“Sei muito bem o que quero e para onde vou”: o governo dos juristas
O ideal platônico de uma sofocracia, o governo dos sábios, defendido no livro A república, fracassou quando Platão tentou implementá-lo na Sicília, sob o reinado de Dionísio I, o tirano de Siracusa. Platão terminou preso e vendido como escravo pelo rei, que se irritara com o filósofo e seus planos de transformar Siracusa em um “estado platônico”.
Algo próximo de um “governo de professores” começou a existir na República Portuguesa, em 1928, quando assumiu o ministério das Finanças o professor Antônio de Oliveira Salazar (1889-1970), catedrático de Economia Política, Ciência das Finanças e Economia Social da Universidade de Coimbra. Licenciado em Direito no ano de 1914, com a altíssima nota de 19 valores (algo como um 9,5), tendo-se convertido posteriormente em um dos mais jovens catedráticos da história de Coimbra.
Com a crise econômica que assolava Portugal, governado por uma ditadura militar, ele foi chamado pelo general Oscar Carmona, então presidente da República, para pôr ordem nas finanças nacionais. Ao ser empossado, proferiu o célebre discurso, que ficou marcado pela frase: “Sei muito bem o que quero e para onde vou, mas não se me exija que chegue ao fim em poucos meses. No mais, que o País estude, represente, reclame, discuta, mas que obedeça quando se chegar à altura de mandar”[1].
O jovem scholar, filho de camponeses arrendatários de terras de um fidalgote rural de Santa Comba, na região vinícola do Dão, é o símbolo da transformação social ocorrida em terras portuguesas após a virada do século XIX. Embora houvesse, desde meados do Oitocentos, a formação de uma burguesia e de um proletariado no país, o acesso aos altos postos militares, diplomáticos e da burocracia real eram franqueados à nobreza, embora esse conceito fosse mais elástico em um país com quase mil anos de história como Estado nacional. Em quase todo lugar, poder-se-ia alegar a existência de “alguns avos de sangue godo”, como se dizia à época.
Em 1910, proclamou-se a República Portuguesa, advinda do brutal assassínio del-rey D. Carlos e de seu herdeiro o príncipe real D. Luís Felipe em 1908. Os novos senhores do país acenaram aos donos dos meios de produção que a aliança Estado-burguesia seria conservada. Isso não impediu que Portugal atravessasse anos difíceis, com rebeliões, golpes de Estado e a sangrenta participação na Primeira Guerra Mundial, onde os batalhões portugueses foram praticamente dizimados em combates como a Batalha do Lys, tudo para se honrar a Aliança Luso-Inglesa de 1373, o mais antigo tratado internacional em vigor no mundo.
Novos homens eram necessários para ocupar postos importantes no Estado português, que ainda conservava um império colonial em África e Ásia. E Salazar era um desses. A universidade constituiu-se no meio privilegiado de acesso a esses “novos homens” a um mundo anteriormente dedicado a aristocratas, clérigos e filhos terceiros da burguesia.
Em pouco tempo, Salazar recuperou as finanças portuguesas e, à custa do prestígio adquirido com esse inesperado êxito, passou a controlar paulatinamente o orçamento de outras pastas ministeriais. Ato contínuo, foi-se elevando no gabinete até assumir a presidência do Conselho de Ministros, equivalente a um primeiro-ministro, e, finalmente, tornou-se o ditador virtual da nação. Apesar de eleições de fachada e da conservação da presidência da República em poder dos militares, Salazar foi eliminando ou mitigando as forças que lhe podiam fazer oposição. Enganou os monarquistas, apaziguou a Igreja com uma concordata e jogou os líderes militares uns contra os outros.
Salazar conduziu o país a uma ditadura cada vez mais forte, o que foi facilitado por sua habilidade em se manter fora da Segunda Guerra Mundial e pela guerra fria pós-1945, que o colocou na posição de um mal menor no cenário internacional. Era melhor um ditador como ele do que a ascensão comunista em Portugal e suas colônias.
Nos anos 1960, Portugal envolveu-se totalmente nas guerras coloniais em África. Ao passo em que França e Reino Unido descolonizavam seus antigos impérios. Salazar manteve-se aferrado ao ideal de um Portugal uno, transnacional e pluricontinental. Com a mesma coragem de seus antepassados, milhares de soldados portugueses tombaram em defesa de uma causa perdida. Graças a um acidente, Salazar perdeu a consciência em 1968 e foi sucedido pelo catedrático de Direito Administrativo Marcelo Caetano, até que este veio a ser derrubado em 1974 na Revolução dos Cravos.
Os governos salazarista e marcelista foram, em sua maioria, compostos por catedráticos das Universidades de Lisboa e de Coimbra. Evidentemente que eram docentes de várias áreas do conhecimento, como Direito, Engenharia, Medicina ou Economia. Para nós interessam apenas os professores de Direito. E eles foram muitos! Antonio Costa Pinto, ao examinar o período de 1933-1945, apresenta dados interessantes sobre a composição dos ministérios de Salazar:[2]
a) A média de idade de 44 anos, compatível com a juventude do líder, era esta: “25,7% dos ministros tinham entre 20 e 29 anos, 48% tinham entre 40 e 49 anos e apenas 25,7% tinham mais de 50 anos”. Sendo que “se fossem apenas incluídos os ministros civis, a média baixaria, pois era a componente militar que fazia subir a idade média, com a presença de oficiais generais activos durante a ditadura militar e mais velhos, em geral, do que a elite civil”.
b) Do total, 40% dos ministros eram professores universitários. Em um segundo lugar, estavam os militares (28,6%), por razões óbvias. Desses docentes, a grande maioria era formada por juristas: “A Universidade de Coimbra continuava ainda neste período a assegurar a grande maioria dos licenciados em Direito membros do governo (71%) perante a mais jovem Faculdade de Direito de Lisboa (28,5%)”.
Em estudos de outra procedência, tem-se que 80% dos professores de Direito de Coimbra ocuparam posições políticas de relevo no regime salazarista, enquanto 66,7% dos catedráticos de Lisboa exerceram tais ofícios.[3]
Muitos juristas famosos no Brasil integraram os sucessivos gabinetes de Salazar e de Marcelo Caetano. Citem-se alguns: a) Ministros da Educação: Fernando Andrade Pires de Lima, Manuel Rodrigues Junior e Inocêncio Galvão Teles[4]; b) Ministros da Justiça: Adriano Pais da Silva Vaz Serra (mentor do Código Civil português de 1967), João de Matos Antunes Varela, Mário Júlio Brito de Almeida Costa (um dos mais jovens ministros do regime). Não se incluíram aqui os cargos de reitor, vice-ministro, governador ultramarino e outras funções de relevo.
A viragem das faculdades de Direito e suas relações atuais com o poder
Antes que se façam aquelas ilações fáceis entre conservadorismo e Direito ou entre a ditadura e os professores, é necessário demarcar alguns espaços.
O primeiro é que não se compreende a situação política de Portugal sem se observar a profunda transformação operada nos cursos jurídicos por Guilherme Alves Moreira (1861-1922), catedrático de Direito Civil da Universidade de Coimbra, responsável pela viragem das faculdades de Direito portuguesas da influência francesa para a alemã. Esse processo está bem descrito no item 4.2. de meu artigo A influência do BGB e da doutrina alemã no Direito Civil brasileiro do século XX. Esse voltar-se para a Alemanha trouxe consigo a importação dos modelos germânicos e não apenas de conteúdo dogmático, mas também a representação social do docente universitário. Dito de outro modo, a ideologia dos “professores mandarins” da Alemanha chegou a Portugal e, com ela, a autoconsciência de uma classe que poderia, assim como naquele país, ser usada para substituir as tradicionais elites aristocráticas ou religiosas nas grandes funções do Estado.
Salazar não inventou essa ideologia dos “professores mandarins”. Ele próprio é um fruto desse novo modelo.
O segundo espaço demarcável liga-se ao primeiro, da ascensão social dos catedráticos não aristocratas. Assim como na Alemanha, o vocativo “Senhor Professor Doutor” (ou a forma sincopada “Sotô”) transmudou-se em título de nobreza republicano. O respeito, a deferência e a precedência acarretados por uma cátedra universitária suplantaram, em certos círculos, idênticos efeitos causados por um título de conde, barão ou marquês. Com isso, muitos jovens de classes sociais menos privilegiadas encontraram na universidade uma forma de singular ascensão meritocrática.
Em processos históricos como o português, dá-se algo quase universalmente verificável: jovens competentes, com fortes rancores por humilhações sofridas em sua estóica corrida por ascensão (Salazar foi impedido de namorar a filha do fidalgote rural de quem seu pai era um feitor, por causa da assimetria social entre ele e a moça), são facilmente cooptáveis por regimes de força. Isso aconteceu na Alemanha nazista e também no Brasil, especialmente no período de 1964-1984, além do Chile e de outros países que viveram situações afins no século XX. No caso português, houve um ingrediente adicional: um catedrático era o próprio ditador. Nada menos surpreendente do que seus colegas o auxiliarem na governação do país. Ele era um deles afinal.
Com o fim da ditadura, Portugal continuou a ser um país dos catedráticos. A radicalização do chamado “processo revolucionário em curso” — PREC, que durou até o contragolpe de 25 de novembro de 1975, afastou dezenas de catedráticos tidos como ligados ao regime e permitiu a ascensão de jovens professores diante do vácuo causado pelos chamados “saneamentos”. Os docentes eram “saneados”, ou seja, exonerados de seus cargos sem o devido processo legal. Muitos deles fugiram para o Brasil e aqui lecionaram em grandes universidades, como o próprio Marcelo Caetano. Orlando Gomes e Aliomar Baleeiro, pessoas que não gozavam das graças do regime militar brasileiro, foram os anfitriões de muitos colegas portugueses. Ideologias antípodas não impediram a demonstração de solidariedade.
Diferentemente do caso alemão, onde se deu a cumplicidade entre os jovens professores e o regime, no Portugal pós-Revolução dos Cravos, a ocupação dessas cátedras operou-se por simples efeito do vácuo nas universidades. É também importante registrar que muitos desses acadêmicos foram orientados ou estudaram durante a ditadura e conseguiram manter-se à margem da perseguição política, mesmo sendo socialistas (a oposição de centro-esquerda) ou monarquistas e liberais (a oposição ao regime formada pela centro-direita). Nas faculdades de Direito, com maior ou menor intensidade, houve um espírito de corpo entre os professores de diferentes ideologias.
As faculdades de Direito portuguesas, desde a década de 1980, convivem com docentes de variegada procedência, inclusive alguns dos “saneados” que retornaram ao país e retomaram seus cargos. Existe a clivagem político-partidária, assim como na Alemanha, especialmente notável pelas simpatias que se dividem entre o Partido Socialista (centro-esquerda) e o Partido Social Democrata, em aliança com o Partido Popular-Centro Democrático Social (centro-direita).
Jovens de 1974-1975 são hoje os jubilados catedráticos Jorge Miranda (membro da Assembleia Constituinte) e José Joaquim Gomes Canotilho. Sérvulo da Cunha, Antonio Castanheira Neves, Vital Moreira, Avelãs Nunes, José de Oliveira Ascensão, atualmente aposentados, somam-se a nomes como Antonio Pinto Monteiro, Rui Figueiredo Marcos, Jónatas Machado, Marcelo Rebelo de Souza, Antonio Menezes Cordeiro, Dario Moura Vicente, Eduardo Véra-Cruz Pinto e outros ilustres catedráticos que são conhecidos e respeitados no Brasil e em outros países.
A elite política portuguesa, embora não mais com a predominância do passado, ainda recolhe muitos de seus quadros ministeriais nas universidades, de modo particular nas faculdades de Direito. Em novas bases, as relações com o poder político se conservaram muito próximas do que se dá na Alemanha contemporânea.
Um dos pontos mais impressionantes é a popularidade e o respeito social dos catedráticos portugueses. Marcelo Rebelo de Souza, catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, foi ministro para Assuntos Parlamentares do 8o Governo Constitucional, é comentarista dominical de um dos programas de maior audiência da televisão portuguesa e provável candidato à presidência da República em 2016, com altos índices nas pesquisas eleitorais. Jorge Miranda, catedrático jubilado da Universidade de Lisboa, um dos constitucionalistas mais famosos no Brasil, é frequentemente convidado a falar sobre a situação portuguesa nos meios de comunicação. Este colunista, que foi seu orientando no estágio pós-doutoral realizado em Lisboa, testemunhou, em várias ocasiões, cenas públicas em restaurantes ou nas ruas, nas quais Miranda era saudado pelos populares como seria no Brasil uma estrela de futebol.
Até breve
Nesta primeira coluna sobre o ensino jurídico em Portugal, buscou-se apresentar ao leitor um panorama histórico sobre a construção do “moderno” conceito de docente universitário naquele país, com todas as implicações que isso possui para a compreensão do modelo.
Na próxima semana, a universidade portuguesa e a estrutura docente.
[1] Discurso proferido aos 27 de abril de 1928, no ato de posse de Antonio de Oliveira Salazar no Ministério das Finanças. A íntegra está disponível aqui: http://www.arqnet.pt/portal/discursos/abril01.html. Acesso em 16-2-2015.
[2] PINTO, António Costa. O império do professor: Salazar e a elite ministerial do Estado Novo (1933-1945). Análise Social, v. 35 (157), p.1-21, 2000. As passagens entre aspas são citações literais deste autor.
[3] FARIA, Cristina Azeredo. A elite universitária da ditadura. História. n.23-24, ago.-set. 1996. p.48-49.
[4] BRAGA, Paulo Drumond. Os ministros da Educação Nacional (1936-1974). Sociologia de uma função. Revista Lusófona de Educação. v. 16, p. 23-38, 2010.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.
Revista Consultor Jurídico, 25 de fevereiro de 2015, 8h00