Powered By Blogger

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Como se produz um jurista: o modelo japonês (parte 56)




1. O professor de Direito no Japão

Correm algumas lendas sobre o papel, a importância e a representação social do professor no Japão. Uma das que têm percorrido a internet nos últimos anos não é confirmada por japoneses, e duvido mesmo que seja confirmável. Ela diz que o professor é o único profissional que está liberado de se curvar perante o imperador. A razão disso teria sido enunciada pela sabedoria popular japonesa: "Em um país onde não há professores, não pode haver imperadores". Essa lenda, assim como outras, remonta ao período de reconstrução nacional no pós-guerra, quando havia poucos docentes (a maior parte deles alistou-se nas Forças Armadas Imperiais) e os alunos eram reunidos em amplos espaços abertos, às centenas, para assistir às aulas. Era mais do que necessário o exercício de uma autoridade superior para manter a disciplina de tantos jovens e crianças durante as aulas.

O Japão, de fato, dedicou imensos recursos para educar as gerações do pós-guerra e vencer o abismo histórico aberto pela destruição quase absoluta do país. Em certa medida, isso também ocorreu em Cingapura e na Coreia do Sul, com resultados igualmente positivos. Mais recentemente, a China também adotou essa política educacional de Estado, que combina um modelo rígido de educação, com forte meritocracia e sinais claros para os estudantes sobre as oportunidades de sucesso e os efeitos do fracasso em sua trajetória rumo ao topo do sistema universitário.

O professor universitário japonês é uma figura socialmente respeitada, mas não da forma idealizada como se costuma representar no Brasil, muita vez, de modo mistificador. O professor de Direito, em particular, é também uma pessoa dotada de prestígio social, mas, em termos comparativos ao que ocorre na Alemanha e em Portugal, está longe da influência ou da preeminência de seus homólogos nesses dois países.

A estrutura da carreira docente é muito semelhante a que se utiliza na Europa e no Brasil. A última posição é ocupada pelo professor titular. Abaixo dele está o professor associado. Em seguida, o professor adjunto e o professor assistente. De professor adjunto para cima, é necessário o doutoramento. A estabilidade (tenure) pode ser alcançada mesmo por professores assistentes. As posições correspondem a um número determinado de ocupantes, o que implica a necessidade de vacâncias dos cargos superiores para que haja mobilidade no sistema.

O professor de Direito japonês ministra as aulas no formato tradicional, embora desde 2004 tenha sido encorajada a adoção do modelo norte-americano, o que tem gerado duas reações muito nítidas. A pura e simples indiferença, conservando o professor os antigos padrões de ensino. Ou a tentativa de se implementar o novo sistema, algo que não tem sido alcançado sem maiores problemas.      

A remuneração do professor japonês é universal, independentemente do curso lecionado. Analisando-se a estrutura remuneratória referente à Universidade de Tóquio, o valor mais alto, retribuível ao professor titular, é 18,7 milhões de ienes (US$ 164.464 ou R$ 508.960), em final de carreira, considerando-se a remuneração anual.

O professor titular em início de carreira pode perceber 8,7 milhões de ienes (US$ 77.052 ou R$ 238.585). O valor médio é de 11,7 milhões de ienes (US$ 103.203 ou R$ 319.567). Todos esses valores são anuais. A média etária do professor titular, na mesma instituição, é de 56,2 anos, sendo importante destacar a existência de aposentadoria compulsória aos 65 anos de idade em diversas instituições públicas, aqui incluída a Universidade de Tóquio, o que passou a ocorrer desde o ano 2013.

O professor assistente, primeiro nível da carreira docente no Japão,  tem uma média etária alta para os padrões brasileiros — 40,2 anos. O valor máximo de sua remuneração anual é de 8,5 milhões de ienes (US$ 74.437 ou R$ 230.526). O valor em início de carreira é de 5,1 milhões de ienes (US$ 44.650 ou R$ 138.254) anuais. A média remuneratória é de 7,1 milhões de ienes (US$ 62.330 ou R$ 193.000), também anuais."

Todos os dados acima são de 2015 e foram extraídos do site do Ministério da Educação, Cultura, Esporte, Ciências e Tecnologia do Japão[1]

2. O aluno de Direito no Japão
Outro estereótipo que merece ser revisitado, ao menos no âmbito universitário, é o do aluno japonês como uma pessoa obcecada pelo estudo e dotada de uma disciplina férrea. Isso tem se alterado sensivelmente nas duas últimas décadas, especialmente após o processo de estagflação iniciado na segunda parte dos anos 1990 no Japão. O desinteresse pelo modelo de aulas é também perceptível entre os mais jovens e foi um dos motivos que provocou a reforma universitária de 2004.

O ingresso na faculdade de Direito depende do tipo de curso que se pretende fazer. Se for aquele de modelo tradicional, equiparável ao bacharelado brasileiro, o aluno submete-se a um exame nacional, que é comum a todos os que desejam entrar em uma graduação japonesa. Esse exame abrange matérias como língua japonesa, matemática, estudos sociais, ciências, inglês e outras matérias complementares. Aprovado nesse exame, o aluno terá de se submeter ao processo seletivo específico da faculdade que ele escolheu. Fará, portanto, um duplo exame, o geral e o particular. Quanto a este último, o conteúdo e o grau de exigência são variáveis, a depender do prestígio da escola ou do número de interessados naquele curso.

No modelo pós-2004, o interessado em ingressar na faculdade de Direito não precisa ter uma graduação jurídica. O novo tipo de escola oferece um curso muito parecido com o norte-americano, o que se pode equiparar a uma espécie de pós-graduação. Faz-se um exame nacional, mas com matérias diferentes, como pensamento lógico ou comunicação e expressão. Aprovado nesse primeiro exame, o candidato submeter-se-á a uma seleção específica na faculdade de sua escolha. Em geral, pede-se que o aluno faça uma entrevista e redija um texto, ou apresente um artigo. A aprovação depende do somatório das notas nos dois exames.

O aluno é obrigado a pagar matrícula e anuidade nos cursos de Direito. Nas faculdades que seguem o modelo pré-2004, a anuidade nas universidades públicas pode chegar a US$ 5,3 mil (equivalentes a R$ 16.351,00), e, nas universidades privadas, esse valor pode atingir US$ 8,2 mil ( correspondentes a R$ 25.297,00). 

Se o interessado deseja seguir o modelo pós-2004, ele poderá pagar até US$ 8 mil (correspondentes a R$ 24.680,00) por ano, em uma universidade pública. Em uma universidade particular, esses valores podem ir de US$ 5,5 mil (convertíveis em R$ 16.966,00) a US$ 17 mil (equivalentes a R$ 52.467,00).

3. Processo de formação e de avaliação do estudante de DireitoAs disciplinas tradicionais no Brasil (e na Europa) equivalem às mais importantes no Japão, o que se explica pela valorização do modelo alemão de estudo por códigos. No Japão, encontram-se manuais famosos como os de Direito Civil, elaborados por Wagatsuma Sakae (我妻栄) e Uchida Takashi (内田貴), de Direito Romano, de autoria de Harada Keikichi (原田慶吉), de Direito Constitucional, escrito por Ashibe Nobuyoshi (芦部信喜) e Higuchi Yoichi (樋口陽一), e de Direito Penal, ao estilo dos que escreveram Yamaguchi Atsushi (山口厚) e Ida Makoto (井田良)

Com o sistema pós-2004, tem-se buscado adaptar esse modo de ensino ao estilo de cases dos Estados Unidos, o que não se tem revelado simples.

O Direito Romano é ainda muito importante em várias faculdades japonesas. Os estudos de Teoria do Direito são também destacados em alguns centros. A influência de Hans Kelsen, cuja obra foi traduzida para o japonês ainda na primeira metade do século XX, é também sensível, bem como de autores alemães como Larenz, Savigny e Wezel.

Os alunos, no sistema tradicional pré-2004, são avaliados periodicamente por meio de provas escritas. Eventualmente, são computados pontos pela participação em sala de aula ou pelo comparecimento às disciplinas.

4. O egresso e os exames profissionais
O aluno egresso de uma faculdade de Direito precisa submeter-se a um exame jurídico nacional para exercer a advocacia, cujo ingresso também depende de sua inscrição em uma seccional da Ordem dos Advogados japonesa.

Para as carreiras da magistratura e do Ministério Público, o egresso tem de se submeter a um exame jurídico nacional, obter excelentes notas e posteriormente submeter-se a um exame de Estado após um período de treinamento para esses cargos.

5. Pós-graduação em Direito
O Japão também possui cursos de mestrado (dois anos de duração, em média) e de doutorado em Direito (de dois a três anos). O mestrado é objeto de interesse de quem deseja seguir a carreira acadêmica, magistrados e outros servidores públicos. O doutorado, que é bem mais restrito, tem sido procurado por pessoas com maior interesse na carreira docente. O sistema também prevê a defesa de teses e dissertações para a obtenção desses títulos.

6. Conclusões parciais
Como visto na última coluna, o Japão está em um processo conflituoso de transição entre dois modelos — o alemão e o norte-americano, embora o primeiro deles subsista amplamente em várias faculdades. A profissão docente é respeitada, mas não apresenta sinais de preeminência social como na Alemanha ou em Portugal. Os níveis remuneratórios da docência universitária são padronizados, e a renda do professor é relativamente alta.

Um ministro da Corte Suprema do Japão ganha 20.184.000,00 ienes anuais (equivalentes a US$ 178.567,00 ou a R$ 550.775,00), valor ligeiramente superior aos 18,7 milhões de ienes que recebe o professor titular em final de carreira. O  presidente da Corte recebe 27.648.000,00 ienes (US$ 244.601,00 ou R$ 755.025,00), conforme dados da Agência Nacional de Recursos Humanos do Japão.

As transformações sociais e geracionais também chegaram ao país do sol nascente. Muito da reverência e do tratamento respeitoso que o professor japonês recebe não são propriamente um exemplo de diferenciação específica pela condição de docente, e sim um tratamento compatível com a cultura do povo japonês.

Na próxima semana, estudaremos o ranking das faculdades e as profissões de Estado.

***  

Esta coluna não poderia ter sido escrita sem o auxílio de Luís Felipe Rasmuss de Almeida, meu ex-aluno e atual monitor de minhas disciplinas de Direito Civil na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Estudioso da cultura e do idioma japonês, tendo feito curso de verão naquele país em 2016, Luís Felipe Rasmuss é a prova de que permanece viva a tradição nipônica nas Arcadas, tão bem representada pelo venerável professor doutor Masato Ninomiya, colega de docência na Universidade de São Paulo, e o maior pesquisador de Direito brasileiro e japonês da contemporaneidade, a quem também deixo minhas homenagens por tantos anos de dedicação às relações e às tradições jurídicas nipo-brasileiras. 


[1] Disponível em:  http://www.mext.go.jp/b_menu/houdou/28/06/attach/1373620.htm. Acesso em 21/2/2017.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O paraíso dos conceitos jurídicos do jurista alemão Rudolf von Jhering (parte 2)



Dando continuidade a esta discussão iniciada na coluna anterior, sobre o "Paraíso dos Conceitos Jurídicos", é preciso fazer as referências e citar as fontes consultadas (como deve ocorrer nas garrafas de água mineral) com finalidade de adensamento das reflexões. É igualmente necessário situar o referido texto de Jhering em um momento histórico anterior ao "giro lingüístico-ontológico", também para fazermos coro às constantes críticas sobre importantes e atuais problemas do direito pátrio:

"uma hermenêutica jurídica que se pretenda crítica, hoje, fundamentada nesse giro linguístico-ontológico, deve procurar corrigir o equívoco das diversas teorias da interpretação, que, embora reconheçam que o direito se caracteriza por um processo de aplicação a casos particulares (concretude), permanecem reféns da metafísica, ao elaborarem um processo de subsunção a partir de conceitualizações (veja-se o paradigmático caso das súmulas vinculantes no Brasil), que se transformam em "significantesprimordiais-fundantes" ou "universais jurídicos" , "acopláveis" a um determinado 'caso jurídico'".[1]

O caminho sinuoso percorrido pelo nosso ordenamento jurídico, entre tantas rupturas político-institucionais e projetos particularistas ao longo dos séculos XX (e primeiro quarto do século XXI), tornam relevantes e atuais, para nós outros, tanto as reflexões de Jhering contra certo fetiche conceitualista, como também aquilo que Ortega y Gasset refletiu quando discorreu sobre uma "Espanha Invertebrada"[2], que na imagem atual poderia nos levar a falar sobre uma espécie de "direito invertebrado", potencializador dos problemas denunciados por juristas críticos.

Ao mencionar a expressão "giro palingenésico"[3], com a qual finalizamos o texto anterior, Pierluigi Chiassoni, jusfilósofo do Instituto Tarello para a Filosofia do Direito (Università Degli Studi di Genova) discorre sobre as dificuldades de se tratar do positivismo jurídico em razão de uma alegada "renovação interior", pela qual alguns dos positivistas contemporâneos viriam atribuindo uma novidadeira – mas ao mesmo tempo, em sua opinião, equivocada - jurisprudência essencialista. Ao fim e ao cabo, simplificações resolutivas "(re)nascem" no coração do mesmo tipo de giro, se com isso estiver em jogo a aplicação do direito.

Aliás, convém recordar que Chiassoni[4] ressalta o fato de que a teoria dos conceitos de Hart é caracterizada por três ideias que constituem sua espinha dorsal, dentre elas, a propósito, uma notável influência a partir dos escritos de Jhering. Primeiro, os conceitos seriam tanto uma questão de convenção, quanto de estipulação, não havendo, em sua percepção, nenhum conceito verdadeiro fora do reino dos usos ordinários das palavras. Para ele não teríamos conceitos verdadeiros em alguma "dimensão rarefeita de essências reais", tal qual asseveraram conceitualistas jurídicos como o primeiro Jhering (embora o segundo Jhering seja um crítico mordaz desta concepção). Em segundo lugar, os conceitos estipulativos não seriam nem verdadeiros, nem falsos, mas apenas sujeitos à justificação pragmática, e seu valor, se houvesse algum, dependeria da(s) finalidade(s) a que ele(s) deveriam servir, e de como eles foram elaborados em vista desses objetivos (mais próximo do segundo Jhering, e de suas observações no "Paraíso dos Conceitos Jurídicos"). Terceiro, os conceitos teóricos, como os elaborados pela teoria jurídica, seriam conceitos estipulados, informados por um objetivo explicativo geral.

A pretensão de que os conceitos jurídicos resolvessem (ou resolvam) todos os problemas, como observamos na crítica realizada "no Paraíso de Jhering", é similar (em algum sentido, e guardadas peculiaridades) ao fenômeno do panprincipiologismo (matrixprincipiologismo[5]). É possível apostar que se Jhering estivesse refletindo hodiernamente sobre os temas e problemas atuais, ele possivelmente discorreria sobre um "Paraíso dos Princípios Jurídicos", nos levando a rememorar as críticas realizadas por Lenio Luiz Streck, Nelson Nery Jr., Georges Abboud, Otavio Luiz Rodrigues Junior, e alguns outros (destacando-se, ainda, a entrevista relativamente recente dos professores Reinhard Zimmermann e Jan Peter Schmidt[6], que também tocam no tema do abuso dos princípios). Cada jurista luta a batalha de seu próprio tempo, e a pólvora é comum ao uso das antigas balas de canhão e aos modernos rifles de assalto.

E isto porque uma vasta gama de "princípios", "nanoprincípios", "superprincípios", "hiperprincípios", "megaprincípios", "macroprincípios", "microprincípios", "metaprincípios", "lumpemprincípios", "teleprincípios", "rádioprincípios", "endoprincípios", "exoprincípios", "intraprincípios", "extraprincípios", são criados, urdidos e utilizados com as características da ubiquidade e da "absoluta relatividade" a bel prazer do "interpretativista pan-matrix-principiológico", além de conceituados de maneira "ad hoc", sendo patente o elo conectivo com as críticas de Jhering.

Também por isso são atuais as construções críticas e sarcásticas que Jhering elaborou sobre a "essencialidade dos conceitos", bem como sua narrativa sobre as máquinas e engrenagens que recaem sobre eles nas descrições sobre "o pau de sebo dos problemas jurídicos", a "máquina de partir cabelos", a "máquina da ficção", a "máquina de construir", a "máquina de conciliar passagens contraditórias", a "furadeira dialética", e o "muro da vertigem". Tais aparatos da tecnologia jurídica dos conceitos (re)caem como uma luva nas viragens "pan-e-matrix-principiológicas" de nossos dias, e desvelam a caixa de ferramentas forjada com um cerne comum, partilhando com elas o DNA de sua medula óssea, embora o pragmatismo levado ao limite seja um dos problemas centrais (e o outro lado da moeda).

Renovadamente, influenciados por Jhering, falaríamos então sobre "o pau de sebo dos princípios jurídicos", a "máquina de partir princípios", a "máquina da 'principiologização'", a "máquina de construir princípios", a "máquina de conciliar princípios contraditórios", a "furadeira dialético-principiológica", e o "muro principiológico da vertigem". Falemos sobre seus ancestrais, mas de olho em sua evolução para os novos modelos da "tecnologia" jurídica, sob as luz, sombras e pegadas presentes no "Paraíso dos Conceitos Jurídicos". Retornemos, pois, para a descrição do Paraíso de Jhering.

Continuidade "n'O Paraíso"

Logo após receber uma explicação sobre a essencialidade dos conceitos, e ser informado sobre a clivagem celestial entre "o céu dos teóricos" e o "céu dos práticos", e depois de ter tido o seu tíquete de ingresso conferido, e as pertinentes explicações sobre eles, o visitante do paraíso é conduzido a um local chamado palaestra (um ginásio de exercícios para os espíritos caídos que crescem cansados de olhar para os conceitos, devendo ir ao ginásio para uma devida e necessária recreação).

Lá chegando, o visitante se depara com uma curiosa engenhoca, chamada de "máquina de partir cabelos", e sua finalidade seria servir para a realização um dos testes de ingresso no "paraíso dos teóricos". Lá o candidato deverá partir um fio de cabelo em 999.999 partes, exatamente iguais. Explica-se ao candidato que inicialmente ele receberá um cabelo que pode ser visto a olho nu, mas os cabelos vão se tornando cada vez mais finos até que o candidato necessite de um par de óculos especiais para poder vê-los, mas o candidato se acostumaria a fazer a prática sem eles.

Informam-lhe que existem pessoas no local que conseguem partir uma daquelas pequenas partes em outras 999.999 partes exatamente iguais, e que aquele que se sair melhor receberá uma coroa como forma de premiação: um tipo de láurea de grinaldas feita de cabelos partidos, e o vencedor manterá a coroa até que alguém o supere, mas a tarefa seria inglória, uma vez que também é informado de que por lá eles não param de ter cabelos partidos.

Próximo de lá também se vislumbra outra "engenhoca", chamada de "pau de sebo de problemas jurídicos difíceis", uma estrutura ereta, extremamente escorregadia. Os candidatos possuem 3 tentativas para chegar ao topo, e se não conseguirem, terão falhado no teste. A descrição nos dá conta de que a barra possui 3 topos, e que durante o exame, o candidato precisará subir o primeiro deles para alcançar um dos problemas, e então terá de descer. Os outros dois topos podem apenas ser alcançados por aqueles que tenham completado a subida. É algo crescente, e os problemas só fazem aumentar em cada um deles, e apenas uma pessoa teria conseguido alcançar o topo mais alto, mas esse candidato encontrou muitas dificuldades para levar o problema de volta ao topo. Tal informação deixa o visitante estupefato, pois ele logo quis saber por qual motivo no mundo alguém, em sã consciência e depois de tantas dificuldades para trazer os problemas para baixo, os colocaria novamente no mesmo lugar.

Então o visitante é censurado: "que pergunta mais tola", dizem a ele. E isto porque toda a diversão iria acabar se não houvesse problemas a serem alcançados, pois os problemas só estão lá em cima para mero estímulo da subida, e não para serem resolvidos, vale dizer, se não houvesse mais problemas, seria difícil estimular as pessoas a se sentirem tentadas a subir no "pau de sebo dos problemas jurídicos", razão pela qual todos os problemas deveriam ser recolocados lá no topo novamente.

O visitante se recorda de algo familiar. Ele explica ao interlocutor que os problemas do "pau de sebo dos problemas jurídicos" seriam similares à anedota sobre as "três lebres", com as quais era familiarizado quando era professor na terra. As três lebres eram as únicas no clube de caçadas na região, e eram conhecidas individualmente por aqueles que adoravam caçar, e por isso existia um acordo tácito entre os caçadores, consistente em atirar e caçá-las, mas sem as atingirem, pois os caçadores pretendiam preservar a diversão. Mas aconteceu de certa vez um deles atingir uma das lebres, tendo que se desculpar veementemente, alegando que havia acertado por engano. Entretanto, o fato provocou indignação geral, eis que as lebres só estavam lá para serem caçadas, mas não para serem atingidas.

Eis duas das máquinas presentes no "Paraíso dos Conceitos Jurídicos". A maneira caricatural pela qual tais imagens são retratadas, a partir da pena de Jhering, precisam ser profunda (e renovadamente) refletidas em nossos dias, e a moeda da reflexão é também, e a um só tempo, o troco que pegamos pela breve recordação, mas que não pagam nem o valor e nem das demais máquinas a (re)construção e a diversão. Retomaremos as demais máquinas na próxima parte da série de colunas. Continua.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


[1] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e Possibilidades Críticas do Direito: Ensaio Sobre a Cegueira Positivista. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 52, p. 127-162, jan./jun. 2008, p. 137.
[2] ORTEGA Y GASSET, José.  España Invertebrada: Bosquejo de algunos pensamientos históricos. Madrid: Calpe, 1922.
[3] CHIASSONI, Pierluigi. El discreto placer del positivismo jurídico. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2016, p. 47.
[4] CHIASSONI, Pierluigi. The Simple and Sweet Virtues of Analysis. A Plea for Hart's Metaphilosophy of Law. Anuário de Filosofia y Teoria del Derecho, v. 5, 2011, p. 63.[5] STRECK, Lenio Luiz. Senso Incomum: Juiz brasileiro é do tipo "prefiro não fazer"? Eu não acredito! Conjur de 29 de maio de 2014, disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-mai-29/juiz-brasileiro-tipo-prefiro-nao-eu-nao-acredito>, acesso em 08.02.2017.
[6] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; RODAS, Sergio. Entrevista com Reinhard Zimmermann e Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. N. 2. v. 4. p. 379-413. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2015.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

STJ espanhol muda regras e pode rejeitar argumentações "muito extensas"

A Sala Civil do Tribunal Supremo da Espanha mudou as regras de admissão para os recursos de cassação e recursos extraordinários por infração processual. Entre os requisitos, a concisão: "Uma argumentação excessiva poderá ser considerada desnecessária e, como consequência, pode resultar na inadmissão do recurso", diz a nota informativa do tribunal, divulgada na terça-feira (14/2).

O tribunal recomenda que os recursos tenham redação clara e não ultrapassem 25 páginas, com letra em fonte Times New Roman, tamanho 12, com espaçamento 1,5. Notas de rodapé e transcrições literais de mais de um parágrafo devem ter tamanho 10, também em Times New Roman.

Um dos critérios que atraem a competência do Tribunal Superior para recursos de cassação é o valor da causa. No informe, ficou definido o valor mínimo de 600 mil euros. E cabe ao recorrente, nesses casos, explicar que recorre por causa do valor, e não da tese. Os demais recursos de cassação só podem ser admitidos se a decisão recorrida conflitar claramente com jurisprudência do tribunal ou for demonstrada divergências de entendimentos dos tribunais superiores (cortes de jurisdição regional semelhantes aos TRFs brasileiros).

O Tribunal Supremo da Espanha é semelhante ao Superior Tribunal de Justiça brasileiro. Tem jurisdição em todo o território do país e julga matérias cíveis, penais, de contencioso administrativo e de repercussão social. As competências são divulgadas em cinco salas: a Primeira é cível; a Segunda, penal; a Terceira, administrativa; a Quarta, social; e a Quinta, militar.

A corte não julga questões ligadas a direitos e garantias constitucionais, matéria reservada ao Tribunal Constitucional da Espanha.

Como se produz um jurista? O modelo japonês (parte 55)

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

1. Formação jurídica japonesa: Da Prússia a Nova York?
Em um comentário recorrente sobre os japoneses, diz-se que eles são os "alemães da Ásia", a significar que compartilham de alguns traços culturais "típicos" dos germânicos, como a organização, a disciplina e o senso de hierarquia. Abstraindo-se de explicações estruturalistas, que identificam um "caráter nacional" dos povos, algo em relação a que se deve guardar muitas reservas, talvez uma das razões dessa associação entre japoneses e alemães esteja na prussificação do país levada a efeito pela dinastia Meiji no final do século XIX e que se estendeu até meados do século XX.

Um dos exemplos mais flagrantes da adoção de modelos prussianos no Japão está no Exército Imperial, remodelado inteiramente após a Restauração Meiji. No entanto, esse não é mais um modelo válido, na medida em que, após a derrota japonesa para os aliados na Segunda Guerra Mundial, as estruturas militares foram transformadas radicalmente. Não há mais Forças Armadas, e sim Forças de Autodefesa. Os arquétipos prussianos foram substituídos pelos norte-americanos. Remanesce, porém, um campo no qual a influência alemã é ainda hoje presente, a despeito de modificações implementadas na última década, que é o Direito e a formação dos juristas.

O Japão, até a reforma de 2004, era um verdadeiro parque temático da educação jurídica germânica transplantada para a Ásia. Após a mudança legislativa de 2004, esse modelo não é mais monolítico e passou a conviver com estruturas tipicamente norte-americanas. Pode-se dizer que o Japão experimenta hoje uma complexa e difícil transição entre Berlim e Nova York.

2. A evolução do modelo japonês (ou raízes de uma reforma malsucedida?)
Qual o espaço do Direito, da Justiça, dos aparatos judiciários e dos advogados em uma nação marcada por índices reduzidos de criminalidade, baixa litigiosidade privada e um senso de dever individual arraigado? A resposta parece ser óbvia. Esse "problema" — se é que se pode assim qualificá-lo — foi devidamente registrado em uma curiosa matéria no The Wall Street Journal, edição de 3 de abril de 2016, cujo título é autoexplicativo: "Japanese lawyers' problem: too few cases" (O problema dos advogados japoneses: tão poucos casos)[1].  

É interessante explicar essa situação de um modo retrospectivo.

Até 1945, a formação jurídica japonesa era estritamente baseada no modelo alemão, com a instituição de exames de admissão para a advocacia e para as carreiras da magistratura (juízes e promotores). No pós-guerra, unificaram-se os exames profissionais e democratizou-se o acesso ao ensino superior. No ano 2000, havia 93 faculdades de Direito e 45 mil estudantes a cada ano nos cursos jurídicos[2].

A graduação em Direito durava quatro anos e, à semelhança do ensino alemão, a matriz curricular era primordialmente voltada para o estudo da Constituição, dos códigos Civil, Penal, Comercial, de Processo Civil e de Processo Penal. A estrutura das aulas era magistral. As aulas eram voltadas para os códigos e o estudo de doutrina. Havia uma nítida distinção entre formação teórica e formação prática, sendo que esta última não era objetivo da faculdade. O egresso então aprovado no Exame de Ordem (Shihou shiken) ou no Exame de Estado para ingressar na magistratura tinha acesso a um período de instrução prático-profissional[3].

O sistema pré-reforma de 2004 era considerado restritivo ao acesso às carreiras jurídicas: nos anos 1990, o número de aprovados no Exame de Ordem era limitado a 500 por ano, com um índice de 3% de aprovação, considerado o universo de candidatos. Com isso, um número considerável dos formados em Direito encontrava ocupação no serviço público ou como empregado de companhias privadas[4].

Como resultado desse tipo de formação e de recrutamento profissional, o número de advogados no Japão era incrivelmente baixo, especialmente se comparado ao de outros países: a) 13.800 (1990); b) 15.108 (1995); c) 21.185 (2005). A comparação torna esses números ainda mais eloquentes. No ano de 1997, tinha-se a seguinte distribuição de advogados por país: a) Japão (20 mil); b) Estados Unidos (941 mil); c) Reino Unido (83 mil); d) Alemanha (111 mil); e) França (36 mil)[5].  

Esse quadro levou a que a reforma do ensino jurídico japonês avançasse, com apoio de professores e magistrados, o que se materializou em 2004. Com o novo modelo, adotou-se a alternativa de um curso jurídico pós-graduado de três anos, conforme o equivalente norte-americano, com uso do método socrático em pequenas turmas. Um novo Exame de Ordem seria instituído a partir de 2010, com maior facilidade de aprovação. Paralelamente, manter-se-ia a matriz curricular atual de graduação[6].

Passados 10 anos dessas mudanças, a reforma radical do modelo japonês apresentou mais externalidades negativas do que imaginaram seus idealizadores. Não deixa de ser interessante comparar os resultados pouco eficazes de uma mudança dessas proporções na estrutura da formação jurídica de um país com as ideias que comumente se divulgam no Brasil sobre a "crise do ensino jurídico", o abandono dos métodos tradicionais e a superação do modelo atual, muitas delas sem apoio em base empírica ou qualquer parâmetro objetivo de impacto regulatório.

Os números sugerem fortemente a falta de sucesso da reforma, ao menos em relação aos objetivos que ela almejava atingir, segundo dados de 2015: a) havia 36.415 advogados no Japão, mais do que o dobro dos existentes em 2001; b) 78% dos advogados atuam em escritórios com menos de 10 integrantes. Não ocorreu uma mudança no caráter artesanal e liberal da profissão de advogado no Japão; c) apenas 9 firmas de advocacia empregam mais de 100 advogados no Japão; d) os serviços jurídicos privados correspondem a 0,1% do Produto Interno Bruto (PIB) japonês, equivalentes a US$ 5 bilhões. Em comparação, esses serviços nos Estados Unidos chegam a US$ 221 bilhões, um percentual de 1,27% do PIB; e) no âmbito cível, de 2004 a 2014, houve um crescimento de 2,5% na litigância cível nos juízos de primeiro grau; f) houve uma queda acentuada no número de ingressantes nas faculdades de Direito japonesas na última década[7]; g) houve uma queda na renda média anual dos advogados japoneses, entre 2006 e 2014, de 17,5 milhões de ienes (US$ 153.751,50 ou R$ 476.525) para 9 milhões de ienes (US$ 79.072,90 ou R$ 245.070). Em razão disso, muito escritórios fecharam, com profissionais deixando a advocacia[8].

As faculdades que se converteram ao novo modelo têm encontrado enorme dificuldade de se adaptar ao método socrático importado dos Estados Unidos. As turmas com poucos alunos são apenas uma parcela visível desse problema. Há ainda a dificuldade de se ensinar aos alunos, especialmente do primeiro ano, com base no método norte-americano quando eles não possuem base prévia de conhecimentos jurídicos. Some-se a isso a dificuldade de compatibilização desse modelo de ensino com uma cultura jurídica fortemente influenciada pela tradição de civil law[9].  

Muitas das faculdades de Direito terminaram por recuar na adoção do novo modelo e se mantiveram ou retornaram ao modelo pré-2004. O modelo tradicional continua prevalente no Japão. Outro aspecto que causou desconforto foi a perda de centralidade das faculdades de Direito, pois o aluno pode ser graduado em outros cursos e só fazer um curso "pós-graduado", como se dá nos Estados Unidos. Muitos professores que apoiaram a reforma hoje não a defenderiam se pudessem voltar no tempo. Quanto aos estudantes, há um número expressivo que considera o modelo antigo pouco interessante e antiquado. O câmbio no sistema também implicou uma guinada no modo como o conteúdo jurídico é transmitido. O novo modelo é considerado mais tecnicista e pragmático.

3. Número de faculdades de Direito no Japão
Após a reforma de 2004, segundo o questionário que se formulou a Takashi Kojiro, atualmente há 42 faculdades de Direito públicas e 77 instituições particulares no Japão, as quais seguem o modelo clássico de ensino jurídico. Ao passo em que se têm 18 instituições públicas e 24 faculdades privadas seguindo o modelo pós-2004.

As faculdades japonesas experimentam hoje uma crise sem precedentes. O número de interessados em ingressar em cursos jurídicos no Japão caiu de 72.800, no ano de 2004, para 11.450 candidatos, no ano de 2014, conforme pesquisa desenvolvida por Masahiro Tanaka, da Universidade de Tsukuba[10].

***

Não se pode declarar o fracasso da reforma educacional japonesa. É cedo para afirmá-lo peremptoriamente. Se comparados seus efeitos com os objetivos da reforma, poder-se-ia defender, exclusivamente quanto a esse ponto, o insucesso do novo modelo. Independentemente de um juízo favorável ou desfavorável ao novo modelo, devem-se pôr luzes sobre outros aspectos, esses sim muito mais aderentes à realidade brasileira e ao nível de discussão aqui existente.

Primeiramente, a reforma japonesa é um bom exemplo de como o debate sobre a educação jurídica pode ser capturado por jogos de palavras, belos discursos, lugares-comuns e a falta de impacto regulatório. Ensino participativo, novos métodos, ataques ao formalismo ou à aula magistral integram um jargão comum e quase sacrossanto quando esse tema é publicamente discutido. O problema é que não há base empírica para se avaliar o sucesso dessas teses quando aplicadas à realidade em um país de tradição de civil law. Tais experimentações localizadas são muito bem-vindas como formas de se demonstrar a validade de certas teorias educacionais. Quando elas se transformam em regra geral, o risco de efeitos colaterais como os encontrados no Japão se enormes.

Em segundo lugar, é notável a contradição entre discursos de "humanização" da educação jurídica e novos métodos de ensino-aprendizagem. Abstraindo-se o que signifique realmente a "humanização", veja-se que a reforma japonesa deu-se em nome de um maior tecnicismo e de uma maior preocupação com a "prática" na formação dos alunos. Finalmente, a questão do impacto regulatório e de bases estatísticas para se proceder a reformas no ensino jurídico deveria ocupar a centralidade em qualquer estudo governamental sobre o tema. Não há séries históricas de dados, não se encontram estudos rigorosos de impacto regulatório, bem como inexistem estudos comparatísticos prévios a tais mudanças.


[1] Disponível em: https://www.wsj.com/articles/japanese-lawyers-problem-too-few-cases-1459671069. Acesso em 14/2/2017.
[2] MATSUI, Shigenori. Turbulence ahead: The future of Law Schools in Japan. Journal of Legal Education, v.62, n.3, p.3-31, 2012. p.4.
[3] MATSUI, Shigenori. Op. cit. p.4.
[4] MATSUI, Shigenori. Op. cit. p.5.
[5] MATSUI, Shigenori. Op. cit. p.6.
[6] MATSUI, Shigenori. Op. cit. p.11.
[7] Disponível em: http://blogs.wsj.com/briefly/2016/04/03/the-legal-industry-in-japan-the-numbers/. Acesso em 14/2/2017.
[8] Disponível em: https://www.wsj.com/articles/japanese-lawyers-problem-too-few-cases-1459671069. Acesso em 14/2/2017.
[9] MATSUI, Shigenori. Op. cit. p.20-21.
[10] TANAKA, Masahiro. Japanese law schools in crisis: A study on the employability of law school graduates. Asian Journal of Legal Education, v.3, n.1, p.38-54, 2016. p.38-40.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Como se produz um jurista? O modelo japonês (parte 54)

 1. A ilha do sol nascente
Quando Portugal iniciou seu século de ouro em meados do século XV, com as grandes navegações, a Índia e o extremo Oriente foram atingidos por uma tempestade. Nada mais foi igual para milhões de habitantes daqueles territórios longínquos e que negociavam com o Ocidente por intermédios dos chineses e dos otomanos. O acesso direto à Rota das Índias trouxe para os portugueses uma riqueza imensa, que, como Luís Vaz de Camões advertira n'Os Lusíadas, pela boca do velho do Restelo, traria a decadência e a corrupção, o que realmente ocorreu no final do século XVI e início do século XVII. Na sequência dos portugueses e de seus intrépidos navegadores, como Vasco da Gama, Fernão de Magalhães e Bartolomeu Dias, os espanhóis e os holandeses também se interessaram pela conquista do Oriente, disputando com os pioneiros lusitanos aqueles territórios fantásticos.

Para além da Índia, a grande conquista dos portugueses, que viria a ser dividida ou perdida para holandeses, franceses e ingleses nos séculos seguintes, havia arquipélagos de maior ou menor extensão. Ceilão (hoje Sri Lanka), Formosa, Java (depois a sede da Índias Orientais Holandesas), Cingapura e outras ilhas tornaram-se objeto de conquista, navegação e comércio naqueles anos de "descoberta" da Ásia. Um desses arquipélagos, o mais extremo de todos, é denominado de Nippon-koku, ou terra do sol nascente.

Os primeiros europeus a aportarem nas ilhas de Nippon-koku foram os portugueses, com seus marujos e padres. Não é sem causa que, ao menos na maior parte dos idiomas ocidentais, a palavra designativa desse arquipélago é derivada da transliteração feita por jesuítas portugueses, Japão. O ano de 1543 foi um marco na história japonesa, pois foi quando se deu o primeiro contato com europeus, dois náufragos portugueses na costa de Tanegashima, no sul do país. Um senhor feudal adquiriu dois mosquetões trazidos pelos marinheiros e conseguiu reproduzi-los em oficinas de armeiros locais. Em um prenúncio muito curioso do que ocorreria na segunda metade do século XX com os produtos eletrônicos ocidentais no Japão, essa apropriação de tecnologia alterou, em 50 anos, o curso da história japonesa. As armas de fogo alteraram o equilíbrio de forças e o modo de fazer a guerra nas ilhas[1].

Além do fogo, os ocidentais, em particular uma ordem missionária multinacional fundada por um nobre e militar espanhol (Ignacio de Loyola), trouxeram a cruz para o Japão do século XVI. Os soldados de Cristo, como se tornaram conhecidos em todo o mundo os membros da Companhia de Jesus, discípulos de Ignacio de Loyola, posteriormente canonizado como Santo Inácio de Loiola, engajaram-se em uma campanha de conversão dos japoneses. Os métodos empregados na América luso-espanhola foram reproduzidos com sucesso no Japão: aprendizado da língua local, publicação de léxicos e dicionários, foco no ensino de crianças, uso da música e da pintura para evangelizar, aproximação das elites, disciplina e coragem ante as ameaças de perseguição. Ao lado dos jesuítas estavam os comerciantes, que desenvolveram um fluxo lucrativo de trocas com os japoneses, mas sem necessidade de entrepostos militares como se deu nas outras ilhas da Ásia.

Em 1549, Francisco Xavier, um dos fundadores da Companhia de Jesus, aristocrata navarro que se tornou um soldado de Cristo, chegou ao Japão. Ele aprendeu o idioma local, adotou os costumes alimentares, a etiqueta de saudação e de reverência japoneses e se tornou uma pessoa respeitada nas ilhas, tendo liderado a fundação das primeiras igrejas no país. Seu trabalho foi tão frutífero quanto perigoso para os propósitos católicos. A rapidez da propagação dos Evangelhos, que conquistou os pobres e parte da pequena nobreza, incomodou a alta aristocracia e deu início à perseguição e ao martírio de milhares de cristãos japoneses e missionários europeus.

Diversas razões, que não cabem nesta coluna, podem explicar o porquê de o Japão ter escapado ao processo de colonização e imperialismo europeu na Ásia nos séculos XVI-XIX. Pouca atratividade de seus recursos naturais, baixa densidade do comércio (apesar da grande população) e a existência de áreas vizinhas mais interessantes (como a China, a Índia e as demais ilhas da região dos oceanos Índico e Pacífico) aos europeus, eis algumas explicações plausíveis. Podem-se somar a essas, porém, a existência de um governo organizado desde o século VIII, uma estrutura jurídica relativamente sólida, a capacidade militar e a reação violenta aos missionários cristãos. O Japão, antes de ser invadido ou colonizado, fechou-se por três séculos em torno de seus valores religiosos e da ética de sua sociedade feudal e guerreira. Os rarefeitos contatos com a Europa deram-se por intermédio de navegadores e comerciantes holandeses, que mantiveram um enclave sino-holandês perto de Nagasaki[2].

No século XVII, o Japão atingiu o ápice do processo de feudalização e de ruptura das antigas hierarquias e de extinção dos resquícios do poder central. Um senhor da guerra, Tokugawa Ieyasu, conseguiu fundar o "Estado Tokugawa", que viria a ser, por 250 anos, o núcleo do poder no Japão, após derrotar outros clãs e terratenentes. O xogunato Tokugawa estabilizou o Japão, mas não rompeu com o feudalismo, embora tenha fechado o país às influências estrangeiras até a Revolução Industrial[3].

2. A ocidentalização forçada 
No século XIX, a estabilidade e a paralisia da era Tokugawa faziam-se sentir por rebeliões populares, pelo enfraquecimento do aparato militar, marcado pela obsolescência de armas e de táticas, e pela debilitação dos laços entre os clãs. Um elemento externo veio a desencadear a ruína da Casa Tokugawa: o imperialismo ocidental, simbolizado pela abertura forçada dos portos em razão da chegada dos navios do Comodoro Matthew Perry, dos Estados Unidos, em 1853. A diplomacia dos canhoneiros americanos forçou o governo Tokugawa a celebrar um tratado de amizade nipo-americano, sem o placet do imperador (que governava nominalmente o país)[4].

O impacto da abertura comercial sobre a economia, especialmente sobre camponeses e comerciantes, foi imenso. A fragilidade do xogunato e de suas forças militares anacrônicas ante as forças ocidentais evidenciava-se a cada nova concessão diplomática. A ratio do feudalismo desaparecia rapidamente, na medida em que não mais assegurava previsibilidade econômica e segurança militar. O imperador assumiu acentuadamente um papel místico sobre o povo e liderou um processo de contestação ao xogunato e à Casa Tokugawa, que culminou com sua derrubada e a instauração de um estado unitário, sob a liderança do imperador Meiji, que deu nome a uma nova era[5].

Mutsuhito, o imperador Meiji (1852-1912), assumiu o trono com 14 anos, em 1867, tendo liderado a chamada Restauração Meiji, a guerra civil que pôs fim ao xogunato Tokugawa e iniciou o processo de ocidentalização do país. Nesse processo, deu-se a mudança do vestuário, da estrutura das Forças Armadas, da educação superior e a adoção do sistema romano-germânico no Direito Constitucional e no Direito Civil. À semelhança do que fizera Pedro, o Grande, no Império Russo, o soberano Meiji estimulou a vinda de engenheiros, professores de Direito e Medicina, militares e economistas ocidentais para modernizar as instituições japonesas. Em um tênue equilíbrio, o novo regime procurou manter a essência da cultura nacional, mas copiando o que havia de mais útil e avançado no Ocidente.

Como consequência de tantas mudanças, houve o aniquilamento de parte da aristocracia feudal, que se opôs em guerras civis à Restauração Meiji, ao tempo em que o Japão converteu-se rapidamente em uma potência militar. Duas expressivas vitórias na Guerra Sino-Japonesa de 1894-1895 e na Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) demonstram os resultados exitosos desse processo de refundação nacional. Contra os chineses, o Japão conseguiu impor-se e tornar-se um parceiro das nações ocidentais na exploração imperialista da China. A vitória contra a Rússia, que perdeu territórios na Coreia e foi derrotada em Porto Arthur, foi a mais avassaladora: era a primeira vez na história moderna que uma nação asiática derrotava uma potência ocidental. Sob todos os aspectos, a Guerra Russo-Japonesa foi um divisor de águas e é considerada a causa remota da Revolução Russa de 1917 e da queda da dinastia Romanov.

Outro símbolo dessa mudança está na velocidade com que o Japão adotou a cultura ocidental nas Forças Armadas, que passaram a se organizar nos moldes prussianos e franceses, e nas universidades, que importaram professores de todo o mundo. No Direito, "foram contratados 32 juristas de diferentes nacionalidades. Havia franceses, alemães, americanos, italianos e outros. Todos eles deram contribuições importantes para o progresso do Direito japonês no início da era Meiji. Sem desmerecer os demais, os mais conhecidos entre os japoneses são o francês Gustave Boissonade e o alemão Hermann Roesler, que influenciaram os governantes a adotar no Direito japonês, o sistema herdado do Direito Romano, ao invés de Direito Anglo Americano"[6].

Na segunda metade do século XIX, foi a Alemanha o principal agente influenciador do Direito japonês. O conhecimento do alemão passou a ser interessante para as elites jurídico-acadêmicas. O governo imperial adotou o "modelo prussiano na Constituição, Códigos Civil e Penal e muitos outros"[7]. Um dos responsáveis por essa relação teuto-japonesa foi Hermann Roesler (1834-1894), que foi contratado como consultor do Ministério Imperial de Negócios Estrangeiros e auxiliou nos trabalhos de "elaboração do Código Comercial promulgada em 1890". No entanto, "a mais importante de suas contribuições foi a da Constituição Meiji, promulgada em 1889"[8].

3. Apogeu, declínio e reconstrução
Após a vitória contra o Império Russo em 1905, o Japão manteve seu processo de industrialização e de estímulo às Forças Armadas. Nos anos 1920-1930, a crise econômica e a militarização andaram de mãos dadas, em um cenário muito similar ao que se deu no restante do mundo. A doutrinação militar, patriótica e de divinização da autoridade do imperador, iniciada com o objetivo de fundamentar a Restauração Meiji, ganhou autonomia e passou a servir à legitimação de um governo centralizador, autoritário, militarizado e expansionista.

Sob o jovem imperador Hiroito, o Japão completou seus planos de invasão da Coreia e da China. Internamente, havia uma divisão nas Forças Armadas sobre a participação japonesa no esforço militar do Eixo Roma-Berlim, que resultou na Segunda Guerra Mundial. As obras de Adolf Hitler tornaram-se populares no país, especialmente o livro-manifesto Minha Luta, cujos trechos nos quais o ditador alemão tratava com desprezo os japoneses, considerando que os "macacos amarelos" seriam úteis ao esforço militar alemão por perturbar a paz colonial europeia na Ásia, foram suprimidos na edição japonesa.

Antigas lutas de clãs feudais, cujos membros mais ativos se transferiram para as Forças Armadas, refletiam-se no embate interno sobre entrar ou não na Segunda Guerra Mundial. A Marinha Imperial resistiu o quanto pôde, até mesmo com ameaças do Exército, até que uma troca no alto comando fez com que os oponentes à guerra fossem removidos.

O Japão foi destruído pelas forças aliadas na Ásia. O ápice de sua ruína foi o emprego da bomba atômica pelos norte-americanos. Ocupado militarmente, o Japão manteve a monarquia, embora destituída de funções efetivas de poder, graças à preocupação do general Douglas McArthur com a perda de estabilidade interna decorrente do fim do Trono do Crisântemo. Em 1947, entrou em vigor a Constituição japonesa, que permanece intacta, com a supressão das instituições autocráticas, militarizadas e a abolição dos títulos de nobreza. Elaborada pelos norte-americanos, a nova Constituição foi um marco na refundação nacional.

O desenvolvimento industrial japonês no pós-guerra foi assombroso, tendo o país superado economicamente, durante algumas décadas, alguns dos países que o derrotaram na Segunda Guerra Mundial, como a Holanda, a França e o Reino Unido. Nos anos 1980, parecia que o Japão se encaminhava para ser a segunda potência econômica  mundial, o que terminou por não ocorrer. Nos anos 1990, o país iniciou um processo de estagflação e recessão, do qual ainda não se recuperou totalmente.

Apesar de tantas mudanças, antigos valores sociais e morais permanecem no Japão contemporâneo, que revelam um papel do Direito e das instituições jurídicas muito mais tímido do que o encontrado em vários países ocidentais. É esse modelo que começamos a examinar.


[1] NINOMIYA, Masato; NAGAI, Yasuyuki. Sistema jurídico japonês. In. HARADA, Kiyoshi (Coord). Intercâmbio Cultural Brasil-Japão. São Paulo: Sociedade Brasileira de Cultura e Assistência Social Bunkyo, 2016.
[2] ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. Tradução de Renato Prelorentzou. São Paulo: Unesp, 2016. p.497.
[3] ANDERSON, Perry. Op. cit. p.481-484.
[4] ANDERSON, Perry. Op. cit. p.502-503.
[5] ANDERSON, Perry. Op. cit. p.504-505.
[6] NINOMIYA, Masato; NAGAI, Yasuyuki. Op. cit., loc. cit.
[7] NINOMIYA, Masato; NAGAI, Yasuyuki. Op. cit., loc. cit.
[8] NINOMIYA, Masato; NAGAI, Yasuyuki. Op. cit., loc. cit.

Critérios para nomeação no Supremo


Supremas diferenças

Indicações de novos juízes para as cortes constitucionais no Brasil e nos Estados Unidos reacendem o debate: existe fórmula ideal? Entenda (e compare) os diferentes modelos de nomeação adotados em outros países

Por: Ricardo Vasques Helcias (texto), Alexandre Hoshino e André Fuentes (design)

É justo que o presidente do país escolha os juízes das cortes constitucionais que possivelmente vão julgar processos do interesse do governo? O debate sobre essa questão foi reacendido nas últimas semanas com as novas nomeações para o Supremo Tribunal Federal e para a Suprema Corte dos Estados Unidos. Com a morte de Teori Zavascki em um desastre aéreo em janeiro, Michel Temer fez sua primeira indicação para o STF: Alexandre de Moraes, que ocupava o cargo de ministro da Justiça no seu governo. Nos EUA, o presidente Donald Trump escolheu o juiz federal Neil Gorsuch para a vaga aberta com a morte do notório Antonin Scalia, em fevereiro do ano passado. Tanto nos Estados Unidos como no Brasil, que replica o modelo americano, o candidato passará por uma sabatina no Senado e precisa ser aprovado pela maioria da Casa.

QUIZ: TESTE OS SEUS CONHECIMENTOS SOBRE DECISÕES HISTÓRICAS DO STF

A fórmula de nomeação adotada aqui e nos EUA, com o Poder Executivo indicando e o Poder Legislativo referendando, é uma das muitas possíveis para a seleção de um juiz de suprema corte. No geral, os modelos buscam que exista um equilíbrio entre os Poderes na escolha, e que o futuro ministro seja alguém com conhecimento técnico e amparo político. Outro método popular é dividir as indicações entre os poderes. Na França, os presidentes da República, do Senado e da Câmara escolhem um terço dos assentos da corte cada um; na Alemanha, a divisão é entre as duas Casas Legislativas; e na Itália, entre os três Poderes. Israel adota uma fórmula diferente: um colegiado composto por representantes da corte, do governo e do Parlamento faz as indicações. Já na Índia, em um sistema que beira o corporativismo, o próprio Supremo aponta os seus ministros. (Confira abaixo os diferentes modelos de composição. O número de processos foi baseado nas decisões finais das cortes no ano judiciário de 2015).

Brasil

Supremo Tribunal Federal

A enorme carga de processos da corte brasileira é reflexo das intermináveis oportunidades de recursos que a Justiça do país oferece e do detalhamento da Constituição de 1988, que com seus mais de 200 artigos e 80 emendas permite que quase qualquer assunto possa ser levado ao STF. Na semana passada, o tribunal responsável por julgar os políticos envolvidos na Lava Jato decidiu sobre o habeas corpus a uma mulher presa por tentar furtar desodorantes e chicletes em 2011. "Ninguém dá conta de analisar 10.000 ações em um ano. O que acontece? Você faz um modelo de decisão para determinado tema. Depois, a sua equipe de analistas reúne os casos análogos e aplica o seu entendimento", desabafou o então presidente do Supremo Cezar Peluso a VEJA em 2010. Mesmo assim, o STF tem se destacado nos últimos anos pelo julgamento de grandes temas – mensalão, casamento gay, aborto de anencéfalos etc – e por ter a palavra final nos impasses entre os outros Poderes.

MANDATO: até os 75 anos

INDICAÇÃO
11JUÍZES
92.399PROCESSOS

Estados Unidos

Suprema Corte dos Estados Unidos

Mais tradicional corte do mundo, o Supremo americano tem uma carga de trabalho de dar inveja aos magistrados brasileiros. Dos mais de 5.000 casos que recebem anualmente, os juízes se debruçam sobre menos de cem, escolhidos a dedo. A enxuta Constituição do país, com sete artigos e 27 emendas, explica o baixo número de processos, mas a existência de "supremas cortes" estaduais também ajuda a filtrar as ações que chegam ao mais alto tribunal. Outra grande diferença em relação ao Brasil: os juízes americanos raramente se manifestam fora dos autos e são avessos aos holofotes. Dividida entre progressistas (indicados por democratas) e conservadores (por republicanos), a Suprema Corte tinha, antes da morte de Scalia, um delicado equilíbrio ideológico: quatro juízes à esquerda, quatro à direita e um centrista – o fiel da balança Anthony Kennedy.

MANDATO: Vitalício

INDICAÇÃO
9JUÍZES
82PROCESSOS

Alemanha

Tribunal Constitucional Federal da Alemanha

Símbolo da Alemanha no pós-guerra, o Tribunal Constitucional Federal está localizado na cidade de Karlsruhe, a mais de 700 quilômetros de Berlim. A distância física visa isolar a corte das disputas políticas da capital, garantindo assim sua neutralidade. Responsável por julgar a constitucionalidade das leis e assegurar uma Alemanha livre e democrática, o tribunal é dividido em duas turmas de mesma hierarquia compostas por oito ministros cada. As indicações são feitas pelas duas Casas Legislativas: o Bundestag (Câmara) elege uma metade da corte e o Bundesrat (Senado), a outra. A nomeação garante ao magistrado um mandato de doze anos – com direito a traje vermelho e chapéu cerimonial.

MANDATO: 12 anos

INDICAÇÃO
16JUÍZES
6.133PROCESSOS

França

Conselho Constitucional da França

Encarregado exclusivamente de resolver questões relativas à Constituição e supervisionar os processos eleitorais – o que explica o baixo número de decisões anuais –, o Conselho Constitucional da França tem os seus membros nomeados alternadamente pelos presidentes da República, do Senado e da Câmara. Um terço da corte formada por nove juízes é renovado a cada três anos, e os escolhidos exercem um mandato fixo de nove anos. Essa fórmula garante uma renovação gradual, mas constante, do tribunal. Em uma particularidade da corte francesa, os ex-presidentes também tem um assento assegurado assim que deixam o Palácio do Eliseu. Mas com uma condição: que não participem mais do debate político. Poucos são os que optam por exercer o direito.

MANDATO: 9 anos

INDICAÇÃO
9JUÍZES
156PROCESSOS

Israel

Suprema Corte de Israel

Situada em um impressionante complexo arquitetônico em Jerusalém, a mais alta corte do país muitas vezes tem a última palavra em temas delicados envolvendo a tensa relação entre israelenses e palestinos. No passado recente, o tribunal já ordenou que o governo alterasse a rota do muro erguido na Cisjordânia por considerar que o traçado separava aldeias palestinas de suas terras produtivas. Em breve, deve se manifestar sobre os novos assentamentos judaicos em território ocupado. Como forma de reduzir pressões políticas e garantir a independência do tribunal, os magistrados são nomeados por um colegiado formado por três juízes do Supremo, dois ministros do governo (um deles o da Justiça), dois deputados e dois representantes da ordem dos advogados.

MANDATO: até os 70 anos

INDICAÇÃO
15JUÍZES
1.852PROCESSOS

Índia

Supremo Tribunal da Índia

Com seus 31 assentos e dezenas de milhares de ações, o Supremo indiano reflete o gigantismo do país. A corte não chega a ser um STF em matéria de volume de processos, mas também sofre com o acúmulo de casos aguardando julgamento. O modo de seleção dos magistrados é incomum. Apesar de a Constituição dizer que o presidente deve indicar os ministros, o Supremo decidiu há mais de vinte anos que um collegium formado pelo presidente da corte e pelos quatro juízes mais antigos é que escolheria os novos membros. Tudo para garantir a independência do tribunal. De lá para cá tem sido assim, mas nos últimos anos o Legislativo e o Executivo se esforçaram para mudar a fórmula de juízes nomeando juízes. Uma proposta de um colegiado mais plural chegou a ser aprovada no Parlamento em 2014, mas foi derrubada um ano depois no próprio Supremo. Voto vencido na disputa, o juiz Jasti Chelameswar criticou a falta de transparência dos colegas e disse que o sistema atual promove a mediocridade. O atrito entre o Judiciário e o governo tem atrasado as novas indicações e, atualmente, o Supremo da Índia tem oito vagas a serem preenchidas.

MANDATO: até os 65 anos

INDICAÇÃO
31JUÍZES
82.092PROCESSOS

Itália

Corte Constitucional da Itália

Um dos raros casos de modelo com as nomeações divididas igualmente entre os três Poderes, a Corte italiana tem um terço de seus quinze integrantes indicado pelo presidente, um terço pelo Parlamento e um terço pelas cortes superiores. Os juízes permanecem no tribunal por um período de nove anos. A Corte deve zelar pela correta interpretação da Constituição, resolver conflitos entre os Poderes e julgar acusações contra o presidente.

MANDATO: 9 anos

INDICAÇÃO
15JUÍZES
276PROCESSOS

A importância da sabatina

Tanta variedade de modelos indica que não existe consenso sobre qual a melhor forma de nomeação. Uma das principais críticas ao modelo brasileiro é o poder excessivo do presidente na escolha, algo que poderia prejudicar a independência do Supremo. A falta de um mandato com tempo pré-estabelecido também é questionada. No STF, um ministro deixa a corte ao completar 75 anos – antes disso, apenas em caso de morte ou se decidir se aposentar precocemente. O assento quase vitalício torna a renovação do tribunal inconstante e causa discrepâncias no número de indicações a que cada presidente tem direito. Um exemplo: em seus oito anos de governo, Lula nomeou oito ministros para o Supremo. No mesmo período, Fernando Henrique escolheu apenas três.

Uma das vantagens do modelo, o rigoroso escrutínio do Senado, não funciona na prática no Brasil. Por aqui, a confirmação do candidato é quase uma formalidade e, não raro, a sabatina se dá em um inadequado clima de camaradagem. Uma exceção auspiciosa foi a audiência com Edson Fachin, que se estendeu por 12 horas e questionou o magistrado de forma exemplar. Ainda assim, o nome do hoje relator da Lava Jato no STF foi aprovado com folga no plenário: 52 votos a 27. Ou seja, Alexandre de Moraes, criticado pela oposição por exercer cargo no governo e por sua filiação ao PSDB, pode até esperar uma sabatina dura, mas não deve se preocupar com a votação no Senado. Em tempo: a última vez que os senadores rejeitaram um nome para o STF foi há mais de cem anos, no governo de Floriano Peixoto.

Nos EUA, é diferente. Os indicados passam por sabatinas que podem durar dias e precisam provar sua competência técnica. A maioria acaba sendo confirmada pelo Senado, mas o processo não é meramente protocolar. Nos últimos cinquenta anos, três nomes foram rejeitados, o último deles no governo Reagan. Outros quatro viram suas indicações naufragarem antes mesmo das sabatinas. Dois casos emblemáticos são os de Douglas Ginsburg, em 1987, e de Harriet Miers, em 2005. O primeiro foi derrubado pela revelação de que havia fumado maconha na vida adulta, enquanto a segunda foi considerada – por democratas e republicanos – despreparada para o cargo. Em 1991, o juiz Clarence Thomas enfrentou até acusações de assédio sexual e passou raspando: 52 votos a 48. No ano passado, após a morte de Scalia, Barack Obama nomeou em seu último ano de mandato o juiz Merrick Garland para a vaga. O Senado controlado pelos republicanos, porém, se recusou a sabatinar o magistrado, argumentando que a escolha deveria caber ao próximo presidente dos EUA. Os democratas acusaram os adversários de "roubar" uma indicação e prometem jogo duro contra o candidato de Trump para o tribunal.

Atualmente, tramitam no Congresso 23 propostas para mudar o modelo de escolha dos ministros do STF. Uma sabatina séria que preparasse bem os candidatos a um lugar na corte que zela pela Constituição já seria um ótimo começo.

Supremo Tribunal Criminal

Entre as competências do STF, está a de julgar políticos com foro privilegiado. A quantidade exorbitante de autoridades envolvidas nos dois megaescândalos de corrupção desvelados nos últimos anos no Brasil – o mensalão e o petrolão – transformou o Supremo em uma espécie de vara de 1ª instância superlotada, deixando de abordar outras questões que são de sua exclusividade. Apesar de ter sobrecarregado os ministros, o alto número de processos criminais contra políticos não foi, em tudo, um desperdício. "Não tenho dúvida que julgamentos como o da ação penal 470 [mensalão], por exemplo, deram coragem para essa quantidade de juízes de primeira instância tomando decisões fortes contra atos de corrupção", diz o advogado Daniel Falcão, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

QUIZ: TESTE OS SEUS CONHECIMENTOS SOBRE DECISÕES HISTÓRICAS DO STF


O Evernote ajuda você a se lembrar de tudo e a se organizar sem esforço.Baixe o Evernote.