Posted: 17 Mar 2013 05:08 AM PDT
Fonte: Coordenadoria de Editoria e Imprensa do STJ
Um dos princípios fundamentais do direito privado é o da boa-fé
objetiva, cuja função é estabelecer um padrão ético de conduta para as
partes nas relações obrigacionais. No entanto, a boa-fé não se esgota
nesse campo do direito, ecoando por todo o ordenamento jurídico.
“Reconhecer
a boa-fé não é tarefa fácil”, resume o ministro do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) Humberto Martins. “Para concluir se o sujeito estava ou
não de boa-fé, torna-se necessário analisar se o seu comportamento foi
leal, ético, ou se havia justificativa amparada no direito”, completa o
magistrado.
Mesmo antes de constar expressamente na legislação
brasileira, o princípio da boa-fé objetiva já vinha sendo utilizado
amplamente pela jurisprudência, inclusive do STJ, para solução de casos
em diversos ramos do direito.
A partir do Código de Defesa do
Consumidor, em 1990, a boa-fé foi consagrada no sistema de direito
privado brasileiro como um dos princípios fundamentais das relações de
consumo e como cláusula geral para controle das cláusulas abusivas.
No
Código Civil de 2002 (CC/02), o princípio da boa-fé está expressamente
contemplado. O ministro do STJ Paulo de Tarso Sanseverino, presidente da
Terceira Turma, explica que “a boa-fé objetiva constitui um modelo de
conduta social ou um padrão ético de comportamento, que impõe,
concretamente, a todo cidadão que, nas suas relações, atue com
honestidade, lealdade e probidade”.
Ele alerta que não se deve
confundi-la com a boa-fé subjetiva, que é o estado de consciência ou a
crença do sujeito de estar agindo em conformidade com as normas do
ordenamento jurídico.
Contradição Ao julgar
um recurso especial no ano passado (REsp 1.192.678), a Terceira Turma
decidiu que a assinatura irregular escaneada em uma nota promissória,
aposta pelo próprio emitente, constitui “vício que não pode ser invocado
por quem lhe deu causa”. O emitente sustentava que, para a validade do
título, a assinatura deveria ser de próprio punho, conforme o que
determina a legislação.
Por maioria, a Turma, seguindo o voto do
ministro Sanseverino, aplicou o entendimento segundo o qual “a ninguém é
lícito fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior
ou posterior interpretada objetivamente, segundo a lei, os bons
costumes e a boa-fé”. É o chamado
venire contra factum proprium(exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento anterior do exercente).
No
caso, o próprio devedor confessou ter lançado a assinatura viciada na
nota promissória. Por isso, a Turma também invocou a fórmula
tu quoque,
de modo a impedir que o emitente tivesse êxito mesmo agindo contra a
lei e invocando-a depois em seu benefício (aquele que infringiu uma
regra de conduta não pode postular que se recrimine em outrem o mesmo
comportamento).
Seguro de vidaO STJ já
tem jurisprudência firmada no sentido de que a seguradora não pode
extinguir unilateralmente contrato renovado por vários anos. Num dos
casos julgados na Terceira Turma em 2011 (REsp 1.105.483), os ministros
entenderam que a iniciativa ofende o princípio da boa-fé. A empresa
havia proposto à consumidora, que tinha o seguro de vida havia mais de
30 anos, termos mais onerosos para a nova apólice.
Em seu voto, o
ministro Massami Uyeda, hoje aposentado, concluiu que a pretensão da
seguradora de modificar abruptamente as condições do contrato, não
renovando o ajuste anterior nas mesmas bases, ofendia os princípios da
boa-fé objetiva, da cooperação, da confiança e da lealdade que devem
orientar a interpretação dos contratos que regulam as relações de
consumo.
O julgamento foi ao encontro de precedente da Segunda
Seção (REsp 1.073.595), relatado pela ministra Nancy Andrighi, em que os
ministros definiram que, se o consumidor contratou ainda jovem o seguro
de vida oferecido pela seguradora e o vínculo vem se renovando ano a
ano, o segurado tem o direito de se manter dentro dos parâmetros
estabelecidos, sob o risco de violação ao princípio da boa-fé objetiva.
Neste
caso, a Seção estabeleceu que os aumentos necessários para o
reequilíbrio da carteira têm de ser estabelecidos de maneira suave e
gradual, mediante um cronograma, do qual o segurado tem de ser
cientificado previamente.
SuicídioEm
2011, a Segunda Seção também definiu que, em caso de suicídio cometido
durante os dois primeiros anos de vigência do contrato de seguro de
vida, período de carência, a seguradora só estará isenta do pagamento se
comprovar que o ato foi premeditado (Ag 1.244.022).
De acordo
com a tese vencedora, apresentada pelo ministro Luis Felipe Salomão, o
novo Código Civil presume em regra a boa-fé, de forma que a má-fé é que
deve sempre ser comprovada, ônus que cabe à seguradora. No caso
analisado, o contrato de seguro de vida foi firmado menos de dois anos
antes do suicídio do segurado, mas não ficou provado que ele assinara o
contrato já com a intenção de se matar e deixar a indenização para os
beneficiários.
Plano de saúde Em outubro
do ano passado, a Terceira Turma apontou ofensa ao princípio da boa-fé
objetiva quando o plano de saúde reajusta mensalidades em razão da morte
do cônjuge titular. No caso, a viúva era pessoa de 77 anos e estava
vinculada à seguradora como dependente do marido fazia mais de 25 anos
(AREsp 109.387).
A seguradora apresentou novo contrato, sob novas
condições e novo preço, considerado exorbitante pela idosa. A sentença,
que foi restabelecida pelo STJ, considerou “evidente” que o
comportamento da seguradora feriu o CDC e o postulado da boa-fé
objetiva, “que impõe aos contratantes, desde o aperfeiçoamento do ajuste
até sua execução, um comportamento de lealdade recíproca, de modo a que
cada um deles contribua efetivamente para o atendimento das legítimas
expectativas do outro, sem causar lesão ou impingir desvantagem
excessiva”.
Em precedente (Ag 1.378.703), a Terceira Turma já
havia se posicionado no mesmo sentido. Na ocasião, a ministra Nancy
Andrighi afirmou que, se uma pessoa contribui para um seguro-saúde por
longo tempo, durante toda a sua juventude, colaborando sempre para o
equilíbrio da carteira, não é razoável, do ponto de vista jurídico,
social e moral, que em idade avançada ela seja tratada como novo
consumidor. “Tal postura é flagrantemente violadora do princípio da
boa-fé objetiva, em seu sentido de proteção à confiança”, afirmou.
Defeito de fabricaçãoNo
ano passado, a Quarta Turma definiu que, independentemente de prazo
contratual de garantia, a venda de um bem tido por durável (no caso,
máquinas agrícolas) com vida útil inferior àquela que legitimamente se
esperava, além de configurar defeito de adequação (artigo 18 do Código
de Defesa do Consumidor), evidencia quebra da boa-fé objetiva que deve
nortear as relações contratuais, sejam de consumo, sejam de direito
comum (REsp 984.106).
“Constitui, em outras palavras,
descumprimento do dever de informação e a não realização do próprio
objeto do contrato, que era a compra de um bem cujo ciclo vital se
esperava, de forma
legítima e razoável, fosse mais longo”, concluiu o ministro Luis Felipe Salomão, relator do recurso.
Bem de família em garantiaContraria
a boa-fé das relações negociais o livre oferecimento de imóvel, bem de
família, como garantia hipotecária. Esta é a jurisprudência do STJ. Num
dos precedentes, analisado em 2010, a relatora do recurso, ministra
Nancy Andrighi, entendeu que o ato equivalia à entrega de uma garantia
que o devedor, desde o início, sabe ser inexequível, esvaziando-a por
completo (REsp 1.141.732).
Por isso, a Terceira Turma decidiu que
o imóvel deve ser descaracterizado como bem de família e deve ser
sujeitado à penhora para satisfação da dívida afiançada. No caso, um
casal figurava como fiador em contrato de compra e venda de uma
papelaria adquirida pelo filho. Os pais garantiram a dívida com a
hipoteca do único imóvel que possuíam e que lhes servia de residência.
Comportamento sinuoso O
princípio da boa-fé objetiva já foi aplicado diversas vezes no STJ no
âmbito processual penal. Ao julgar um habeas corpus (HC 143.414) em
dezembro passado, a Sexta Turma não reconheceu a ocorrência de nulidade
decorrente da utilização de prova emprestada num caso de condenação por
tráfico de drogas. Isso porque a própria defesa do réu concordou com o
seu aproveitamento em momento anterior.
A relatora, ministra
Maria Thereza de Assis Moura, lembrou que a relação processual é pautada
pelo princípio da boa-fé objetiva e invocou a proibição de
comportamentos contraditórios. “Tendo em vista o primado em foco, por
meio do qual à ordem jurídica repugna a ideia de comportamentos
contraditórios, tendo em vista a anuência fornecida pela defesa técnica,
seria inadequado, num plano mesmo de eticidade processual, a declaração
da nulidade”, concluiu a ministra.
Em outro caso (HC 206.706),
seguindo voto do ministro Og Fernandes, a Sexta Turma reconheceu haver
comportamento contraditório do réu que solicitou com insistência um
encontro com o juiz e, após ser atendido, fora das dependências do foro,
alegou suspeição do magistrado em razão dessa reunião.
Mitigar o prejuízoOutro
subprincípio da boa-fé objetiva foi invocado pela Sexta Turma para
negar um habeas corpus (HC 137.549) – o chamado dever de mitigar a perda
(
duty to mitigate the loss). No caso, o réu foi condenado a
prestar serviços à comunidade, mas não compareceu ao juízo para dar
início ao cumprimento, porque não foi intimado em razão de o endereço
informado no boletim de ocorrência estar incorreto.
O juízo de
execuções ainda tentou a intimação em endereço constante na Receita
Federal e na Justiça Eleitoral, sem sucesso. Por isso, a pena foi
convertida em privativa de liberdade. A ministra Maria Thereza de Assis
Moura, ao analisar a questão, invocou a boa-fé objetiva. Para ela, a
defensoria pública deveria ter informado ao juízo de primeiro grau o
endereço correto do condenado.
“A bem do dever anexo de
colaboração, que deve empolgar a lealdade entre as partes no processo,
cumpriria ao paciente e sua defesa informar ao juízo o endereço, para
que a execução pudesse ter o andamento regular, não se perdendo em
inúteis diligências para a sua localização”, afirmou a magistrada.
Boa-fé da administraçãoO
princípio da boa-fé permeia a Constituição e está expresso em várias
leis regedoras das atividades administrativas, como a Lei de Licitação,
Concessões e Permissões de Serviço Público e a do Regime Jurídico Único
dos Servidores Públicos.
A doutora em direito administrativo
Raquel Urbano de Carvalho alerta que, se é certo que se exige boa-fé do
cidadão ao se relacionar com a administração, não há dúvida da sua
indispensabilidade no tocante ao comportamento do administrador público.
E
quando impõe obrigações a terceiros, “é fundamental que a administração
aja com boa-fé, pondere os diferentes interesses e considere a
realidade a que se destina sua atuação”. Para a doutrinadora, é direito
subjetivo público de qualquer cidadão um mínimo de segurança no tocante à
confiabilidade ético-social das ações dos agentes estatais.
Desistência de ações A
julgar mandado de segurança impetrado por um policial federal (MS
13.948), a Terceira Seção decidiu que a conduta da administração atacada
no processo ofendeu os princípios da confiança e da boa-fé objetiva. No
caso, o ministro da Justiça exigiu a desistência de todas as ações
antes de analisar os pedidos de apostilamento do policial e,
posteriormente, indeferiu a pretensão ao fundamento de inexistência de
provimento judicial que amparasse a nomeação.
Conforme destacou o
ministro Sebastião Reis Júnior, relator do caso, a atitude impôs
prejuízo irrecuperável ao servidor: “Apesar da incerteza quanto ao
resultado dos requerimentos, o pedido de desistência acarretou a
extinção dos processos, com resolução do mérito, inclusive da demanda
que lhe garantia a nomeação ao cargo, ceifando qualquer possibilidade de
o impetrante ter um julgamento favorável, pois a apelação não havia,
ainda, sido julgada.”
Em seu voto, o ministro ainda destacou
doutrina que invoca como justificativa à proteção da boa-fé na esfera
pública a impossibilidade de o estado violar a confiança que a própria
presunção de legitimidade dos atos administrativos traz, agindo contra
factum proprium.
Verbas a título precárioA
Lei 8.112/90 prevê a reposição ao erário do pagamento feito
indevidamente ao servidor público. O STJ tem decidido neste sentido,
inclusive, quando os valores são pagos aos servidores em decorrência de
decisão judicial de característica precária ou não definitiva (REsp
1.263.480).
No julgamento do AREsp 144.877, a Segunda Turma
determinou que um servidor público que recebeu valores indevidos, por
conta de decisão judicial posteriormente cassada, devolvesse o dinheiro à
Fazenda Pública.
Essa regra, contudo, tem sido interpretada pela
jurisprudência com alguns temperamentos, principalmente em decorrência
de princípios como a boa-fé. Sua aplicação, por vezes, tem impedido que
valores que foram pagos indevidamente sejam devolvidos. É o caso, por
exemplo, do recebimento de verbas de boa-fé, por servidores públicos,
por força de interpretação errônea, má aplicação da lei ou erro da
administração.
“Objetivamente, a fruição do que foi recebido
indevidamente está acobertada pela boa-fé, que, por sua vez, é
consequência da legítima confiança de que os valores integravam o
patrimônio do beneficiário”, esclareceu o ministro Humberto Martins, no
mesmo julgamento.