quanto o direito natural. O direito positivo possui a função de "criar direitos subjetivos (os que não resultam do Direito Natural) ou meramente consagrar os emanados dessa ordem normativa mais alta e básica"[8].

Considerando a pessoa jurídica um ser, assim como o é a pessoa natural, indivisa, individual, permanente e externamente independente, embora desprovida de substância, "pois o acidente é ser" possui, a mesma, atributos da personalidade devendo, os mesmos, ser protegidos diante de iminente lesão.

A pessoa jurídica é um ser acidental, não idêntico, porém análogo ao ser humano, por ser destituída de dignidade, segundo a visão kantiana. A dignidade é imanente à pessoa natural pelo simples fato de ela ser o ser humano, ou seja, possui um fim em si mesmo, possuidor de um "valor próprio [...] e não valor como meio para outros"[9]. Observa Lamartine que a diferença entre pessoa humana e pessoa jurídica, na concepção tomista, não difere fundamentalmente da visão atual, representada por Larenz[10]. A pessoa substancial existe por si mesma, cuja finalidade é em si mesma, ao passo que a pessoa jurídica para existir, depende dos seres humanos, não possuindo, por essa razão, valor próprio, nem dignidade[11].

Embora ausente de dignidade, o fato de a pessoa jurídica ser uma entidade análoga ao ser humano e, consequentemente, portadora de personalidade, faz com que José Lamartine Corrêa de Oliveira formule a noção de a pessoa jurídica trazer em si uma personalidade cujas emanações ou atributos são reconhecíveis como direitos de personalidade devidamente tuteláveis pelo direito.

Em 1990, publicamos na Revista dos Tribunais um trabalho de nossa autoria, Considerações sobre o Direito à Intimidade das Pessoas Jurídicas, no qual defendemos o reconhecimento da existência de direitos de personalidade da pessoa jurídica, tais como o nome, a boa fama, o crédito, a reputação e o direito genérico à intimidade, abarcando esse o direito ao segredo[12].

Rui Stoco, a partir de um aresto do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferido em 15/8/1991, sustenta que as entidades coletivas dotadas dos atributos de reputação e de conceito perante a sociedade são passíveis de difamação, desde que a manifestação possa abalar tais atributos[13]. Assim, violada a honra objetiva da pessoa jurídica, torna-se essa parte legítima para demandar pela respectiva indenização pela prática de ato atentatório à sua personalidade.

No Direito francês, há algum tempo, vem sendo reconhecido à pessoa jurídica a titularidade ativa para a interposição de ação destinada à tutela dos atributos da sua personalidade contra violações praticadas por terceiros, protegendo, mediante proposição de tutela inibitória, seu direito ao nome comercial, às insígnias e marcas, ao segredo industrial ou comercial, assegurando o direito de resposta e dos demais atos ilícitos que possam prejudicar sua imagem pública[14]. Tal qual se propõe em relação às pessoas naturais a ação indenizatória decorrente da responsabilidade civil por atos ilícitos de natureza moral, o mesmo fundamento vale para as entidades personificadas a favor das quais cabe a utilização da ação indenizatória diante da prática de ato atentatório à sua personalidade. Na doutrina francesa, segundo ensina Pierre Kayser, as pessoas jurídicas (personnes morales) possuem direitos análogos aos direitos de personalidade das pessoas naturais[15].

Dessa maneira, de acordo com abalizada doutrina nacional e estrangeira que vem desenvolvendo estudos nos últimos 50 anos sobre a pessoa jurídica e a tutela dos direitos de personalidade dela, verifica-se que a assertiva trazida pelo Enunciado 286 do CJF, no sentido de serem os direitos de personalidade direitos inerentes e essenciais à pessoa humana, decorrentes de sua dignidade, não sendo, por essa razão, as pessoas jurídicas titulares de tais direitos, constitui-se em um grande retrocesso para o Direito brasileiro.

2. A tutela da personalidade segundo o ponto de vista jurisprudencial
Afirmamos, na introdução da primeira parte desta coluna, que a reiterada jurisprudência dos tribunais, no sentido de reconhecer que as pessoas jurídicas são suscetíveis de serem vítimas de danos morais, provocou a manifestação do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria, resultando na prolação da Súmula 227, a qual, expressamente, declara que "a pessoa jurídica pode sofrer dano moral".

A referida súmula, alinhada à mais recente doutrina, entende que a pessoa jurídica pode ser vítima de dano moral compreendendo a ofensa à sua honra objetiva, que consiste no agravo à sua reputação no meio social onde está estabelecida. O ato ofensivo do agente causa estremeção à pessoa jurídica que afeta seu bom nome, seu conceito nas relações comerciais e a tradição de mercado, independentemente da ocorrência de reflexos negativos e danos ao seu patrimônio mediante o fato do abalo de crédito, da perda de clientela ou da perda da chance de realizar novas contratações.

O ato atentatório à honra da pessoa jurídica, que é objetivo, difere da violação da honra da pessoa natural, que é subjetiva. A honra subjetiva se qualifica como injúria, sendo inerente à pessoa natural, localizada no psiquismo de cada indivíduo, podendo ser violada mediante atos que atinjam sua dignidade, seu respeito próprio, sua autoestima, causado-lhe sofrimento, humilhação e angústia[16].

Sílvio de Salvo Venosa ensina que "o dano moral não se circunscreve apenas aos fatos dor e sofrimento, mas provoca de maneira ampla um desconforto extraordinário na conduta do ofendido podendo ser a vítima tanto a pessoa natural como a pessoa jurídica"[17].

Trata-se de um efetivo dano à sua personalidade, que existe concretamente e pode ser mensurado através de arbitramento.

Verifica-se estar consolidado na jurisprudência brasileira o reconhecimento da tutela dos direitos de personalidade da pessoa jurídica e a respectiva indenização pelo dano moral sofrido.

3. Conclusão
A atribuição da personalidade ao ser humano decorre de mera política legislativa, existindo legislações que reconhecem a personalidade do embrião e do feto desde a concepção, momento em que este se torna uma spes personae, portador de identidade genética própria. Outros diplomas legais atribuem a personalidade somente ao recém-nascido, desde que ele nasça com vida (Amaral, 1998, p. 21). A aquisição da personalidade jurídica dos entes ideais, igualmente, se dá mediante determinação legislativa. Trata-se de um processo técnico que atribui individualidade própria a um grupo de pessoas, independentemente da individualidade de seus membros, ou a um conjunto de bens, que se tornam titulares de direitos e de obrigações, não sendo considerados como a mera reunião de pessoas ou de bens nas suas relações jurídicas, mas entes próprios e individualizados (Amaral, 1998, p. 272).

Logo, se o reconhecimento da personalidade do ser humano e, consequentemente, os direitos decorrentes dessa personalidade são dependentes de política legislativa e da atuação da lei (artigo 2º, Código Civil) e sendo o reconhecimento da personalidade da pessoa jurídica, igualmente vinculado à política legislativa e da atribuição pela lei (artigo 45 Código Civil), essa mesma lei tem o poder de reconhecer e declarar a existência de direitos que emanam da personalidade da pessoa jurídica (artigo 52, Código Civil), independentemente de ela ser, ou não, portadora de dignidade.

Assim, conquanto ausente de dignidade, o fato de a pessoa jurídica ser uma entidade análoga ao ser humano, reconhecida pela lei sua personalidade, suas emanações ou atributos são, igualmente, reconhecíveis pela mesma lei como direitos inerentes a essa personalidade e devidamente tuteláveis pelo direito.

No Brasil, a indenização do dano moral decorrente de atentado praticado contra o direito geral de personalidade de qualquer pessoa, seja ela natural ou jurídica, está prevista no art. 5°, X, da Constituição. O mesmo dano moral que pode vitimar a pessoa natural, também poderá lesar a pessoa jurídica, sendo ambas as modalidades de atentados indenizáveis. No caso de se tratar de violação de direito de personalidade de pessoa jurídica deverá o dano ser avaliado por meio de arbitramento.

Os mandamentos contidos na Súmula 227 do STJ e no artigo 52 do Código Civil consolidaram em definitivo a doutrina que reconhece à pessoa jurídica, o direito à reparação de dano moral sofrido e de ser ela titular do direito geral de personalidade.

O direito geral de personalidade da pessoa jurídica é resultado de uma construção lenta que se processou durante muito tempo até vir a se consolidar, na atualidade, como categoria jurídica, atributo da personalidade da pessoa jurídica.

A surpreendente aprovação do Enunciado 286 do CEJ, em uma Jornada de Direito Civil, que vem negar anacronicamente a titularidade de direitos de personalidade às pessoas jurídicas, se revela incompreensível, uma vez que se trata de um equívoco de quem o elaborou consoante pudemos verificar.

O Enunciado 286 do CEJ, consoante vimos, não se constitui, tão somente, em um equívoco, mas também em um grave retrocesso no Direito brasileiro, pois sua permanência como indicação jurídica vai ao desencontro da própria doutrina brasileira consolidada desde os anos de 1960 e reafirmada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o qual textualmente reconhece e tutela os atributos da personalidade da pessoa jurídica e o direito à indenização pelos danos morais sofridos por atentados à sua personalidade.

O Enunciado 286 do CEJ não só nega a existência de direitos de personalidade à pessoa jurídica, mas nega a própria personalidade da pessoa jurídica ao pretender atrelá-la ao atributo dignidade.

Desse modo, só resta a expurgação do Enunciado 286 do CEJ do rol de enunciados que procuram realizar a boa exegese do Código Civil.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


[1] OLIVERA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica. S. Paulo. Saraiva, 1979, p.17.
[2] OLIVERA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica, p.17-18; LEONARDO, Rodrigo Xavier. Revisitando a Teoria da Pessoa Jurídica na obra de J. Lamartine Corrêa de Oliveira. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, nº 46, 2007, p.128-129.
[3] OLIVERA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica, p.17.
[4] OLIVERA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica, p.17-18; LEONARDO, Revisitando a Teoria da Pessoa Jurídica na obra de J. Lamartine Corrêa de Oliveira, p.128-129.
[5] OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. Conceito de pessoa jurídica. Tese. Curitiba. UFPR 1962, p.162.
[6] OLIVERA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica, p.14.
[7] LEONARDO, Revisitando a Teoria da Pessoa Jurídica na obra de J. Lamartine Corrêa de Oliveira, p.129.
[8] OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. Conceito de pessoa jurídica, p.168-169; LEONARDO, Revisitando a Teoria da Pessoa Jurídica na obra de J. Lamartine Corrêa de Oliveira, p.129-130.
[9] OLIVERA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica, p.135.
[10] LARENZ, Karl. Allgemeiner Teil. Apud OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica, p.135.
[11] OLIVERA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica, p.135.
[12] SZANIAWSKI, Elimar. Considerações sobre o Direito à Intimidade das Pessoas Jurídicas, R T, v.657, ps. 25-31. 1990, p.27-29.
[13] STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. São Paulo : RT, 1999, p. 113.
[14] KAYSER, Pierre. La Protection de la Vie Privée. Paris, Economica, 1984, p.162.
[15] KAYSER, Pierre. Les droits de la personnalité – aspects théoriqués et pratiques. Revue Trimestrielle de Droit Civil, Paris, v. 69, 1971, P.445.
[16] AGUIAR, Ruy Rosado de, STJ Súmula 227 – 8/9/1999 - DJ 20/10/1999. "Pessoa Jurídica - Dano Moral. A pessoa jurídica pode sofrer dano moral" (Recurso Especial 129.428-RJ (97.289818).
[17] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil - Responsabilidade Civil. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2008, p.298.

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Como se produz um jurista: o modelo japonês (parte 57)

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

Introdução


Na coluna anterior da série sobre a formação jurídica no Japão, apresentaram-se dados e informações sobre o professor, o aluno e os cursos de Direito naquele país asiático.

As reformas educacionais da última década, como já demonstrado, apresentaram mais problemas do que mudanças efetivas na qualidade do ensino. A ampliação do acesso dos alunos aos cursos jurídicos e o aumento do número de advogados não implicou melhoria qualitativa na formação dos novos bacharéis, muito menos atingiu os objetivos.

Nesta última coluna da série sobre o Japão, o foco serão as carreiras jurídicas.

Magistratura japonesa
A estrutura judiciária japonesa foi profundamente alterada após a Constituição de 1946. Embora os magistrados decidam "em nome do imperador" (uma fórmula que foi substituída na Alemanha e na Itália pelo enunciado "em nome do povo"), eles se apresentam constitucionalmente como parte integrante de um poder autônomo. A organização do Poder Judicial japonês dá-se de modo simples: a Suprema Corte está no ápice do sistema. Abaixo da Suprema Corte estão as cortes superiores, que se dividem em seis seções, além de uma corte especializada em propriedade intelectual. Existem também 50 tribunais especializados em Direito de Família e 50 tribunais distritais, ambos com 230 unidades jurisdicionais. Na base do sistema encontram-se os juizados sumários, traduzíveis por "cortes para pequenos litígios civis e criminais", em número de 438, distribuídos em todo o país.

A Suprema Corte japonesa não é um tribunal constitucional, ao estilo alemão, embora tenha a última palavra quanto aos recursos extraordinários em matéria cível e criminal. Seus membros são nomeados pelo imperador japonês (o presidente da corte) ou pelo Gabinete de Ministros em nome do imperador (os demais membros da corte), sem limitação de mandato, salvo a aposentadoria compulsória aos 70 anos. Os cargos são vitalícios. Excepcionalmente, admite-se a remoção dos juízes da Suprema Corte por decisão dos eleitores. Embora não haja mandato, na prática, o tempo de permanência no tribunal é previsível, dado que a idade média dos nomeados é de 60 anos.

De modo igualmente diverso ao que se dá na Alemanha e, em grau infinitamente maior, no Brasil, a Suprema Corte japonesa é marcada pelo princípio da autocontenção. Questões de grande interesse político ou social são deixadas ao escrutínio dos atores políticos por meio dos fóruns democráticos tradicionais, como o Parlamento e as manifestações populares. São poucas as decisões da Suprema Corte que redundaram em declaração de inconstitucionalidade de leis e mais raras ainda as decisões que trouxeram para o tribunal as funções de poder moderador.

O tribunal possui 14 juízes (o mais jovem com 63 anos) e um presidente (com 69 anos de idade). A origem dos magistrados é geralmente a advocacia, a judicatura ou o Ministério Público. Os ministros acadêmicos quase sempre conjugaram a docência com outra atividade em uma dessas carreiras. A Lei de Organização da Suprema Corte Japonesa, a esse propósito, exige uma idade mínima de 40 anos para os nomeados, além de comprovada experiência profissional por período não inferior a 10 anos em cargos como presidente de uma corte superior, juiz, juiz de um juizado sumário, promotor de Justiça, advogado ou professor catedrático ou assistente de universidade japonesa.

Tradicionalmente, um terço dos membros da Corte Suprema é oriundo da magistratura, enquanto outro terço vem da advocacia, e o restante é escolhido dentre promotores e professores. Os advogados, também por tradição, são ex-presidentes ou ex-vice-presidentes da Ordem dos Advogados.

As cortes superiores, sediadas nas cidades de Tóquio, Osaka, Nagoya, Hiroshima, Fukuoka, Sendai, Sapporo e Takamatsu, dividem-se em seis seções. Em 2005, criou-se uma corte superior especializada em Direito da Propriedade Intelectual.

As cortes distritais são destinadas ao conhecimento em primeiro grau de matérias cíveis e criminais. Ao passo em que as cortes de família examinam matérias sobre Direito de Família, Direito da Criança e do Adolescente e crimes cometidos nessa área.

As cortes para pequenos litígios civis e criminais são formados por juízes singulares, equiparando-se aos juizados especiais brasileiros.

O recrutamento dos magistrados integrantes da jurisdição ordinária dá-se por ato do Gabinete Imperial, a partir de listas de candidatos formadas pela Suprema Corte. O processo depende de um parecer do Comitê Consultivo de Nomeações. Segundo dados de 2014, havia no Japão o número de oito presidentes de cortes superiores, 1.921 juízes e de 1.000 juízes auxiliares de cortes superiores e distritais e 806 juízes de cortes sumárias.

O provimento inicial na carreira dá-se para o cargo de juiz auxiliar. Os candidatos devem ter sido previamente aprovados no Exame de Ordem (um número reduzidíssimo de bacharéis consegue essa aprovação) e depois hão de ser submetidos a um Curso de Formação e Treinamento da Magistratura, ao fim do qual são examinados em avaliação específica[1]. A progressão para o cargo de juiz titular exige um mínimo de 10 anos de exercício da magistratura como auxiliar[2].

As cortes superiores são compostas de juízes titulares com mais de cinco anos de experiência, além da escolha dentre promotores, advogados ou professores com mais de 10 anos de atividade.

Os juízes dos juizados sumários são escolhidos de modo mais discricionário e eles possuem mandatos de 10 anos, com possibilidade de reeleição.

Dado importante em qualquer estudo comparativo das carreiras jurídicas é a remuneração profissional. A Lei 90 de 2016 fixou os seguintes patamares remuneratórios para a magistratura japonesa: a) juiz titular (nível 1, o ápice da carreira) recebe 1,17 milhão de ienes por mês ou 14,1 milhões de ienes ao ano. O juiz titular (nível 8) recebe 516 mil ienes por mês; b) o juiz auxiliar de nível 12 (o mais baixo) percebe 231,4 mil ienes ao mês; c) o juiz das cortes para pequenos litígios civis e criminais percebe entre 818 mil ienes por mês (nível 1) e 231,4 mil ienes por mês (nível 17)[3].

A equivalência desses valores com as realidades norte-americana e brasileira pode ser assim estabelecida: a) 1,18 milhão de ienes por mês — US$ 10,37 mil ou R$ 34,11 mil; b) 14,1 milhões de ienes anuais — US$ 124,46 mil ou R$ 409,31 mil; c) 516 mil ienes por mês — US$ 4,55 mil ou R$ 14,98 mil; d) 6,19 milhões de ienes anuais — US$ 54,66 mil ou R$ 179,75 mil.

Os valores remuneratórios dos níveis iniciais da magistratura não são particularmente elevados, especialmente se considerado o custo de vida na região metropolitana de Tóquio ou de outras grandes cidades japonesas. A magistratura japonesa não passou pela transformação, que é muito sensível no Brasil e em outros países, no sentido e na representação social da carreira. A figura do juiz discreto e com uma vida anônima ainda é preponderante no Japão. O envolvimento dos magistrados em questões políticas é praticamente nulo.

Ministério Público
O monopólio da titularidade da ação penal e a coordenação da investigação criminal são as atividades essenciais do Ministério Público japonês. Além dessas atribuições, estão a defesa do interesse público e a proteção da criança. A chefia do Ministério Público é atribuída ao procurador-geral de Justiça, auxiliado por um procurador-geral adjunto. Há ainda oito procuradores-superintendentes, 1.294 promotores de Justiça e 919 promotores de Justiça assistentes[4].

De acordo com a Lei 91, de 2016, a estrutura da carreira do Ministério Público é dividida em promotores titulares e promotores assistentes. A remuneração do promotor titular de nível 1 é de 1,17 milhão de ienes mensais. No nível 20, correspondente ao patamar inicial, a remuneração é de 231,4 mil ienes por mês. Os promotores de Justiça assistentes recebem entre 574 mil ienes por mês (nível 1) e 212,2 mil ienes por mês (nível 17). O procurador-geral de Justiça recebe a remuneração mensal de 1,47 milhão de ienes mensais[5].

O recrutamento dos membros do Ministério Público é muito semelhante ao dos juízes. É necessária a conclusão do curso de Direito, aprovação no Exame de Ordem e também na escola de formação, que é comum a magistrados, promotores e advogado[6].

Diferentemente do que se dá no Brasil, a atuação do Ministério Público japonês é mais contida e discreta. Ela se amolda a um perfil ministerial pré-Constituição de 1988. Outra particularidade japonesa é que o papel do Ministério Público se transformou após a Segunda Guerra Mundial: da tradição francesa do promotor como um magistrado, passou-se ao modelo alemão, que identifica as carreiras de promotor e de juiz como autônomas[7].

O Ministério Público organiza-se de modo centralizado e altamente hierárquico, o que é um contraste bem notável com a realidade brasileira. O Ministério da Justiça exerce a supervisão do Ministério Público, exercendo sobre ele controle hierárquico[8]. É similar, contudo, a distribuição dos níveis de carreira em correlação com a magistratura. A atuação do membro do Ministério Público é vinculada ao respectivo órgão jurisdicional, o que implica a promoção estar associada ao ofício perante juízos de primeiro grau, de segundo grau e tribunais superiores[9].

Advocacia no Japão
Na parte 55 da série, fez-se uma análise aprofundada da transformação do perfil da advocacia japonesa após as reformas universitárias de 2004. Recomenda-se ao leitor a consulta a essa coluna para uma visão mais abrangente da advocacia e do impacto negativo da introdução de um novo sistema educacional no modelo profissional da advocacia japonesa.

Diferentemente do período pré-Segunda Guerra Mundial, os advogados japoneses não se vinculam mais ao Ministério da Justiça, mas somente à Ordem dos Advogados, que se organiza nacionalmente como uma federação de seccionais. O exercício da profissão, ao menos até o início da década de 2000, conservou traços liberais, sendo rara a existência de advogados internos nas empresas ou grandes escritórios de advocacia, com centenas de profissionais associados ou subordinados[10].

Conclusões
O Japão é um excelente modelo para se comparar a confluência de tradições jurídicas romano-germânicas, preponderantes na estrutura judiciária e da advocacia, com uma nova estrutura educacional de inspiração norte-americana. Mais ainda é um ótimo campo de observação para a introdução de reformas pouco felizes na formação dos futuros profissionais do Direito.

A estrutura do Poder Judiciário e do Ministério Público é bastante sólida, com uma participação autocentrada na vida política e social japonesa. A baixa litigiosidade, a prevalência de elementos morais na conduta das pessoas (o respeito à palavra, o pagamento das dívidas e o respeito aos consumidores) e a busca por soluções alternativas de conflitos contribuem para a pequena expansão do aparato judiciário japonês e da advocacia. Esses fatores, somados à crise gerada pela reforma universitária, têm determinado uma queda na procura pelos cursos jurídicos.

***

Com esta coluna, encerra-se a série sobre a educação jurídica japonesa.


[1] Disponível em: http://law.unimelb.edu.au/news/MLS/q-and-a-with-judge-aya-kobayashi. Acesso em 6/7/2017.
[2] ODA, Hiroshi. Japanese Law. 3 ed. Oxford: Oxford University Press, 2009. p. 74.
[3] Disponível em: http://law.e-gov.go.jp/htmldata/S23/S23HO075.html. Acesso em 5/7/2017.
[4] Disponível em: http://japan.kantei.go.jp/judiciary/0620system.html. Acesso em 10/7/2017.
[5] Disponível em: http://law.e-gov.go.jp/htmldata/S23/S23HO076.html. Acesso em 11/7/2017.
[6] Disponível em: http://law.unimelb.edu.au/news/MLS/q-and-a-with-judge-aya-kobayashi. Acesso em 10/7/2017.
[7] ODA, Hiroshi. Japanese Law. Op. cit. p. 73.
[8] ODA, Hiroshi. Japanese Law. Op. cit. p. 77.
[9] ODA, Hiroshi. Japanese Law. Op. cit. p. 76.
[10] ODA, Hiroshi. Japanese Law. Op. cit. p. 78-79.

terça-feira, 11 de julho de 2017

Pessoa jurídica e direitos de personalidade (parte 1)

1. Introdução
O Código Civil de 2002, no artigo 52, consolidou no Direito brasileiro a categoria do direito geral de personalidade da pessoa jurídica, albergando doutrina vanguardista que vinha se afirmando entre nós, desde meados do século XX.

A ideia de a pessoa jurídica ser merecedora de tutela, diante da prática de atentados contra sua personalidade por terceira pessoa, natural ou jurídica, que pratique danos ao seu nome, à sua honra objetiva e à sua imagem, não é recente. Os tribunais há algum tempo vêm reconhecendo às pessoas jurídicas a possibilidade de serem vítimas de lesão por danos morais quando o atentado à sua personalidade resultar em repercussão social. A reiterada jurisprudência dos tribunais inferiores levada ao conhecimento do Superior Tribunal de Justiça resultou na prolação da Súmula 227[1], a qual expressamente declara que "a pessoa jurídica pode sofrer dano moral".

Embora tardiamente, o legislador civil contemplou o Código Civil brasileiro com um dispositivo legal destinado a tutelar a personalidade da pessoa jurídica de modo análogo ao empregado na proteção dos direitos de personalidade da pessoa natural, respeitadas as peculiaridades da categoria, alinhando-se ao atual entendimento da jurisprudência e com o pensar da mais abalizada doutrina brasileira.

No entanto, decorridos pouco mais de quatro anos de vigência do novo Código Civil, foi publicado em 2006 o Enunciado 286, do CEJ, oriundo das conclusões da IVª Jornada de Direito Civil, o qual, surpreendentemente, em total desacordo com a legislação civil, com a jurisprudência e com a doutrina, nega a titularidade dos direitos de personalidade às pessoas jurídicas, causando, consequentemente, perplexidade à comunidade jurídica brasileira[2].

A disposição contida no Enunciado 286, do CEJ, que nega ser a pessoa jurídica possuidora de um direito geral de personalidade, colide frontalmente com o mandamento disposto no artigo 52, do Código Civil.

O tema do direito geral de personalidade da pessoa jurídica é merecedor de um amplo estudo autônomo, diante de sua complexidade. No entanto, tendo em vista o inusitado surgimento do Enunciado 286, do CEJ, cujo conteúdo vem sendo repetido por pessoas menos avisadas como sendo uma afirmação juridicamente verdadeira, entendemos ser necessário fazermos algumas considerações sobre o direito geral de personalidade da pessoa jurídica, disciplinado no artigo 52, do Código Civil.

Do confronto analítico do citado artigo 52 com o Enunciado 286, surgem duas indagações: a) consiste o conteúdo do Enunciado 286 em um equívoco por parte de seus elaboradores? b) ou seria o conteúdo do Enunciado 286 um retrocesso no Direito brasileiro?

Para uma resposta adequada às indagações, necessário será a realização de reflexões sobre a noção de pessoa jurídica e dos direitos de personalidade dessa pessoa. As reflexões partirão da análise do tema sob três enfoques.

O primeiro enfoque exige a análise da controvérsia segundo uma visão histórica da tutela da personalidade.

O segundo passo consistirá na análise da tutela da personalidade e da teoria dos direitos da personalidade a partir do ponto de vista doutrinário.

O terceiro aspecto versará no exame da tutela da personalidade e dos direitos da personalidade a partir da jurisprudência que consolidou o direito geral de personalidade no direito pátrio.

Para melhor compreensão da existência e da tutela dos direitos de personalidade da pessoa jurídica, será necessário fazer um estudo comparado com a tutela dos direitos de personalidade da pessoa natural.

Passaremos, a seguir, a analisar a proteção dos direitos de personalidade segundo a evolução histórica.

2. A tutela da personalidade segundo sua visão histórica
O ponto de partida para o estudo da tutela do direito geral de personalidade da pessoa jurídica exige a análise da proteção dos direitos de personalidade da pessoa natural pelo decurso da história, desde a antiguidade grega e romana até a modernidade, períodos em que não se conhecia a noção de dignidade da pessoa humana.

A História do Direito mostra que a tutela da personalidade humana surgiu e se desenvolveu independentemente da noção de dignidade da pessoa humana, a qual consiste em um conceito moderno elaborado por Kant nos idos de 1785[3].

A proteção da personalidade de uma pessoa era exercida na Grécia antiga mediante a hybris e as aixias, categorias jurídicas específicas para coibir a prática de atos de injúria e de sevícia[4]. A tutela dos direitos de personalidade no mundo antigo, porém, dava-se por intermédio de manifestações isoladas, não se conhecendo um sistema jurídico de tutela da personalidade.

Em Roma, a proteção da personalidade era assegurada por meio da actio iniuriarum, nos casos em que a vítima sofresse injúria[5]. Inicialmente, a actio iniuriarum se destinava para tutela contra as ofensas cometidas à vida e à integridade física do indivíduo. A jurisprudência pretoriana ampliou o âmbito da proteção jurídica da personalidade mediante a proteção da liberdade e da honra das pessoas. A Lex Cornelia, promulgada em 81 a.C, veio a proteger o domicílio contra a sua violação, e a Lex Aquilia outorgava o direito de ação destinado a tutelar a integridade física das pessoas[6].

Na Alta Idade Média, desenvolveu-se entre os francos a noção de segredo familiar e a prática da defesa da honra da mulher, principalmente das viúvas, solteiras e repudiadas. O direito ao segredo familiar permitiu o desenvolvimento da categoria do accouchement sous X, categoria conhecida na atualidade por parto anônimo[7]. Nessa mesma época, surgiu entre os povos visigóticos que habitavam o território que corresponde atualmente à Alemanha e à Áustria o direito de todo filho nascido de pai ou de mãe desconhecidos de vir a conhecer sua ascendência biológica, consolidando a noção de direito à identidade familiar. Essa categoria consistia no atual direito da pessoa ao conhecimento de sua própria origem genética e familiar[8].

Mais tarde, na passagem do século XVI ao século XVII, surgiu a necessidade da proteção da imagem da pessoa que sofria violações mediante a confecção de retratos e caricaturas que denegriam o indivíduo, surgindo as primeiras noções da existência e da tutela do ius imaginis, que se desvinculava, aos poucos, do direito à honra[9].

Constata-se, assim, que o reconhecimento jurídico das diversas manifestações ou atributos da personalidade e a proteção desses contra atentados praticados por terceiros foram sendo construídos no decorrer dos séculos, desde a antiguidade até o século XIX, por intermédio da interposição da actio iniurarium e pela aplicação do Direito Consuetudinário. Durante esse longo período da história da humanidade, embora fossem reconhecidos e protegidos diversos atributos da personalidade, esses não se vinculavam à noção de dignidade da pessoa humana pelo fato de essa categoria, ainda, não ser reconhecida como um atributo inerente à personalidade humana, segundo a concepção kantiana.

O fato de o Direito não reconhecer o postulado da dignidade da pessoa como um atributo da personalidade por quase dois milênios não impediu o prestígio dos direitos de personalidade, nem sua proteção por meio de ações específicas. A proteção dos direitos de personalidade ocorria independentemente do conceito de dignidade como atributo da personalidade.

A simples análise da evolução histórica da tutela dos direitos de personalidade demonstra que a assertiva trazida pelo Enunciado 286, do CJF, no sentido de serem os direitos de personalidade direitos inerentes e essenciais à pessoa humana, decorrentes de sua dignidade, não sendo, por essa razão, as pessoas jurídicas titulares de tais direitos, constitui-se em um grande equívoco.

3. A tutela da personalidade segundo o ponto de vista doutrinário
Pessoa jurídica é um ente artificialmente criado mediante reunião de pessoas ou de bens que, cumprindo determinados pressupostos, adquire personalidade jurídica por atribuição legal. "É um conjunto de pessoas ou de bens, dotado de personalidade jurídica."[10]

A pessoa jurídica não encontrou os ecos da unanimidade no tocante à formulação de seu conceito e de sua natureza, devido à diversidade de aspectos que sua conceituação pode envolver. O conceito de pessoa jurídica pode ser elaborado segundo uma visão econômica, sob um ponto de vista político ou de acordo com a ótica jurídica, gerando, consequentemente, um conceito econômico, político ou jurídico de pessoa jurídica[11].

O enfoque jurídico da categoria, que diretamente nos interessa, foi igualmente objeto de muitas elocubrações, constituindo diversas teorias que procuram explicar o fenômeno da pessoa jurídica e fixar seu conceito.

***

Na coluna da próxima semana, será abordado o conceito de pessoa jurídica em Lamartine Corrêa de Oliveira como suporte teórico para a crítica ao Enunciado 286 do CJF — IV Jornada de Direito Civil.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


[1] STJ, Súmula 227 – 8/9/1999 – DJ 20/10/1999. "Pessoa Jurídica - Dano Moral. A pessoa jurídica pode sofrer dano moral".
[2] IVª Jornada de Direito Civil. Enunciado 286. Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. In http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IVJornada.pdf. Consultado em 12/5/2014.
Enunciado 286 do CEJ: "Art. 52. Os direitos da personalidade são direitos inerentes e essenciais à pessoa humana, decorrentes de sua dignidade, não sendo as pessoas jurídicas titulares de tais direitos".
[3] Atribui-se a Immanuel Kant elaboração da noção de dignidade da pessoa humana. Kant, em sua obra Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, sustenta que a pessoa natural possui "um fim em si mesma", e não um valor como meio para outros. Afirma Kant que: "No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade".
[4] SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de Personalidade e sua Tutela. S. Paulo. RT. 2005, p. 23.
[5] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo I, S. Paulo. RT, 1977, p. 38.
[6] SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de Personalidade e sua Tutela. Op. cit., p. 31-32.
[7] SZANIAWSKI, Elimar. Considerações sobre o Direito à Intimidade das Pessoas Jurídicas, RT, v. 657, ps. 25-31. 1990, p. 43.
[8] SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de Personalidade e sua Tutela... p. 45.
[9] SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de Personalidade e sua Tutela... p. 38.
[10] AMARAL, Francisco. A parte geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 263.
[11] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo I, S. Paulo. RT, 1977, p. 283.

terça-feira, 20 de junho de 2017

O paraíso dos conceitos jurídicos do jurista alemão Rudolf von Jhering (parte 8)


Por Jefferson Carús Guedes e Thiago Aguiar de Pádua

Dando continuidade a esta série de colunas sobre "O paraíso dos Conceitos Jurídicos", de Jhering, observamos que o nosso ilustre visitante se mostra "farto" da Academia de História do Direito, se recordando do caso de um tipógrafo que, através da troca da letra "b" pela letra "m", transformou a "suave flagrância de seus cabelos" em "a suave flagrância de seus camelos"[i], especialmente porque era mais fácil "trocar" uma letra por outra do que compreender cabalmente o alcance e o sentido desta troca, e era perfeitamente compreensível o motivo pelo qual a academia situava-se bem ao lado do "Muro da Vertigem". Certamente a narrativa (também) se aplica ao caso discutido nas duas colunas anteriores (sobre o inusitado artigo 386, do Decreto 848/1890, que alterou nossas fontes).

É muito mais fácil "reescrever" a Constituição Federal, trocando letras (e/ou inserindo palavras), sem se preocupar com questões inerentes à matriz teórica e aos postulados de filosofia do ordenamento, como no caso do artigo 5º, XI, que foi reescrito como "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito [inclusive de crime permanente, com interpretação da CF à luz do artigo 303 do CPP] ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial", conforme decidido no RE 603616/RO.

Ou do artigo 5º, LXII, da CF, que foi reescrito como "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória [exceto no Tribunal do Júri, quando se considerará culpado desde o esgotamento do primeiro Grau, e dos julgamentos de ações penais originárias em Tribunais de Justiça, TRFs e do STJ, além dos demais casos com esgotamento do segundo grau de jurisdição]", como se depreende de vários julgados: STF, no HC 126292/SP; nas ADC 43/DF e 44/DF; no HC 139612/MG, e no HC 118770/SP (e no STJ, por todos, a QO na APn 675/GO).

E do artigo 102, parágrafo 3º, da CF, que passou a ser escrito da seguinte forma: "No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros [e se for reconhecida a repercussão geral em processos penais, os prazos prescricionais penais poderão ser suspensos, tal qual a regra do artigo 53, parágrafo 5º, da mesma CF]", conforme decidiu o STF na QO no Recurso Extraordinário 966177/RS.

Na verdade, toda essa "insatisfação" com a "Academia de História do Direito", e com "entidades" que realizam práticas similares, seria afastada se os artigos 1º, parágrafo único, 2º, e 60, parágrafo 4º, da CF, fossem "reescritos" como "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de [Tribunais,] representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição"; "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário [mas este último controla e modera os demais]", e, "Não será objeto de deliberação [exceto se assim o decidirem os Tribunais] a proposta de emenda tendente a abolir...".

Após demostrar sua insatisfação com o estado de coisas da "Academia de História do Direito", prenhe de membros que trocam letras e palavras das fórmulas e (re)criam antigos cânones jurídicos de maneira arbitrária, nosso candidato ao céu dos juristas é conduzido ao local mais "sagrado" do Paraíso dos Conceitos Jurídicos, o "salão dos conceitos", em cujas alas laterais se situam, de um lado o "cerebrarium" e do outro o "gabinete anatômico patológico dos conceitos".

Ao receber a informação de que o guia o levaria até lá, ele logo se espanta: "Mas não vejo portas, como se ingressa no recinto?".A resposta não tardou; o guia lhe respondeu que não existiam portas por lá, e que quando eles querem ingressar nos recintos, batem com a cabeça na parede, fazendo com que ela ceda, abrindo caminho:

"Se em sua existência terrena houveste tido algum valor de ser imperturbavelmente consequente, se houveste sido convencido de que o caminho escolhido era o correto, e houvesse avançado sem vacilações, sem olhar para a esquerda e nem para a direita, sem se preocupar se havia pântanos ou precipícios, ou, para falar de maneira menos metafórica, sem se preocupar com as consequências práticas, então lhe custaria muito pouco atravessar esse muro com a cabeça para penetrar no local."

Dentro do "cerebrarium", após romper a parede com a cabeça, descobre que lá é fabricada a substância cerebral para os teóricos, sendo conduzido até a presença de dois cérebros de cera, que demonstrariam a diferença entre o cérebro dos teóricos e o cérebro dos práticos. No primeiro, nota-se uma protuberância específica, a "substantia medullaris", que é preenchida com a "mons idealis"; o processo se dá da seguinte maneira: no ambiente atmosférico a substância se volatiliza, permitindo que seja inoculada na mulher a quem se conferiu a graça de dar à luz a um jurista teórico. No momento da concepção, a mulher aspira a tal substância e, durante a gestação do feto, ela se da conta de que carrega algo especial no interior de seu ventre, com um futuro jurista teórico que já é agitado e impaciente.

A referida substância ("mons idealis") proporciona ao iluminado cérebro teórico as condições de "pensar idealmente", o que não deveria ser confundido com a capacidade de pensar de maneira abstrata, ou seja, fornece ao jurista especial a faculdade de se desligar (em seu pensamento jurídico) de todos os pressupostos práticos relacionados aos problemas, situando-o na altura do "idealismo filosófico", dentro do qual o mundo seria mera ilusão, uma fantasia do sujeito, e munido deste "poder criador", ele não encontraria obstáculo algum que freasse sua força intelectiva, algo que situa a jurisprudência como "a matemática do direito".

Embora a discussão se relacione à suposta diferença cerebral entre "teóricos" e "práticos", a modulação contemporânea de seu espírito crítico pode ser estabelecida de outra forma, através de distinta narrativa, já que o pano de fundo se encontra atrelado à suposta "iluminação de uns" em detrimento da pouca habilidade de outros: como o leitor percebe, podemos adaptar a narrativa para moldá-la à clivagem entre aqueles que dizem que o poder judiciário é iluminado, ou o "motor da história", e que a democracia não seria "adequadamente realizada" sem que um grupo de cidadãos não eleitos esteja na vanguarda (para "avanços" ou "retrocessos").

Se nos é tolerada a metáfora, isso é mais antigo do que andar pra frente. Mangabeira Unger, referido na coluna anterior na crítica elaborada por MacCormick, já fez menção ao chamado segundo segredinho sujo (dirty little secret) da teoria jurídica contemporânea, vislumbrado na criação incessante de limitações à regra da maioria, conducente às hipertrofias institucionais e de oposição às propostas de reforma concebidas para elevar o nível de engajamento político popular, pois seriam ameaçadoras ao sistema de direitos, traduzidas em um evidente e mal disfarçado "desconforto com a democracia"[ii].

Algo que já havia sido percebido pelas lentes de Alexis de Tocqueville, aquele que após visitar a nova democracia criada (os EUA, país no qual vige o "judge made law"), escreveu: "Se me perguntassem onde situo a aristocracia americana, responderia, sem hesitar, que não o faço entre os ricos, que não possuem nenhum laço comum que os assemelhe. A aristocracia americana está no banco dos advogados e na cadeira dos juízes", pois "encontramos, oculta no fundo da alma dos juristas, uma parte dos gostos e dos hábitos da aristocracia. Como ela, têm um instintivo pendor para a ordem, um amor natural pelas formas; assim como a aristocracia, conhecem um grande desgosto pelas ações da multidão e, secretamente, desprezam o governo do povo"[iii].

Convém observar, entretanto, com apoio na leitura da apresentação da mais recente tradução espanhola de "Scherz un Ernst in der Jurisprudenz" (e na qual se insere o texto "O Paraíso dos Conceitos Jurídicos), realizada pela professora María Rosa Ripollés Serrano, que Jhering apresenta um "evidente sentido estético, nesta obra que corre em paralelo à ironia, às vezes ao sarcasmo, obra em cuja posição perante a história da teoria jurídica demonstra uma significação equivalente a Flauta mágica, pois como aquela, sustenta-se sob uma espécie de 'divertimento', teses e princípios relevantes e, ainda, como a opera mozartiana, a originalidade, a alegria e a provocação de uma mente brilhante em contínua autoexploração"[iv].

Mais do que isso: haveria nesta última fase de Jhering uma fundamentação do direito quase hobbesiana, como também se encontram ecos desta percepção na tese de Weber sobre o Estado como entidade a quem se reserva o monopólio da violência legítima, mas se existem algumas breves convergências, é certo que também são apontadas situações em que a amplitude do pensamento de Jhering tenha sido utilizada por distintos pensadores que acabaram se nutrindo, algumas vezes contraditoriamente, das suas ideias, desde Adolfo Posada (Krausismo), ao chamado socialismo de cátedra, ou ainda, para quem tenha visto na concepção de Direito como "ideia-força", um pretexto para sustentar interpretações substancialistas, e mesmo de caráter bonapartista, ou em torno do "cesarismo social". Num outro extremo, a propósito, a presença de influência no seio das chamadas correntes da jurisprudência sociológica, e inclusive a percepção em Jhering de certos traços pré-estruturalistas, ou mesmo a sua consideração por parte do movimento do Direito Livre, ou na feliz síntese atribuída a Monereo, "todos os movimentos de reformismo jurídico do século XX acabam partindo de Jhering"[v].

Sem descurar, evidentemente, da percepção de que Jhering era um homem de seu tempo, admirador do papel de Bismarck na criação da Alemanha, e um cidadão que constata (atrás de uma peregrinação desde o "Espírito do povo" como justificador do Direito, até a realidade alemã da segunda metade do século XIX), que o Direito representaria a garantia das condições de existência da sociedade, assegurada pela força coativa do Estado, e que a motivação e a explicação do Direito residiriam no poder[vi].

Por isso, nada mais sarcástico do que supostos "reformistas jurídicos" serem observados criticamente com base no pensamento de quem possui evidente influência em tudo isso, e que precisa ser lido e debatido. Na próxima coluna, os desdobramentos da adaptação da clivagem entre os cérebros iluminados e os cérebros não iluminados, evidentemente a partir da narrativa de Jhering, n'O Paraíso, pois se nossa república começou com a prática comum de "(re)criar as fontes", num golpe de estado, ela prossegue hoje com os mesmos vícios de "(re)criação" num ambiente que se diz democrático: é a democracia da manipulação dos conceitos jurídicos. Continua.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


[i] Propositalmente trocamos a utilização dos originais e respectivas traduções para adaptar o trocadilho ao idioma português. Em inglês: "may roses enchanting fragrance" to "sailors enchanting fragrance"; espanhol: "suave fragancia de sus cabelos" en "suave fragancia de sus caballos"; italiano: "il sapor dolce di un bacio" in "[il sapor dolce di] un cacio"; alemão: "berauschenden Duft von "Mairosen" in den von "Matrosen". Fontes citadas no primeiro artigo desta série de colunas.

ii] UNGER, Roberto mangabeira. O Direito e o Futuro da Democracia. Trad. Caio Farah Rodrigues e Márcio Soares Grandchamp, com consultoria do autor. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 95.

[iii] TOCQUEVIE, Alexis de. A democracia na América [1835]. São Paulo: EDUSP, 1977, p. 203-206.

[iv] SERRANO, María Rosa Ripollés. Apresentação, em: JHERING, Rudolf Von. Jurisprudência en Broma y en Serio. Trad. Román Riaza. Madrid: Editorial Reus, 2015, p. 5-16.

[v] Idem.

[vi] Idem.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

O paraíso dos conceitos jurídicos do jurista alemão Rudolf von Jhering (parte 7)


  • 16

Na coluna anterior, ressaltamos que o Decreto 848/1890 realizou uma espécie de trashing (no sentido discutido ao final desta coluna) com relação à tradição jurídica brasileira, inserindo entre nós o common law como fonte subsidiária. A exposição de motivos desse decreto, dirigida ao "generalíssimo", e assinada por Campos Salles, então ministro da Justiça (e posteriormente presidente da República), é reveladora. Em termos de "funcionalidade", o sistema federal de Justiça deveria velar pelo "equilíbrio, regularidade e independência dos outros poderes", algo próximo ao poder moderador que o imperador Pedro II queria transferir para uma Corte Suprema, como aquela de Washington, mas com o "temperamento" da exposição de motivos: "República, segundo a máxima americana, deve ser o governo da lei" [criada pelo juiz?].

Ainda segundo a exposição de motivos, na estrutura judicial "inaugurada", fez referência ao modelo norte-americano de Corte Suprema, de juízes de circuito e juízes de distrito, mas não fez referência ao precedente, nem ao common law nem muito menos ao stare decisis, matérias estas, quando muito, implícitas na EDM, mas constantes do decreto quando inseriu o common law. Falou-se em separação e independência das "duas Justiças" (local e federal), e não de poderes, como hoje consta na Constituição Federal de 1988.

O Supremo Tribunal Federal, aliás, teve ocasião de apreciar o tema, quando em 1902 julgou a Apelação Cível 745, relatada pelo ministro Alberto Torres, reconhecendo que o common law seria, de fato, fonte subsidiária do direito pátrio. Discute-se muito pouco o resultado desse julgamento, no bojo do qual tentaram transformar o caso do "desembargador José Climaco v. União", no nosso similar de "Marbury v. Madson", com consequências que precisam ser analisadas à luz de nossa(s) matriz(es) normativa(s). Constam da "ementa" as seguintes assertivas e perguntas: "Quando o direito subsidiário tem força obrigatória; quando os julgados estrangeiros devem ser adotados como razão de decidir pelos tribunais brasileiros. Inteligência do art. 387, 2ª parte, do Decreto 848, de 1890. Em que momento fica constituído a favor do cidadão nomeado juiz federal o direito à vitaliciedade neste cargo? é da posse? do compromisso? da entrega e registro do título de nomeação? ou da nomeação? razão de ser da vitaliciedade inerente aos cargos da magistratura. Vitalício ou não o juiz federal nomeado, mas não empossado, é lícito ao Poder Executivo revogar o decreto de nomeação? Deve o presidente do Supremo Tribunal Federal, ciente do decreto de revogação, recusar ao nomeado a aceitação do compromisso e negar-lhe a posse do cargo?"1.

Trata-se de importantíssima decisão que merece análise, no mínimo, sob as angulações da Teoria e Filosofia do Direito, do Direito Constitucional, do Direito Administrativo, do Direito Civil e dos processos civil e penal, respectivamente, porque envolve a interpretação das fontes do Direito e da mecânica de nomeação de cargos de poder que utiliza elementos do Direito Civil (elementos da posse nos direitos reais: a posse no cargo como a posse do cargo?), aliado à possibilidade de se interpretar o precedente norte-americano do caso Marbury com obrigatório (ou não) no ordenamento brasileiro. De fato, o Supremo realizou um peculiar distinguishing para dizer que o caso Marbury não representava um "precedente" obrigatório para o caso, uma vez que o common law deveria ser aplicado "apenas" se não houvesse fonte do Direito Público nacional, mas ressalvou (!?) o caso Marbury:

"O direito subsidiário só tem força obrigatória para os Tribunais — a) em falta de lei nacional que, expressa ou implicitamente, resolva a questão — b) na matéria regulada por lei ou, quanto aos julgados americanos, nas matérias que forem objeto da common law ou da equity. Nas questões de direito Público Constitucional a jurisprudência americana não constitui direito subsidiário, o que, aparentemente estranhável, se explica entretanto pela natureza do nosso regímen, cujos preceitos estão todos expressos ou implicitamente contidos na Constituição escrita. Essa jurisprudência será, por conseguinte, apenas elemento doutrinário de interpretação das disposições da nossa lei fundamental análogas à americana.

Quanto à autoridade desse julgado, é de notar que a sentença proferida no caso Marbury v. Madson contém duas partes perfeitamente distintas: uma, a que lhe deu toda a celebridade, fazendo dela a pedra angular da teoria constitucional americana, aquela em que o seu eminente prolator John Marshall funda e desenvolve a doutrina da supremacia judiciária na aplicação da Constituição e das leis, pela competência reconhecida ao departamento judicial de decretar a nulidade dos atos dos outros poderes; e outra, que é a invocada, em que se firma a regra acerca do momento em que se constitui para o magistrado nomeado o direito às garantias legais"2.

Ou seja, o STF realizou uma "distinção" para dizer que o caso Marbury "deveria ser aplicado" e também que "não deveria ser aplicado": no primeiro caso, enquanto fonte do controle de constitucionalidade, e para estabelecer quando o Direito oriundo do common law e da equity deveria "valer", afastando o resultado do caso Marbury sobre os requisitos da posse de magistrado, observando-se, no entanto, que o Direito norte-americano deveria permanecer enquanto "elemento doutrinário de interpretação das disposições da nossa lei fundamental análogas à americana", vale dizer, um precedente à brasileira com ratio decidendi e stare decisis à brasileira, com base no critério constitucional brasileiro historicamente mais "r-o-b-u-s-t-o" (roto obstáculo brasileiro usual somado à técnica oculta): discricionariedade legislativa atécnica (transposição de ideias sem cautelas mínimas) + discricionariedade judicial (excesso, fronteira e arbitrariedade, na linguagem de Clarissa Tassinari e Danilo Lima3, além de "principal traço distintivo do positivismo", como observa Fábio Bragança Ferreira, que, analisando o pós-positivismo à brasileira sob as lentes da crítica hermenêutica do Direito, pontua: "O neoconstitucionalismo brasileiro 'aposta' boa parte das suas "fichas" no protagonismo judicial. Não por outra razão utilizamos a expressão "pós-positivismo à brasileira", que, cunhada por Lenio Streck, pretende designar posturas teóricas que colocam "o rótulo de novo em questões velhas, já bastante desgastadas"4). O controle de constitucionalidade brasileiro nasceu velho, mas já era algo "neoconstitucionalista".

Vale dizer, o Supremo disse que a parte "bonitinha" de Marbury valia, mas a parte opaca não se aplicava, mas deixava em aberto a possibilidade de valer em outra situação. Metade calabresa, metade portuguesa, ou, na oportuna observação de Lenio, de que nos valemos em outro contexto, metade pavão e metade urubu5. O artigo 386 do Decreto 848/1890 e a decisão na Apelação Cível 745 precisam ser vistos com as lentes da resposta de Neil MacCormick aos Critical Legal Studiesvi, que, por sua vez, permite vislumbrar alguns aspectos discutidos no "Paraíso dos Conceitos Jurídicos" de Jhering.

Neste momento, nos importa uma breve revisitação de importante texto de Neil MacCormick na resposta que ofereceu aos juristas integrantes do Critical Legal Studies (na variante norte-americana, especialmente os "espíritos iconoclastas de Mangabeira Unger e Mark Kelman"), em paralelo à crítica de Jhering sobre a "Academia de História do Direito", especialmente atentos à metáfora que descansa na frase: "Reconstrução depois da Desconstrução". Em seu ensaio educado, polido e crítico, combina o analítico com o normativo, expondo suas ideias sobre como os sistemas jurídicos devem ser compreendidos, e de como é desejável constituí-los e mantê-los, retrabalhando um ensaio anterior ("A Ética do Legalismo"). Parte-se da premissa de que o "legalismo" pode ser interpretado, em algum sentido, como uma virtude, e não como um vício, próximo (mas não coincidente) do sentido de Estado de Direito (Rule of Law).

Observa que a atividade iconoclasta (ou de trashing) realizada pelos membros do CLS se (re)voltaria contra acadêmicos famosos do Direito e seus escritos sobre a determinabilidade, coerência e inteligibilidade do direito. Onde a tradição localizaria coerência, o CLS detecta contradição. Quando se fala em solução para determinadas questões, baseando-se na determinabilidade, o CLS aponta indeterminação. Esta atividade de trashing seria alcançada através de uma análise desconstrutiva e reveladora de que em cada solução suposta haveria um "contraprincípio" que teria sido encoberto por um específico princípio privilegiado, no sentido de que o "contraprincípio" seria tão racional em termos decisórios quanto ao princípio efetivamente privilegiado.

Das quatro partes que compõem o ensaio crítico de MacCormick, nos importam as duas últimas: o que há de errado com o Critical Legal Studies e a defesa do ensino jurídico tradicional como uma espécie de "reconstrução racional". MacCormick aponta que discussões sobre a existência de um grau duvidoso de penumbra, atrativo do exercício de discricionariedade política para suas soluções, não seria particularmente algo novo, como querem fazer crer os integrantes do CLS, sendo, antes, algo comum no "moderno positivismo jurídico", e que alegações sobre ideologia e sua relação com a discricionariedade podem ser vistas desde o capítulo final da Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen.

Extremamente importante é a nota de rodapé 40 (e o contexto em que ela está inserida), quando assevera que o papel do ensino jurídico (na forma da doutrina ou dogmática) é inerente à reconstrução racional dos materiais jurídicos, algo que o autor confessa ser influenciado pelas ideias de Martin Golding (Kelsen and the Concept of "Legal System") sobre a interpretação da teoria da dogmática jurídica de Kelsen: "Assim como este ensaio brilhante e seminal pontua, a visão kelseniana sobre a natureza da ciência jurídica deve bastante para a concepção do positivismo lógico de ciência natural, e do papel do filósofo como produtor de uma reconstrução racional da ciência". Essa reconstrução racional seria tributária de um afazer hermenêutico, que envolve um aclaramento do papel da doutrina jurídica, mal compreendida pelos membros do CLS:

"O trabalho da dogmática jurídica às vezes é descartado como mera transcrição, como se o estudioso simplesmente agisse não mais do que alguém que compila o juiz ou o legislador. Mas isso é um completo mal-entendido. Para isso, o exercício da inteligência criativa e disciplinada para dominar os grandes corpos jurídicos sempre em mudança envolvidos, para compreendê-los todos juntos e para reconstruí-los completamente sistematizados e coerentes, articulados a partir de complexos e internos componentes articulados. As grandes obras da dogmática jurídica, começando com as Institutas de Gaius, estão entre as realizações mais elevadas da inteligência humana".

Nesse sentido, Campos Salles e Rui Barbosa realizaram um trashing em 1890, ao inserirem o common law entre nós como fonte subsidiária, e o Supremo, em 1902, se valeu deste elemento normativo para fazer uma interpretação da Constituição à luz daquele decreto, sem realizar o controle de constitucionalidade da própria fonte normativa, inserindo no ordenamento vontades arbitrárias e discricionárias (primeiro legislativa e atécnica, e, posteriormente judicial e arbitrária), como aquele habitante do paraíso dos conceitos jurídicos de Jhering, que reconstrói arbitrariamente as Institutas de Gaio. Desde o início, temos apostado na arbitrariedade e na discricionariedade. Continua.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).

1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Apelação Cível 745, relatada pelo ministro Alberto Torres, com a participação dos ministros Piza e Almeida, André Cavalcante e Américo Lobo (vencido), de 6 de agosto de 1902. Em: O Direito - Revista Mensal de Legislação, Doutrina e Jurisprudência; ano XXXIII - Jan.-Abr., 96º Vol., Rio de Janeiro: 1905, p. 462-488.
2 Idem, p. 473.
3 TASSIINARI, Clarissa; LIMA, Danilo. A Construção da Democracia no Brasil: a difícil relação entre direito e política. Revista Paradigma, a. XXI, v. 25, n. 2, p. 154-172, jul/dez. 2016.
4 BRAGANÇA FERREIRA, Fábio L. A possibilidade de superação da discricionariedade judicial (positivista) pelo abandono do livre convencimento no CPC/2015. Dissertação (Mestrado) - UniCEUB: Brasília, 2017, p. 72.
5 STRECK, Lenio. Contra as pós-verdades no Direito ConstitucionalConJur de 29/4/2017.
6 MACCORMICK, Neil. Reconstruction after Deconstruction: A Response to CLS. Oxford Journal of Legal Studies, v. 10, 1990.