28 de setembro de 2014, 08:00
Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Uma síntese da tradição acadêmica da análise econômica do direito, bem como algumas vantagens da abordagem, pode ser colhida em um de seus principais mentores, Richard Posner. Refiro-me a ensaio de abertura do livro Frontiers of Legal Theory[1], já traduzido, publicado no Brasil com o título Fronteiras da Teoria do Direito[2]. Posner esclarece alguns pontos dessa tradição de análise realista do Direito, que radica no utilitarismo inglês. O ensaio, sugestivamente, denomina-se A Teoria Econômica do Direito, de Bentham a Becker. Posner tem como ponto de partida a característica interdisciplinar que marca o campo da análise econômica do direito[3].
Para Posner, um lapso de duzentos anos separa os dois nomes mais importantes desse campo de estudos: Jeremy Bentham e Gary Becker. Ambos dividem as mesmas percepções, quanto à apreensão do modelo econômico que marca o comportamento humano[4]. A insurgência contra a casualidade histórica é o traço comum que une Bentham e Becker[5]. Relações sociais e econômicas são construções culturais que modelam arranjos institucionais.
De um ponto de vista mais recente, a chamada análise econômica do direito, prossegue Posner, teria surgido em algum momento entre 1958 e 1973[6]. Em 1958 iniciou-se a publicação da revista Journal of Law and Economics; em 1973 tem-se a primeira edição do célebre livro de Posner, Economic Analysis of Law, ainda não traduzido para o português. Nesse interregno, em 1961, a importância de um artigo de Ronald Coase sobre custos sociais, bem como de outro artigo de Guido Calabresi sobre torts e responsabilidade civil[7].
Ainda que Posner reconheça a dificuldade em se fixar uma relação causal entre Bentham e a análise econômica do direito, insiste que o movimento (se assim pode se definir o conjunto de pesquisadores não metafísicos que se afinam com a ideia) tenha no filósofo inglês uma grande fonte de inspiração[8]. A relação entre direito e economia seria antiga.
Segundo Posner, Hobbes discutia o tema da propriedade no século XVII, agudizando sua análise política e jurídica com dados objetivamente econômicos. David Hume e Adam Smith também se preocuparam com o papel do direito na construção da realidade econômica[9]. Jeremy Bentham estudou as relações entre crime e punição, a partir de uma teorização substancialmente econômica[10].
Em 1968, Gary Becker publicou um ensaio sobre criminalidade, no qual revisitou o filósofo inglês[11]. Nesse ensaio, Becker insistiu que todos os campos do direito poderiam ser estudados e iluminados pelas lentes da economia[12]. Vários estudos que vincularam direito e economia, especialmente a partir da década de 1970, eram focados em temas de competição e de monopólio[13].
A análise econômica do direito revela-se em aspectos positivos (descritivos) e normativos[14]. Pretende explicar e prever o comportamento dos agentes do sistema normativo (especialmente juízes, de onde o vínculo com o realismo jurídico norte-americano); ocupa-se também com aspectos procedimentais e institucionais dos sistemas normativos[15]. No limite, há função também transformadora, no sentido de que a análise econômica do direito também se presta para melhorar o ambiente normativo[16]. Posner constata também que a desregulamentação e o livre mercado devem muito ao empreendimento conjunto dos teóricos norte-americanos da análise econômica do direito[17].
Posner também reconhece as críticas que o movimento recebe; a análise econômica do direito já foi identificada como arma ideológica do capitalismo, como modelo conceitual egoísta, veiculadora de concepção reducionista e não realista da motivação humana: seus adeptos seriam cínicos, pessimistas, conservadores[18].
Porém, Posner argumenta no sentido de que somos racionais em nossas interações sociais[19]. Tomando como exemplo o ambiente acadêmico universitário, Posner ponderou que alunos tratam notas como preços; assim, a menos que a administração universitária intervenha, professores de baixa qualidade, com o objetivo de obterem um maior número de alunos (nas faculdades de direito norte-americanas os alunos escolhem as disciplinas que irão cursar, e os respectivos professores) irão compensar o baixo nível do curso com notas mais altas; isto é, segundo Posner, esses professores aumentam o preço que os docentes pagam pelos discentes[20].
Posner enumera vantagens que a análise econômica do direito oferece aos observadores da realidade social. Em primeiro lugar, propicia-se abordagem supostamente neutra em assuntos politicamente controversos, ainda que esses problemas sejam construídos de um ponto de vista jurídico. Segundo Posner, professores de direito falimentar geralmente não seriam defensores intransigentes dos credores ou dos devedores; o economista não está em nenhum dos lados, apenas busca a solução mais eficiente[21].
Posner também acredita que a abordagem econômica do direito geralmente dissolve antinomias marcadas por forte disputa; para Posner, a racionalidade implica em tomada de decisões, ainda que as pessoas decidam em condições de profunda incerteza[22]. Doutrinas jurídicas e princípios econômicos, segundo Posner, poderiam convergir em fórmulas institucionais simétricas: todos ganhariam.
Posner recorda que quando iniciou seus estudos de direito este último mais lembrava um conjunto de regras completamente sem relação, de procedimentos e de instituições — a economia poderia revelar uma coerência considerável nas estruturas do direito[23]. Lembrando Coase, para quem o direito teria a função de minimizar os custos de transação, definindo com clareza os direitos de propriedade, Posner insiste na necessária convergência entres esses dois campos das ciências sociais aplicadas.
[1] Posner, Richard, Frontiers of Legal Theory, Cambridge: Harvard University Press, 2004. No presente ensaio as citações do texto de Posner foram colhidas na versão original em inglês.
[2] Posner, Richard, Fronteiras da Teoria do Direito, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. Tradução de Evandro Ferreira e Silva, Jefferson Luiz Camargo, Paulo Salles e Pedro Sette-Câmara.
[3] Posner, Richard, cit., p. 31.
[4] Posner, Richard, cit., loc. cit.
[5] Posner, Richard, cit., p. 32.
[6] Posner, Richard, cit., loc. cit.
[7] Posner, Richard, cit., p. 34.
[8] Posner, Richard, cit., p. 33.
[9] Posner, Richard, cit., p. 33.
[10] Posner, Richard, cit., p. 34.
[11] Posner, Richard, cit., loc. cit.
[12] Posner, Richard, cit., loc. cit.
[13] Posner, Richard, cit., loc. cit.
[14] Posner, Richard, cit., p. 35.
[15] Posner, Richard, cit., loc. cit.
[16] Posner, Richard, cit., loc. cit.
[17] Posner, Richard, cit., loc. cit.
[18] Posner, Richard, cit., p. 38.
[19] Posner, Richard, cit., p. 35.
[20] Posner, Richard, cit., p. 36.
[21] Posner, Richard, cit., pp. 36-37.
[22] Posner, Richard, cit., p. 37.
[23] Posner, Richard, cit., p. 40.
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-doutor em Teoria Literária pela Universidade de Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 28 de setembro de 2014, 08:00
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