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terça-feira, 20 de junho de 2017

O paraíso dos conceitos jurídicos do jurista alemão Rudolf von Jhering (parte 8)


Por Jefferson Carús Guedes e Thiago Aguiar de Pádua

Dando continuidade a esta série de colunas sobre "O paraíso dos Conceitos Jurídicos", de Jhering, observamos que o nosso ilustre visitante se mostra "farto" da Academia de História do Direito, se recordando do caso de um tipógrafo que, através da troca da letra "b" pela letra "m", transformou a "suave flagrância de seus cabelos" em "a suave flagrância de seus camelos"[i], especialmente porque era mais fácil "trocar" uma letra por outra do que compreender cabalmente o alcance e o sentido desta troca, e era perfeitamente compreensível o motivo pelo qual a academia situava-se bem ao lado do "Muro da Vertigem". Certamente a narrativa (também) se aplica ao caso discutido nas duas colunas anteriores (sobre o inusitado artigo 386, do Decreto 848/1890, que alterou nossas fontes).

É muito mais fácil "reescrever" a Constituição Federal, trocando letras (e/ou inserindo palavras), sem se preocupar com questões inerentes à matriz teórica e aos postulados de filosofia do ordenamento, como no caso do artigo 5º, XI, que foi reescrito como "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito [inclusive de crime permanente, com interpretação da CF à luz do artigo 303 do CPP] ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial", conforme decidido no RE 603616/RO.

Ou do artigo 5º, LXII, da CF, que foi reescrito como "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória [exceto no Tribunal do Júri, quando se considerará culpado desde o esgotamento do primeiro Grau, e dos julgamentos de ações penais originárias em Tribunais de Justiça, TRFs e do STJ, além dos demais casos com esgotamento do segundo grau de jurisdição]", como se depreende de vários julgados: STF, no HC 126292/SP; nas ADC 43/DF e 44/DF; no HC 139612/MG, e no HC 118770/SP (e no STJ, por todos, a QO na APn 675/GO).

E do artigo 102, parágrafo 3º, da CF, que passou a ser escrito da seguinte forma: "No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros [e se for reconhecida a repercussão geral em processos penais, os prazos prescricionais penais poderão ser suspensos, tal qual a regra do artigo 53, parágrafo 5º, da mesma CF]", conforme decidiu o STF na QO no Recurso Extraordinário 966177/RS.

Na verdade, toda essa "insatisfação" com a "Academia de História do Direito", e com "entidades" que realizam práticas similares, seria afastada se os artigos 1º, parágrafo único, 2º, e 60, parágrafo 4º, da CF, fossem "reescritos" como "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de [Tribunais,] representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição"; "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário [mas este último controla e modera os demais]", e, "Não será objeto de deliberação [exceto se assim o decidirem os Tribunais] a proposta de emenda tendente a abolir...".

Após demostrar sua insatisfação com o estado de coisas da "Academia de História do Direito", prenhe de membros que trocam letras e palavras das fórmulas e (re)criam antigos cânones jurídicos de maneira arbitrária, nosso candidato ao céu dos juristas é conduzido ao local mais "sagrado" do Paraíso dos Conceitos Jurídicos, o "salão dos conceitos", em cujas alas laterais se situam, de um lado o "cerebrarium" e do outro o "gabinete anatômico patológico dos conceitos".

Ao receber a informação de que o guia o levaria até lá, ele logo se espanta: "Mas não vejo portas, como se ingressa no recinto?".A resposta não tardou; o guia lhe respondeu que não existiam portas por lá, e que quando eles querem ingressar nos recintos, batem com a cabeça na parede, fazendo com que ela ceda, abrindo caminho:

"Se em sua existência terrena houveste tido algum valor de ser imperturbavelmente consequente, se houveste sido convencido de que o caminho escolhido era o correto, e houvesse avançado sem vacilações, sem olhar para a esquerda e nem para a direita, sem se preocupar se havia pântanos ou precipícios, ou, para falar de maneira menos metafórica, sem se preocupar com as consequências práticas, então lhe custaria muito pouco atravessar esse muro com a cabeça para penetrar no local."

Dentro do "cerebrarium", após romper a parede com a cabeça, descobre que lá é fabricada a substância cerebral para os teóricos, sendo conduzido até a presença de dois cérebros de cera, que demonstrariam a diferença entre o cérebro dos teóricos e o cérebro dos práticos. No primeiro, nota-se uma protuberância específica, a "substantia medullaris", que é preenchida com a "mons idealis"; o processo se dá da seguinte maneira: no ambiente atmosférico a substância se volatiliza, permitindo que seja inoculada na mulher a quem se conferiu a graça de dar à luz a um jurista teórico. No momento da concepção, a mulher aspira a tal substância e, durante a gestação do feto, ela se da conta de que carrega algo especial no interior de seu ventre, com um futuro jurista teórico que já é agitado e impaciente.

A referida substância ("mons idealis") proporciona ao iluminado cérebro teórico as condições de "pensar idealmente", o que não deveria ser confundido com a capacidade de pensar de maneira abstrata, ou seja, fornece ao jurista especial a faculdade de se desligar (em seu pensamento jurídico) de todos os pressupostos práticos relacionados aos problemas, situando-o na altura do "idealismo filosófico", dentro do qual o mundo seria mera ilusão, uma fantasia do sujeito, e munido deste "poder criador", ele não encontraria obstáculo algum que freasse sua força intelectiva, algo que situa a jurisprudência como "a matemática do direito".

Embora a discussão se relacione à suposta diferença cerebral entre "teóricos" e "práticos", a modulação contemporânea de seu espírito crítico pode ser estabelecida de outra forma, através de distinta narrativa, já que o pano de fundo se encontra atrelado à suposta "iluminação de uns" em detrimento da pouca habilidade de outros: como o leitor percebe, podemos adaptar a narrativa para moldá-la à clivagem entre aqueles que dizem que o poder judiciário é iluminado, ou o "motor da história", e que a democracia não seria "adequadamente realizada" sem que um grupo de cidadãos não eleitos esteja na vanguarda (para "avanços" ou "retrocessos").

Se nos é tolerada a metáfora, isso é mais antigo do que andar pra frente. Mangabeira Unger, referido na coluna anterior na crítica elaborada por MacCormick, já fez menção ao chamado segundo segredinho sujo (dirty little secret) da teoria jurídica contemporânea, vislumbrado na criação incessante de limitações à regra da maioria, conducente às hipertrofias institucionais e de oposição às propostas de reforma concebidas para elevar o nível de engajamento político popular, pois seriam ameaçadoras ao sistema de direitos, traduzidas em um evidente e mal disfarçado "desconforto com a democracia"[ii].

Algo que já havia sido percebido pelas lentes de Alexis de Tocqueville, aquele que após visitar a nova democracia criada (os EUA, país no qual vige o "judge made law"), escreveu: "Se me perguntassem onde situo a aristocracia americana, responderia, sem hesitar, que não o faço entre os ricos, que não possuem nenhum laço comum que os assemelhe. A aristocracia americana está no banco dos advogados e na cadeira dos juízes", pois "encontramos, oculta no fundo da alma dos juristas, uma parte dos gostos e dos hábitos da aristocracia. Como ela, têm um instintivo pendor para a ordem, um amor natural pelas formas; assim como a aristocracia, conhecem um grande desgosto pelas ações da multidão e, secretamente, desprezam o governo do povo"[iii].

Convém observar, entretanto, com apoio na leitura da apresentação da mais recente tradução espanhola de "Scherz un Ernst in der Jurisprudenz" (e na qual se insere o texto "O Paraíso dos Conceitos Jurídicos), realizada pela professora María Rosa Ripollés Serrano, que Jhering apresenta um "evidente sentido estético, nesta obra que corre em paralelo à ironia, às vezes ao sarcasmo, obra em cuja posição perante a história da teoria jurídica demonstra uma significação equivalente a Flauta mágica, pois como aquela, sustenta-se sob uma espécie de 'divertimento', teses e princípios relevantes e, ainda, como a opera mozartiana, a originalidade, a alegria e a provocação de uma mente brilhante em contínua autoexploração"[iv].

Mais do que isso: haveria nesta última fase de Jhering uma fundamentação do direito quase hobbesiana, como também se encontram ecos desta percepção na tese de Weber sobre o Estado como entidade a quem se reserva o monopólio da violência legítima, mas se existem algumas breves convergências, é certo que também são apontadas situações em que a amplitude do pensamento de Jhering tenha sido utilizada por distintos pensadores que acabaram se nutrindo, algumas vezes contraditoriamente, das suas ideias, desde Adolfo Posada (Krausismo), ao chamado socialismo de cátedra, ou ainda, para quem tenha visto na concepção de Direito como "ideia-força", um pretexto para sustentar interpretações substancialistas, e mesmo de caráter bonapartista, ou em torno do "cesarismo social". Num outro extremo, a propósito, a presença de influência no seio das chamadas correntes da jurisprudência sociológica, e inclusive a percepção em Jhering de certos traços pré-estruturalistas, ou mesmo a sua consideração por parte do movimento do Direito Livre, ou na feliz síntese atribuída a Monereo, "todos os movimentos de reformismo jurídico do século XX acabam partindo de Jhering"[v].

Sem descurar, evidentemente, da percepção de que Jhering era um homem de seu tempo, admirador do papel de Bismarck na criação da Alemanha, e um cidadão que constata (atrás de uma peregrinação desde o "Espírito do povo" como justificador do Direito, até a realidade alemã da segunda metade do século XIX), que o Direito representaria a garantia das condições de existência da sociedade, assegurada pela força coativa do Estado, e que a motivação e a explicação do Direito residiriam no poder[vi].

Por isso, nada mais sarcástico do que supostos "reformistas jurídicos" serem observados criticamente com base no pensamento de quem possui evidente influência em tudo isso, e que precisa ser lido e debatido. Na próxima coluna, os desdobramentos da adaptação da clivagem entre os cérebros iluminados e os cérebros não iluminados, evidentemente a partir da narrativa de Jhering, n'O Paraíso, pois se nossa república começou com a prática comum de "(re)criar as fontes", num golpe de estado, ela prossegue hoje com os mesmos vícios de "(re)criação" num ambiente que se diz democrático: é a democracia da manipulação dos conceitos jurídicos. Continua.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


[i] Propositalmente trocamos a utilização dos originais e respectivas traduções para adaptar o trocadilho ao idioma português. Em inglês: "may roses enchanting fragrance" to "sailors enchanting fragrance"; espanhol: "suave fragancia de sus cabelos" en "suave fragancia de sus caballos"; italiano: "il sapor dolce di un bacio" in "[il sapor dolce di] un cacio"; alemão: "berauschenden Duft von "Mairosen" in den von "Matrosen". Fontes citadas no primeiro artigo desta série de colunas.

ii] UNGER, Roberto mangabeira. O Direito e o Futuro da Democracia. Trad. Caio Farah Rodrigues e Márcio Soares Grandchamp, com consultoria do autor. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 95.

[iii] TOCQUEVIE, Alexis de. A democracia na América [1835]. São Paulo: EDUSP, 1977, p. 203-206.

[iv] SERRANO, María Rosa Ripollés. Apresentação, em: JHERING, Rudolf Von. Jurisprudência en Broma y en Serio. Trad. Román Riaza. Madrid: Editorial Reus, 2015, p. 5-16.

[v] Idem.

[vi] Idem.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

O paraíso dos conceitos jurídicos do jurista alemão Rudolf von Jhering (parte 7)


  • 16

Na coluna anterior, ressaltamos que o Decreto 848/1890 realizou uma espécie de trashing (no sentido discutido ao final desta coluna) com relação à tradição jurídica brasileira, inserindo entre nós o common law como fonte subsidiária. A exposição de motivos desse decreto, dirigida ao "generalíssimo", e assinada por Campos Salles, então ministro da Justiça (e posteriormente presidente da República), é reveladora. Em termos de "funcionalidade", o sistema federal de Justiça deveria velar pelo "equilíbrio, regularidade e independência dos outros poderes", algo próximo ao poder moderador que o imperador Pedro II queria transferir para uma Corte Suprema, como aquela de Washington, mas com o "temperamento" da exposição de motivos: "República, segundo a máxima americana, deve ser o governo da lei" [criada pelo juiz?].

Ainda segundo a exposição de motivos, na estrutura judicial "inaugurada", fez referência ao modelo norte-americano de Corte Suprema, de juízes de circuito e juízes de distrito, mas não fez referência ao precedente, nem ao common law nem muito menos ao stare decisis, matérias estas, quando muito, implícitas na EDM, mas constantes do decreto quando inseriu o common law. Falou-se em separação e independência das "duas Justiças" (local e federal), e não de poderes, como hoje consta na Constituição Federal de 1988.

O Supremo Tribunal Federal, aliás, teve ocasião de apreciar o tema, quando em 1902 julgou a Apelação Cível 745, relatada pelo ministro Alberto Torres, reconhecendo que o common law seria, de fato, fonte subsidiária do direito pátrio. Discute-se muito pouco o resultado desse julgamento, no bojo do qual tentaram transformar o caso do "desembargador José Climaco v. União", no nosso similar de "Marbury v. Madson", com consequências que precisam ser analisadas à luz de nossa(s) matriz(es) normativa(s). Constam da "ementa" as seguintes assertivas e perguntas: "Quando o direito subsidiário tem força obrigatória; quando os julgados estrangeiros devem ser adotados como razão de decidir pelos tribunais brasileiros. Inteligência do art. 387, 2ª parte, do Decreto 848, de 1890. Em que momento fica constituído a favor do cidadão nomeado juiz federal o direito à vitaliciedade neste cargo? é da posse? do compromisso? da entrega e registro do título de nomeação? ou da nomeação? razão de ser da vitaliciedade inerente aos cargos da magistratura. Vitalício ou não o juiz federal nomeado, mas não empossado, é lícito ao Poder Executivo revogar o decreto de nomeação? Deve o presidente do Supremo Tribunal Federal, ciente do decreto de revogação, recusar ao nomeado a aceitação do compromisso e negar-lhe a posse do cargo?"1.

Trata-se de importantíssima decisão que merece análise, no mínimo, sob as angulações da Teoria e Filosofia do Direito, do Direito Constitucional, do Direito Administrativo, do Direito Civil e dos processos civil e penal, respectivamente, porque envolve a interpretação das fontes do Direito e da mecânica de nomeação de cargos de poder que utiliza elementos do Direito Civil (elementos da posse nos direitos reais: a posse no cargo como a posse do cargo?), aliado à possibilidade de se interpretar o precedente norte-americano do caso Marbury com obrigatório (ou não) no ordenamento brasileiro. De fato, o Supremo realizou um peculiar distinguishing para dizer que o caso Marbury não representava um "precedente" obrigatório para o caso, uma vez que o common law deveria ser aplicado "apenas" se não houvesse fonte do Direito Público nacional, mas ressalvou (!?) o caso Marbury:

"O direito subsidiário só tem força obrigatória para os Tribunais — a) em falta de lei nacional que, expressa ou implicitamente, resolva a questão — b) na matéria regulada por lei ou, quanto aos julgados americanos, nas matérias que forem objeto da common law ou da equity. Nas questões de direito Público Constitucional a jurisprudência americana não constitui direito subsidiário, o que, aparentemente estranhável, se explica entretanto pela natureza do nosso regímen, cujos preceitos estão todos expressos ou implicitamente contidos na Constituição escrita. Essa jurisprudência será, por conseguinte, apenas elemento doutrinário de interpretação das disposições da nossa lei fundamental análogas à americana.

Quanto à autoridade desse julgado, é de notar que a sentença proferida no caso Marbury v. Madson contém duas partes perfeitamente distintas: uma, a que lhe deu toda a celebridade, fazendo dela a pedra angular da teoria constitucional americana, aquela em que o seu eminente prolator John Marshall funda e desenvolve a doutrina da supremacia judiciária na aplicação da Constituição e das leis, pela competência reconhecida ao departamento judicial de decretar a nulidade dos atos dos outros poderes; e outra, que é a invocada, em que se firma a regra acerca do momento em que se constitui para o magistrado nomeado o direito às garantias legais"2.

Ou seja, o STF realizou uma "distinção" para dizer que o caso Marbury "deveria ser aplicado" e também que "não deveria ser aplicado": no primeiro caso, enquanto fonte do controle de constitucionalidade, e para estabelecer quando o Direito oriundo do common law e da equity deveria "valer", afastando o resultado do caso Marbury sobre os requisitos da posse de magistrado, observando-se, no entanto, que o Direito norte-americano deveria permanecer enquanto "elemento doutrinário de interpretação das disposições da nossa lei fundamental análogas à americana", vale dizer, um precedente à brasileira com ratio decidendi e stare decisis à brasileira, com base no critério constitucional brasileiro historicamente mais "r-o-b-u-s-t-o" (roto obstáculo brasileiro usual somado à técnica oculta): discricionariedade legislativa atécnica (transposição de ideias sem cautelas mínimas) + discricionariedade judicial (excesso, fronteira e arbitrariedade, na linguagem de Clarissa Tassinari e Danilo Lima3, além de "principal traço distintivo do positivismo", como observa Fábio Bragança Ferreira, que, analisando o pós-positivismo à brasileira sob as lentes da crítica hermenêutica do Direito, pontua: "O neoconstitucionalismo brasileiro 'aposta' boa parte das suas "fichas" no protagonismo judicial. Não por outra razão utilizamos a expressão "pós-positivismo à brasileira", que, cunhada por Lenio Streck, pretende designar posturas teóricas que colocam "o rótulo de novo em questões velhas, já bastante desgastadas"4). O controle de constitucionalidade brasileiro nasceu velho, mas já era algo "neoconstitucionalista".

Vale dizer, o Supremo disse que a parte "bonitinha" de Marbury valia, mas a parte opaca não se aplicava, mas deixava em aberto a possibilidade de valer em outra situação. Metade calabresa, metade portuguesa, ou, na oportuna observação de Lenio, de que nos valemos em outro contexto, metade pavão e metade urubu5. O artigo 386 do Decreto 848/1890 e a decisão na Apelação Cível 745 precisam ser vistos com as lentes da resposta de Neil MacCormick aos Critical Legal Studiesvi, que, por sua vez, permite vislumbrar alguns aspectos discutidos no "Paraíso dos Conceitos Jurídicos" de Jhering.

Neste momento, nos importa uma breve revisitação de importante texto de Neil MacCormick na resposta que ofereceu aos juristas integrantes do Critical Legal Studies (na variante norte-americana, especialmente os "espíritos iconoclastas de Mangabeira Unger e Mark Kelman"), em paralelo à crítica de Jhering sobre a "Academia de História do Direito", especialmente atentos à metáfora que descansa na frase: "Reconstrução depois da Desconstrução". Em seu ensaio educado, polido e crítico, combina o analítico com o normativo, expondo suas ideias sobre como os sistemas jurídicos devem ser compreendidos, e de como é desejável constituí-los e mantê-los, retrabalhando um ensaio anterior ("A Ética do Legalismo"). Parte-se da premissa de que o "legalismo" pode ser interpretado, em algum sentido, como uma virtude, e não como um vício, próximo (mas não coincidente) do sentido de Estado de Direito (Rule of Law).

Observa que a atividade iconoclasta (ou de trashing) realizada pelos membros do CLS se (re)voltaria contra acadêmicos famosos do Direito e seus escritos sobre a determinabilidade, coerência e inteligibilidade do direito. Onde a tradição localizaria coerência, o CLS detecta contradição. Quando se fala em solução para determinadas questões, baseando-se na determinabilidade, o CLS aponta indeterminação. Esta atividade de trashing seria alcançada através de uma análise desconstrutiva e reveladora de que em cada solução suposta haveria um "contraprincípio" que teria sido encoberto por um específico princípio privilegiado, no sentido de que o "contraprincípio" seria tão racional em termos decisórios quanto ao princípio efetivamente privilegiado.

Das quatro partes que compõem o ensaio crítico de MacCormick, nos importam as duas últimas: o que há de errado com o Critical Legal Studies e a defesa do ensino jurídico tradicional como uma espécie de "reconstrução racional". MacCormick aponta que discussões sobre a existência de um grau duvidoso de penumbra, atrativo do exercício de discricionariedade política para suas soluções, não seria particularmente algo novo, como querem fazer crer os integrantes do CLS, sendo, antes, algo comum no "moderno positivismo jurídico", e que alegações sobre ideologia e sua relação com a discricionariedade podem ser vistas desde o capítulo final da Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen.

Extremamente importante é a nota de rodapé 40 (e o contexto em que ela está inserida), quando assevera que o papel do ensino jurídico (na forma da doutrina ou dogmática) é inerente à reconstrução racional dos materiais jurídicos, algo que o autor confessa ser influenciado pelas ideias de Martin Golding (Kelsen and the Concept of "Legal System") sobre a interpretação da teoria da dogmática jurídica de Kelsen: "Assim como este ensaio brilhante e seminal pontua, a visão kelseniana sobre a natureza da ciência jurídica deve bastante para a concepção do positivismo lógico de ciência natural, e do papel do filósofo como produtor de uma reconstrução racional da ciência". Essa reconstrução racional seria tributária de um afazer hermenêutico, que envolve um aclaramento do papel da doutrina jurídica, mal compreendida pelos membros do CLS:

"O trabalho da dogmática jurídica às vezes é descartado como mera transcrição, como se o estudioso simplesmente agisse não mais do que alguém que compila o juiz ou o legislador. Mas isso é um completo mal-entendido. Para isso, o exercício da inteligência criativa e disciplinada para dominar os grandes corpos jurídicos sempre em mudança envolvidos, para compreendê-los todos juntos e para reconstruí-los completamente sistematizados e coerentes, articulados a partir de complexos e internos componentes articulados. As grandes obras da dogmática jurídica, começando com as Institutas de Gaius, estão entre as realizações mais elevadas da inteligência humana".

Nesse sentido, Campos Salles e Rui Barbosa realizaram um trashing em 1890, ao inserirem o common law entre nós como fonte subsidiária, e o Supremo, em 1902, se valeu deste elemento normativo para fazer uma interpretação da Constituição à luz daquele decreto, sem realizar o controle de constitucionalidade da própria fonte normativa, inserindo no ordenamento vontades arbitrárias e discricionárias (primeiro legislativa e atécnica, e, posteriormente judicial e arbitrária), como aquele habitante do paraíso dos conceitos jurídicos de Jhering, que reconstrói arbitrariamente as Institutas de Gaio. Desde o início, temos apostado na arbitrariedade e na discricionariedade. Continua.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).

1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Apelação Cível 745, relatada pelo ministro Alberto Torres, com a participação dos ministros Piza e Almeida, André Cavalcante e Américo Lobo (vencido), de 6 de agosto de 1902. Em: O Direito - Revista Mensal de Legislação, Doutrina e Jurisprudência; ano XXXIII - Jan.-Abr., 96º Vol., Rio de Janeiro: 1905, p. 462-488.
2 Idem, p. 473.
3 TASSIINARI, Clarissa; LIMA, Danilo. A Construção da Democracia no Brasil: a difícil relação entre direito e política. Revista Paradigma, a. XXI, v. 25, n. 2, p. 154-172, jul/dez. 2016.
4 BRAGANÇA FERREIRA, Fábio L. A possibilidade de superação da discricionariedade judicial (positivista) pelo abandono do livre convencimento no CPC/2015. Dissertação (Mestrado) - UniCEUB: Brasília, 2017, p. 72.
5 STRECK, Lenio. Contra as pós-verdades no Direito ConstitucionalConJur de 29/4/2017.
6 MACCORMICK, Neil. Reconstruction after Deconstruction: A Response to CLS. Oxford Journal of Legal Studies, v. 10, 1990.

terça-feira, 6 de junho de 2017

O paraíso dos conceitos jurídicos do jurista alemão Rudolf von Jhering (parte 6)

Para dar continuidade a esta série de artigos sobre o Paraíso dos Conceitos Jurídicos de Jhering, e antes de ingressarmos na resposta que MacCormick ofereceu aos Critical Legal Studies, é preciso fazer uma breve reflexão sobre a tradição jurídica brasileira, desde sempre em permanente conflito de identidade. Ora Jekyll, ora Mister Hyde. Falemos do antigo artigo 386, do Decreto 848, de 11 de outubro de 1890, que organizou a Justiça Federal logo após o golpe de estado que nos transformou em uma república presidencialista:

"Art. 386. (omissis) Os estatutos dos povos cultos e especialmente os que regem as relações jurídicas na Republica dos Estados Unidos da America do Norte, os casos de common law e equity, serão também subsidiários da jurisprudência e processo federal."

De uma "penada", fomos transformados em um país de common law como fonte subsidiária do Direito, uma espécie de neo-institucionalização rediviva (e invertida) da "lei da boa razão" (a Lei de 18 de agosto de 1769), pela qual se proibia a utilização de textos ou autores se houvesse preceito das Ordenações, de leis extravagantes ou de usos do Reio, impondo que o direito romano só deveria ser aplicado "conforme a boa-razão - que era a recta ratio do jusracionalismo buscada nos textos que dela não se houvessem apartado e nas normas do direito das gentes observadas unanimemente pelos povos civilizados"[1].

O paralelo é relevante. As Ordenações Filipinas, em seu título LXIV, livro III, trazia regulamentação sobre como os casos deveriam ser julgados quando houvesse lacuna nas ordenações, esclarecendo o que se deveria entender por "boa razão"; nas ordenações, se fosse matéria de "pecado", deveria ser resolvida através do Direito canônico; se não fosse pecado, resolver-se-ia através do Direito romano, e na falta de leis imperiais, deveriam ser observados os comentários (glosas e opiniões) de Acúrsio e Bártolo (comentadores do Corpus Iuris Civilis); persistindo a falta, o caso seria remetido ao rei, que decidiria então, e sua decisão valeria para casos semelhantes.

A Lei da Boa Razão surge, essencialmente, para conter ou tentar impedir abusos (arbítrio dos juízes) na aplicação da lei, sendo esta a redação, presente nos comentários críticos de José Homem Corrêa Telles: "considerando ser muito conveniente para o bem público, que até nos ditos casos 'omissos' haja uma lei, e norma fixa, e constante para a decisão das causas; e não fique a administração da justiça dependente do arbítrio dos juízes;"[2]. Uma grande quantidade de exemplos de Leis Romanas abusivas, ou contrárias à "boa razão" é exemplificada: 1) leis que consideravam sagrados os locais, mesmo depois de destruídos os edifícios; 2) suicídio por aborrecimento da vida, e não por temor de castigo, que não anulava o testamento; 3) lei que considerava indigno o herdeiro que não vingava a morte do de cujos, acusando o matador; 4) lei que permitia ao homem casado possuir uma concubina, que podia herdar seus bens; 5) lei que permitia aos cônjuges desfazer o matrimônio por mutuo consenso; 6) lei que permitia que a mulher passasse a segundas núpcias depois de quatro anos de ausência do marido etc.

Da boa razão (1769), que buscava afastar fontes subsidiárias que permitiam o abuso, passamos ao judge made law subsidiário (1890), e com isso, inserimos entre nós a tradição do common law norte-americano, que por sua vez já trazia em si a tradição do common law da Inglaterra, que passa a conviver com o civil law, algo caricato como tentativa de inserir entre nós os balizamentos institucionais, e mais do que isso, de uma "tradição sem raízes". Ficamos entre a desconfiança no papel do juiz, depois da revolução francesa, e entre a confiança no papel do magistrado, depois da revolução gloriosa inglesa. Ou mais especificamente, na desconfiança do papel do magistrado (antes da LBR – lei da boa razão) para um voto de confiança mitigado (depois do decreto 848/1890). Num jogo de palavras: confia-se desconfiando, e desconfia-se confiando, mesmo que autores como Jerome Frank[3] vejam mais semelhanças entre os modelos (civil law e common law) do que usualmente se costuma vislumbrar.

É um problema de matriz teórica do direito, mais especialmente vinculado a determinadas áreas, como a separação de poderes e o controle de constitucionalidade. Precisamos refletir sobre a institucionalização do judicial review não apenas no Brasil, mas na América Latina como um todo. Uma região caracterizada pela crônica instabilidade política e por constituições de vida curta, de países inseridos na tradição do civil law, deveria ter sido solo infértil para o enraizamento das sementes de Marbury v. Madson, como apontado por Keith Rosenn[4]. Segundo sua análise, inteiramente baseada em Mauro Cappelletti, o desenvolvimento do controle concentrado de constitucionalidade (centralized judicial review) foi uma resposta para três dificuldades que os países de civil law enfrentaram ao tentar implementar o controle difuso (decentralized judicial review) desenvolvido em um país de common law.

Primeiro, os países de civil law teriam aderido mais rigidamente à doutrina da separação de poderes, uma vez que a declaração de inconstitucionalidade da lei é percebida como uma função política, e, portanto, incompatível com o poder judiciário de sua tradição. Segundo, os países de civil law não desenvolveram a doutrina do stare decisis, e, portanto, cada pessoa afetada pela declaração de inconstitucionalidade precisaria ajuizar a sua própria ação judicial, criando o ambiente propício para o surgimento de decisões conflitantes. Terceiro, os juízes inseridos na tradição do civil law estariam em situação incompatível para o exercício dos poderes inerentes ao judicial review, uma vez que os tribunais supremos, no sistema da civil law, seriam grandes e desajeitados com suas múltiplas divisões, mas, curiosamente, na América Latina, desenvolveram-se modelos híbridos para tentar superar tais dificuldades[5], ignorando matrizes teóricas e suas implicações.

Para o professor Keith Rosenn, o modelo de súmulas no Brasil, desde a década de 1960, teria o efeito análogo ao stare decisis, numa clara confissão de que as súmulas enfraquecem o apego à separação de poderes de nossa tradição, sem embargo de outros problemas jurídico-teóricos que surgem da observação, trazendo a lume não apenas a tentativa de percepção desta busca constante pelo stare decisis[6], mas os problemas por trás de uma importação acrítica e inadequada, que gera mais problemas e mais complexidades.

Entre nós, basta observarmos que alguns anos depois do decreto que instituiu o common law, também tentamos dar força à nossa esquizofrenia jurídica, com norma impositiva para "conferir força normativa à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal", por meio do Decreto 23.055, de 9 de agosto de 1933 (algo que o Novo Código de Processo Civil de 2015 parece ter tentado fazer 82 anos depois do decreto que não funcionou, e a CF/88 tentou fazer com as súmulas e decisões vinculantes). Tal diploma normativo não prevaleceu, segundo Barros Monteiro, porque por mais insistente que seja a jurisprudência, "não constitui norma imperativa, a cujo comando não se possa fugir", mencionando que isso estaria adequado, pois "o único compromisso que têm os juízes é com a lei e a própria consciência"[7].

Mais uma vez com razão Lenio Streck quando criticou não apenas a expressão "decido conforme a minha consciência"[8], mas também a recepção teórica inadequada[9], indicando que precisamos urgentemente de pelo menos quatro posturas teóricas, com urgência: 1) nova teoria das fontes; 2) nova teoria da norma; 3) nova teoria da interpretação; e, 4) nova teoria da decisão[10], e, por parte dos juristas, responsabilidade política com esta equação jurídica, que passa pela compreensão dos dois corpos do rei, reflexão também repetidamente recordada por Lenio[11].

A seguinte passagem de Ernest H. Kantorowicz é luminosa, evidentemente atualizando e distinguindo as várias passagens e transformações do conceito: "Aqui, como em outras passagens, descobre-se que no conceito organológico de 'corpo político e místico', continuavam vivas as forças constitucionais que limitavam o absolutismo real. Isso se tornou manifesto quando, em 1489, o Parlamento de Paris, a suprema corte da justiça francesa, protestou contra as pretensões do Conselho do Rei no governo de Carlos VIII. O Parlamento, um corpo encabeçado pelo Rei e composto dos Doze Pares, o chanceler, os quatro presidentes do Parlamento, alguns funcionários e conselheiros e de uma centena de outros membros (supostamente segundo o modelo do Senado Romano), opôs-se à interferência e proclamou-se 'un corps mystique meslé de gens ecclésiastiques et lais [...] representants la personne du roy', porque essa Corte Suprema do reino era 'a Justiça soberana do Reino de França, e o verdadeiro trono, autoridade, magnificência e majestade do próprio Rei'. Naturalmente, a ideia era de que o rei e seu conselho não podiam agir contra o Parlamento, porque esse 'corpo místico' representava ou era até idêntico à pessoa do rei"[12].

Podemos dizer, com a liberdade acadêmica de que nos valemos, que isso equivale ao chão (fonte), às paredes (norma), à visão (interpretação) e à caminhada (decisão) dentro de qualquer paraíso dos conceitos jurídicos, e que caminhar em terreno acidentado, com mármores e granito de fábricas, cores, tamanhos e texturas distintos, certamente acarreta inúmeras dificuldades, potencializadas ainda mais se estivermos em estado de "daltonismo jurídico" "e miopia normativa" que perceba paredes mais próximas ou distantes do que de fato estão. Eleva-se a potencialidade destrutiva à milésima potência quando se realiza, como os Critical Legal Studies, o exercício de "trashing" que desconsidera implicações importantes nas tradições jurídicas, pois até para se realizar alterações de rumo, e de rota, é necessário saber de onde vieram e para onde vão. Continuaremos na próxima coluna.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


[1] MOREIRA ALVES, José Carlos. Panorama do Direito Civiil Brasileiro: Das Origens aos dias atuais. Revista da Faculdade de Direito da USP, v.88, 1993.
[2] CORRÊA TELLES, José Homem. Comentário Crítico à Lei da Boa Razão, em data de 18 de agosto de 1769. Lisboa: Typographia de Maria da Madre de deus, 1865, p. 36.
[3] FRANK, Jerome. Civil Law influences on the Common Law - Some Reflections on 'Comparative' and 'Constrastive' Law. University of Pensilvannia Law Review, v. 104, n. 7, 1956.
[4] ROSENN, Keith. Judicial Review in Latin America. Ohio State Law Journal, v. 35, 1974.
[5] ROSENN, Keith. Judicial Review in Latin America. Ohio State Law Journal, v. 35, 1974.
[6] AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Controle de constitucionalidade: evolução brasileira determinada pela falta do stare decisis. Revista dos Tribunais, v. 101, n. 920, p. 133–149, jun., 2012.
[7] MONTEIRO, Washington de Barros. Da jurisprudência. Revista da Faculdade de Direito da USP, v. 56, n. 2 , 1961.
[8] STRECK, Lenio. O Que É Isto - Decido Conforme Minha Consciência? 5ª Ed. Porto Alegre: Do advogado, 2015.
[9] STRECK, Lenio. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011.
[10] STRECK, Lenio. Entrevista. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, v. 81, n. 4, ano XXIX, dezembro 2011, p. 16.
[11] STRECK, Lenio. Senso Incomum: O que é preciso para (não) se conseguir um Habeas Corpus no Brasil. ConJur de 24/8/2015.
[12] KANTOROWICZ, Ernst H. Os Dois Corpos do Rei: Um Estudo Sobre Teologia Política Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 140.