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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Como se produz um jurista em alguns lugares do mundo? O modelos português (Parte 5)

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

“Sei muito bem o que quero e para onde vou”: o governo dos juristas

O ideal platônico de uma sofocracia, o governo dos sábios, defendido no livro A república, fracassou quando Platão tentou implementá-lo na Sicília, sob o reinado de Dionísio I, o tirano de Siracusa. Platão terminou preso e vendido como escravo pelo rei, que se irritara com o filósofo e seus planos de transformar Siracusa em um “estado platônico”. 

Algo próximo de um “governo de professores” começou a existir na República Portuguesa, em 1928, quando assumiu o ministério das Finanças o professor Antônio de Oliveira Salazar (1889-1970), catedrático de Economia Política, Ciência das Finanças e Economia Social da Universidade de Coimbra. Licenciado em Direito no ano de 1914, com a altíssima nota de 19 valores (algo como um 9,5), tendo-se convertido posteriormente em um dos mais jovens catedráticos da história de Coimbra.

Com a crise econômica que assolava Portugal, governado por uma ditadura militar, ele foi chamado pelo general Oscar Carmona, então presidente da República, para pôr ordem nas finanças nacionais. Ao ser empossado, proferiu o célebre discurso, que ficou marcado pela frase:  “Sei muito bem o que quero e para onde vou, mas não se me exija que chegue ao fim em poucos meses. No mais, que o País estude, represente, reclame, discuta, mas que obedeça quando se chegar à altura de mandar”[1]

O jovem scholar, filho de camponeses arrendatários de terras de um fidalgote rural de Santa Comba, na região vinícola do Dão, é o símbolo da transformação social ocorrida em terras portuguesas após a virada do século XIX. Embora houvesse, desde meados do Oitocentos, a formação de uma burguesia e de um proletariado no país, o acesso aos altos postos militares, diplomáticos e da burocracia real eram franqueados à nobreza, embora esse conceito fosse mais elástico em um país com quase mil anos de história como Estado nacional. Em quase todo lugar, poder-se-ia alegar a existência de “alguns avos de sangue godo”, como se dizia à época.

Em 1910, proclamou-se a República Portuguesa, advinda do brutal assassínio del-rey D. Carlos e de seu herdeiro o príncipe real D. Luís Felipe em 1908. Os novos senhores do país acenaram aos donos dos meios de produção que a aliança Estado-burguesia seria conservada. Isso não impediu que Portugal atravessasse anos difíceis, com rebeliões, golpes de Estado e a sangrenta participação na Primeira Guerra Mundial, onde os batalhões portugueses foram praticamente dizimados em combates como a Batalha do Lys, tudo para se honrar a Aliança Luso-Inglesa de 1373, o mais antigo tratado internacional em vigor no mundo. 

Novos homens eram necessários para ocupar postos importantes no Estado português, que ainda conservava um império colonial em África e Ásia. E Salazar era um desses. A universidade constituiu-se no meio privilegiado de acesso a esses “novos homens” a um mundo anteriormente dedicado a aristocratas, clérigos e filhos terceiros da burguesia. 

Em pouco tempo, Salazar recuperou as finanças portuguesas e, à custa do prestígio adquirido com esse inesperado êxito, passou a controlar paulatinamente o orçamento de outras pastas ministeriais. Ato contínuo, foi-se elevando no gabinete até assumir a presidência do Conselho de Ministros, equivalente a um primeiro-ministro, e, finalmente, tornou-se o ditador virtual da nação. Apesar de eleições de fachada e da conservação da presidência da República em poder dos militares, Salazar foi eliminando ou mitigando as forças que lhe podiam fazer oposição. Enganou os monarquistas, apaziguou a Igreja com uma concordata e jogou os líderes militares uns contra os outros.

Salazar conduziu o país a uma ditadura cada vez mais forte, o que foi facilitado por sua habilidade em se manter fora da Segunda Guerra Mundial e pela guerra fria pós-1945, que o colocou na posição de um mal menor no cenário internacional. Era melhor um ditador como ele do que a ascensão comunista em Portugal e suas colônias.

Nos anos 1960, Portugal envolveu-se totalmente nas guerras coloniais em África. Ao passo em que França e Reino Unido descolonizavam seus antigos impérios. Salazar manteve-se aferrado ao ideal de um Portugal uno, transnacional e pluricontinental. Com a mesma coragem de seus antepassados, milhares de soldados portugueses tombaram em defesa de uma causa perdida. Graças a um acidente, Salazar perdeu a consciência em 1968 e foi sucedido pelo catedrático de Direito Administrativo Marcelo Caetano, até que este veio a ser derrubado em 1974 na Revolução dos Cravos.

Os governos salazarista e marcelista foram, em sua maioria, compostos por catedráticos das Universidades de Lisboa e de Coimbra. Evidentemente que eram docentes de várias áreas do conhecimento, como Direito, Engenharia, Medicina ou Economia. Para nós interessam apenas os professores de Direito. E eles foram muitos! Antonio Costa Pinto, ao examinar o período de 1933-1945, apresenta dados interessantes sobre a composição dos ministérios de Salazar:[2]

a) A média de idade de 44 anos, compatível com a juventude do líder, era esta: “25,7% dos ministros tinham entre 20 e 29 anos, 48% tinham entre 40 e 49 anos e apenas 25,7% tinham mais de 50 anos”. Sendo que “se fossem apenas incluídos os ministros civis, a média baixaria, pois era a componente militar que fazia subir a idade média, com a presença de oficiais generais activos durante a ditadura militar e mais velhos, em geral, do que a elite civil”.

b) Do total, 40% dos ministros eram professores universitários. Em um segundo lugar, estavam os militares (28,6%), por razões óbvias. Desses docentes, a grande maioria era formada por juristas: “A Universidade de Coimbra continuava ainda neste período a assegurar a grande maioria dos licenciados em Direito membros do governo (71%) perante a mais jovem Faculdade de Direito de Lisboa (28,5%)”. 

Em estudos de outra procedência, tem-se que 80% dos professores de Direito de Coimbra ocuparam posições políticas de relevo no regime salazarista, enquanto 66,7% dos catedráticos de Lisboa exerceram tais ofícios.[3]

Muitos juristas famosos no Brasil integraram os sucessivos gabinetes de Salazar e de Marcelo Caetano. Citem-se alguns: a) Ministros da Educação: Fernando Andrade Pires de Lima, Manuel Rodrigues Junior e Inocêncio Galvão Teles[4];  b) Ministros da Justiça: Adriano Pais da Silva Vaz Serra (mentor do Código Civil português de 1967), João de Matos Antunes Varela, Mário Júlio Brito de Almeida Costa (um dos mais jovens ministros do regime). Não se incluíram aqui os cargos de reitor, vice-ministro, governador ultramarino e outras funções de relevo.

A viragem das faculdades de Direito e suas relações atuais com o poder
Antes que se façam aquelas ilações fáceis entre conservadorismo e Direito ou entre a ditadura e os professores, é necessário demarcar alguns espaços.

O primeiro é que não se compreende a situação política de Portugal sem se observar a profunda transformação operada nos cursos jurídicos por Guilherme Alves Moreira (1861-1922), catedrático de Direito Civil da Universidade de Coimbra, responsável pela viragem das faculdades de Direito portuguesas da influência francesa para a alemã. Esse processo está bem descrito no item 4.2. de meu artigo A influência do BGB e da doutrina alemã no Direito Civil brasileiro do século XX. Esse voltar-se para a Alemanha trouxe consigo a importação dos modelos germânicos e não apenas de conteúdo dogmático, mas também a representação social do docente universitário. Dito de outro modo, a ideologia dos “professores mandarins” da Alemanha chegou a Portugal e, com ela, a autoconsciência de uma classe que poderia, assim como naquele país, ser usada para substituir as tradicionais elites aristocráticas ou religiosas nas grandes funções do Estado.

Salazar não inventou essa ideologia dos “professores mandarins”. Ele próprio é um fruto desse novo modelo.

O segundo espaço demarcável liga-se ao primeiro, da ascensão social dos catedráticos não aristocratas. Assim como na Alemanha, o vocativo “Senhor Professor Doutor” (ou a forma sincopada “Sotô”) transmudou-se em título de nobreza republicano. O respeito, a deferência e a precedência acarretados por uma cátedra universitária suplantaram, em certos círculos, idênticos efeitos causados por um título de conde, barão ou marquês. Com isso, muitos jovens de classes sociais menos privilegiadas encontraram na universidade uma forma de singular ascensão meritocrática.

Em processos históricos como o português, dá-se algo quase universalmente verificável: jovens competentes, com fortes rancores por humilhações sofridas em sua estóica corrida por ascensão (Salazar foi impedido de namorar a filha do fidalgote rural de quem seu pai era um feitor, por causa da assimetria social entre ele e a moça), são facilmente cooptáveis por regimes de força. Isso aconteceu na Alemanha nazista e também no Brasil, especialmente no período de 1964-1984, além do Chile e de outros países que viveram situações afins no século XX. No caso português, houve um ingrediente adicional: um catedrático era o próprio ditador. Nada menos surpreendente do que seus colegas o auxiliarem na governação do país. Ele era um deles afinal.

Com o fim da ditadura, Portugal continuou a ser um país dos catedráticos. A radicalização do chamado “processo revolucionário em curso” — PREC, que durou até o contragolpe de 25 de novembro de 1975, afastou dezenas de catedráticos tidos como ligados ao regime e permitiu a ascensão de jovens professores diante do vácuo causado pelos chamados “saneamentos”. Os docentes eram “saneados”, ou seja, exonerados de seus cargos sem o devido processo legal. Muitos deles fugiram para o Brasil e aqui lecionaram em grandes universidades, como o próprio Marcelo Caetano. Orlando Gomes e Aliomar Baleeiro, pessoas que não gozavam das graças do regime militar brasileiro, foram os anfitriões de muitos colegas portugueses. Ideologias antípodas não impediram a demonstração de solidariedade.

Diferentemente do caso alemão, onde se deu a cumplicidade entre os jovens professores e o regime, no Portugal pós-Revolução dos Cravos, a ocupação dessas cátedras operou-se por simples efeito do vácuo nas universidades. É também importante registrar que muitos desses acadêmicos foram orientados ou estudaram durante a ditadura e conseguiram manter-se à margem da perseguição política, mesmo sendo socialistas (a oposição de centro-esquerda) ou monarquistas e liberais (a oposição ao regime formada pela centro-direita). Nas faculdades de Direito, com maior ou menor intensidade, houve um espírito de corpo entre os professores de diferentes ideologias.

As faculdades de Direito portuguesas, desde a década de 1980, convivem com docentes de variegada procedência, inclusive alguns dos “saneados” que retornaram ao país e retomaram seus cargos. Existe a clivagem político-partidária, assim como na Alemanha, especialmente notável pelas simpatias que se dividem entre o Partido Socialista (centro-esquerda) e o Partido Social Democrata, em aliança com o Partido Popular-Centro Democrático Social (centro-direita).

Jovens de 1974-1975 são hoje os jubilados catedráticos Jorge Miranda (membro da Assembleia Constituinte) e José Joaquim Gomes Canotilho. Sérvulo da Cunha, Antonio Castanheira Neves, Vital Moreira, Avelãs Nunes, José de Oliveira Ascensão, atualmente aposentados, somam-se a nomes como Antonio Pinto Monteiro, Rui Figueiredo Marcos, Jónatas Machado, Marcelo Rebelo de Souza, Antonio Menezes Cordeiro, Dario Moura Vicente, Eduardo Véra-Cruz Pinto e outros ilustres catedráticos que são conhecidos e respeitados no Brasil e em outros países.

A elite política portuguesa, embora não mais com a predominância do passado, ainda recolhe muitos de seus quadros ministeriais nas universidades, de modo particular nas faculdades de Direito. Em novas bases, as relações com o poder político se conservaram muito próximas do que se dá na Alemanha contemporânea.

Um dos pontos mais impressionantes é a popularidade e o respeito social dos catedráticos portugueses. Marcelo Rebelo de Souza, catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, foi ministro para Assuntos Parlamentares do 8o Governo Constitucional, é comentarista dominical de um dos programas de maior audiência da televisão portuguesa e provável candidato à presidência da República em 2016, com altos índices nas pesquisas eleitorais.  Jorge Miranda, catedrático jubilado da Universidade de Lisboa, um dos constitucionalistas mais famosos no Brasil, é frequentemente convidado a falar sobre a situação portuguesa nos meios de comunicação. Este colunista, que foi seu orientando no estágio pós-doutoral realizado em Lisboa, testemunhou, em várias ocasiões, cenas públicas em restaurantes ou nas ruas, nas quais Miranda era saudado pelos populares como seria no Brasil uma estrela de futebol.

Até breve
Nesta primeira coluna sobre o ensino jurídico em Portugal, buscou-se apresentar ao leitor um panorama histórico sobre a construção do “moderno” conceito de docente universitário naquele país, com todas as implicações que isso possui para a compreensão do modelo.

Na próxima semana, a universidade portuguesa e a estrutura docente.

 


[1] Discurso proferido aos 27 de abril de 1928, no ato de posse de Antonio de Oliveira Salazar no Ministério das Finanças. A íntegra está disponível aqui: http://www.arqnet.pt/portal/discursos/abril01.html. Acesso em 16-2-2015.

[2] PINTO, António Costa. O império do professor: Salazar e a elite ministerial do Estado Novo (1933-1945). Análise Social, v. 35 (157), p.1-21,  2000. As passagens entre aspas são citações literais deste autor.

[3] FARIA, Cristina Azeredo. A elite universitária da ditadura. História. n.23-24, ago.-set. 1996. p.48-49.

[4] BRAGA, Paulo Drumond. Os ministros da Educação Nacional (1936-1974). Sociologia de uma função. Revista Lusófona de Educação. v. 16, p. 23-38, 2010.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Revista Consultor Jurídico, 25 de fevereiro de 2015, 8h00

 

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Dworkin contra o pragmatismo de Posner na decisão judicial

23 de fevereiro de 2015, 16h14

Por Marco Aurélio Marrafon

A problemática em torno da relação entre Direito e moral é antiga nas discussões de Teoria do Direito, estando presente desde os dilemas de Antígona, perpassa pelo debate moderno entre juspositivistas e jusnaturalistas até autores contemporâneos. Discussão famosa a respeito do assunto foi travada entre Herbert Hart e Ronald Dworkin. Enquanto Dworkin defendia uma conexão necessária entre Direito e Moral[1], Hart sustentava que, embora existam diferentes conexões contingentes, não há conexões necessárias entre o conteúdo do Direito e o da Moral[2].

Essa polêmica alcançou a teoria da decisão judicial, principalmente quando se começou a indagar se a teoria moral é útil aos magistrados no processo decisório e em que medida ela deve servir de parâmetro para pautar suas decisões.

Para dar conta dessa problemática, primeiramente há que se indagar: mas afinal, o que seria a teoria moral? Em breves palavras, a teoria moral se revela no discurso presente em práticas culturais que buscam dizer como as pessoas devem se comportar, ou seja, o discurso teórico que procura captar a correção do nosso agir no que diz respeito às nossas obrigações sociais. Essa teoria trata sobre questões como: “será sempre errado mentir ou descumprir uma promessa?”; “Será moral o infanticídio?”; “A discriminação sexual é correta?”, etc.

Sobre o tema da viabilidade de se adentrar em debates morais e de utilizar argumentos e raciocínios morais na decisão judicial complexa, recentemente, na condição de orientador, tive a satisfação de presidir a banca de defesa da dissertação de mestrado do acadêmico Bruno Farage, no âmbito do Programa de Pós-graduação em Direito da UERJ, intitulada “O pragmatismo antiteórico de Richard A. Posner e as respostas da teoria moral para a decisão judicial”.

Em seu trabalho, Farage resgatou a discussão travada entre Richard Posner, que defende uma “abordagem judicial pragmática”, isenta da utilização da teoria moral no processo decisório e os(jus)filósofos morais, argumentando acerca da importância da teoria moral e do raciocínio moral nas decisões judiciais difíceis, corrente capitaneada por Ronald Dworkin e reforçada por Charles Fried[3], Anthony Kronman[4], John T. Noonan Jr.[5] e Martha C. Nussbaum[6]

Seguirei, então, com a dissertação mencionada, para apresentar ao leitor os principais pontos desse debate e a forte crítica de Dworkin à pretendida assepsia moral do pragmatismo de Posner.

O ceticismo moral
Conforme bem destacado no texto de Bruno Farage, a abordagem “posneriana” se diz prática, instrumental, “voltada para frente”, ativista, cética, antidogmática e experimental. Essa perspectiva se intitula fruto de um pragmatismo cotidiano, que valoriza a visão prática das ações e que dá peso crucial às melhores consequências e ao uso da razoabilidade e racionalidade, ao invés de se importar com debates teóricos que possam levar a uma posição consensual ou “verdade moral”[7]. Sem embargo, a abordagem pragmática recorre constantemente à intuição para captar as “necessidades da época” - elevando a opinião pública a um patamar de destaque como guia para a decisão judicial -, assim como à orientação científica (empírica) dos juízes para suprir as lacunas inerentes aos casos difíceis que emergem no Direito.

Todavia, ela é hostil à ideia de utilizar a teoria moral ou qualquer outra teoria considerada “abstrata” para a orientação do processo de tomada de decisão judicial, o que por vezes justifica o rótulo de “antiteoria”.

Além da rejeição à teoria moral, a proposta “posneriana” também tem repulsa pelo “moralismo acadêmico”, o qual, segundo ele, representa a ética aplicada formulada por professores acadêmicos e muitas das vezes utilizada em forma de argumentos morais no processo de tomada de decisão judicial na seara constitucional. Posner acredita que os chamados moralistas acadêmicos buscam impor uma moral uniforme, encontrando-se essa questão explícita na discussão de casos constitucionais. Entretanto, tal ambição seria impossível de se concretizar. Como não há acordo no debate moral, o consenso é impossível neste campo.

A teoria moral seria apenas uma camuflagem, pois, na prática, essa concepção perece diante das intuições dos juízes nos casos concretos. Na leitura pragmática, os juízes são guiados por um “choque de intuições” ou da “oposição do interesse próprio” e, muitas vezes, principalmente em hard cases, a intuição e a crença que prevalecem sobre a teoria moral têm caráter político, ainda que não partidarista.

Daí os magistrados não precisarem tomar partido em questões morais: as questões morais podem ser suprimidas ou reformuladas como questões de interpretação, de competência institucional, de prática política, de separação de poderes ou de stare decisis, etc. Nesse sentido, o raciocínio moral deveria ser substituído pelo raciocínio em sua forma pura (toutcourt).

Para Farage, a antiteoria pragmatista tem sustentáculo em um posicionamento particular em relação à moral denominado de ceticismo moral pragmático. Esse posicionamento não crê na existência de um realismo moral, sendo a moral tão somente um fenômeno local e variável, não se poderia falar em moral universal. O pragmatismo posneriano também acredita em uma forma particular de relativismo moral, rejeitando a possibilidade do seu progresso. Consequentemente, essa posição descredencia a capacidade da moral em resolver conflitos, sejam eles morais ou jurídicos.

A oposição de Dworkin
Essa visão de que as decisões judiciais devem ser pragmáticas, evitando a teoria moral, é enfaticamente combatida por Dworkin. A começar pela crença de que a moral está intrinsecamente ligada ao Direito, crendo a concepção dworkiniana na existência de princípios morais que compõem o Direito como prova dessa conexão necessária.  Para Dworkin deve haver, no mínimo, uma fundamentação moral aparente que sustente a afirmação da existência de deveres jurídicos.

Ele considera o fato de que os direitos na sua dimensão jurídica devem ser entendidos como uma espécie de direitos morais, sendo essa tese um elemento crucial em sua Teoria do Direito. As constituições, igualmente, necessitam ser corretamente interpretadas como instâncias que impõem limites morais a quaisquer leis que possam ser validamente criadas. Para tanto, é preciso que a moral tenha um fundamento objetivo, o qual sirva de parâmetro para a correção (ou não) da decisão judicial.

Na leitura de Dworkin, algumas instituições são de fato injustas e algumas ações são realmente erradas, independentemente de existir uma grande quantidade de pessoas que acredite no contrário. Essa ideia se sustenta em seu posicionamento em relação à moral denominado de Independência metafísica do valor[8], significando que qualquer princípio moral, por mais que esteja completamente inserido em nossa cultura, língua e prática, pode ser falso. De outro lado, por mais que o princípio seja completamente rejeitado socialmente, pode ser verdadeiro.Os juízos de valor podem ser verdadeiros e a verdade independe da correspondência com entidades morais especiais. Como as verdades morais são próprias do campo da argumentação, não dependem de instâncias metafísicas, daí a “independência metafísica do valor”[9].

Segundo sua proposta, raciocinar em termos jurídicos significa aplicar a problemas jurídicos específicos uma ampla rede de princípios de natureza jurídica ou de moralidade política. Na prática, seria impossível refletir sobre a resposta correta referente a questões de direito a menos que se tenha refletido profundamente ou se esteja disposto analisar um vasto e abrangente sistema teórico de princípios complexos.

Conforme a abordagem teórica dworkiniana, uma alegação de direito é equivalente à afirmação de que um ou outro princípio oferece uma melhor justificação de algum aspecto da prática jurídica. Melhor no sentido interpretativo, isto é, porque tal princípio se ajusta de forma mais adequada e coerente à prática jurídica, colocando esta sob uma “luz mais favorável”.

Em seu ponto de vista, essa abordagem constitui descrição fidedigna do raciocínio jurídico e de como podemos discutir adequadamente algumas afirmações sobre o que é o Direito. O raciocínio jurídico, por sua vez, pressupõe um vasto campo de justificação, aí incluídos princípios bastante abstratos de moralidade política. Não é possível responder questões jurídicas profundas e controversas sem “mergulhar” no âmbito da teoria.

Nesse sentido, Dworkin entende que, ao se esconder em parâmetros ditos econômicos/racionais e parecer equilibrada, sensata e norte-americana, a abordagem prática de Posner oculta que a abordagem teórica é inevitável mesmo parecendo abstrata[10].

A própria “antiteoria” de Posner é, ela mesma, uma teoria moral. Para Dworkin resta claro que a antiteoria pragmatista é um juízo moral de natureza teórica e global, pois o fato de se questionar se algum tipo de afirmação moral oferece “base sólida” para outra já constitui, em si, uma questão moral.

Ainda, ao tratar dos hard cases, Dworkin propõe que, se os juízes tiverem de lidar com questões morais, seria um erro de categoria – como dizer a alguém com problemas com álgebra que tente usar um abridor de latas – dizer-lhes que resolvam essas questões através da história, da economia ou de qualquer outra técnica não moral, como sugere Posner.

Além de expor as incoerências e contradições da antiteoria pragmatista com os argumentos dos filósofos morais, Farage demonstra como a abordagem antiteórica é incompatível com a conjuntura justeórica ocidental contemporânea. Ao retirar de sua matriz teórica a força da leitura moral do Direito, Posner contribui para o relativismo decisório, escondendo-o em fórmulas ditas científicas na análise dos casos concretos.

No contexto brasileiro, isso se torna especialmente dramático, tendo em vista o fenômeno cada vez mais comum de decisões proferidas sem fundamentação teórica consistente. Pior, tais decisões, em regra, são justificadas por um apanhado de argumentos que fazem um arrazoado pseudo-pragmático, não raro violando expressamente o texto legal.    

De minha parte, penso que, por não levar a sério a decisão judicial e o fundo hermenêutico sempre nela presente, Posner ignora algo essencial: o juiz não sai do mundo para compreender o caso e, sem o pano de fundo existencial que demarca sua posição no mundo, não há perguntas. E a pergunta, como ensina Gadamer, é sempre o ponto determinante da resposta que se busca. É a partir dela [pergunta] que o intérprete/cientista opera. Daí não é possível saltar fora da linguagem e do contexto moral antes de formular os questionamentos de cada caso.  O juiz posneriano, quando pergunta, desde antes já estabeleceu parâmetros morais ainda que não perceba.

Assim, ignorar a teoria moral é, antes de tudo, fugir do enfrentamento fundamental para se evitar relativismos decisórios. Ademais, não se pode esquecer que a atual proposta antiteórica de Posner foi formulada após a sua Teoria Econômica no Direito ter sofrido importantes críticas, apontando-se, por exemplo, a inconsistência de adoções simplistas do conceito de eficiência. Desse modo, parece-me que o pragmatismo posneriano é uma tentativa de fugir do necessário debate de teorias do Direito e moral depois do razoável fracasso da sua reflexão teórica anterior.  


[1] Vide, p. ex. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 568 p.
[2] HART, H.L.A. O conceito de direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. 348 p.
[3]FRIED, Charles. Philosophy Matters. Harvard Law Review, Cambridge, v. 111, n. 7, p.1739- 1750, maio 1998.
[4]KRONMAN, Anthony Townsend. The Value of Moral Philosophy. Harvard Law Review, Cambridge, v. 1751, p.1751 -1767, 1 jan. 1998.
[5]NOONAN JUNIOR, John T.. Posner's Problematics. Harvard Law Review, Cambridge, v. 111, n. 7, p.1768-1775, maio 1998.
[6]NUSSBAUM, Martha C.. Still Worthy of Praise. Harvard Law Review, Cambridge, v. 111, n. 7, p.1776-1795, maio 1998.
[7]POSNER, Richard. Direito, pragmatismo e democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2010. 299 p.
[8]DWORKIN, Ronald. Justiça para ouriços. Coimbra: Almedina, 2012, p. 33-97.
[9]FARAGE, Bruno da Costa Felipe. O pragmatismo antiteórico de Richard A. Posner e as respostas da teoria moral para a decisão judicial. Dissertação de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ, 2015, p. 65.
[10]DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 116.

Marco Aurélio Marrafon é presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Revista Consultor Jurídico, 23 de fevereiro de 2015, 16h14

 

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Como se produz um jurista em alguns lugares do mundo? O modelo alemão (parte 4)

18 de fevereiro de 2015, 8h00

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

A usina de mandarins
O Império da China era governado “de cima para baixo por uma burocracia confuciana, recrutada com base no sistema de exames que talvez seja o mais exigente de toda a história”. De fato, “aqueles que aspiravam a uma carreira no serviço imperial tinham de se submeter a três etapas de exaustivas provas realizadas em centros de exame constituídos especialmente para essa finalidade, como aquele que ainda hoje pode ser visto em Nanquim: um enorme complexo murado contendo milhares de minúsculas celas um pouco maiores que o lavatório de um trem”. Nesses lugares tão estreitos, “o único movimento permitido era a entrada e saída de funcionários para repor comida e água, ou recolher dejetos humanos”. Alguns dos postulantes, “ficavam completamente loucos sob a pressão”.[1]  

Essa descrição dos exames para ingresso no serviço do Senhor dos Dez Mil anos, o Filho do Céu, o imperador da China, nos tempos da dinastia M’ing, é interessante para se comprovar que, mesmo com séculos e quilômetros de distância, a mística dos exames admissionais integra a cultura de diferentes povos. E ela vem sempre acompanhada de um momentum, um curto hiato de tempo no qual os candidatos têm de demonstrar sua capacidade para vencer o desafio imposto por examinadores. Seria este o coroamento de anos de preparação, com a abertura de um pedaço do céu para os vencedores e a oferta de uma vida mais perigosa e incerta para os derrotados.

Em certa medida, é este o ponto de culminância do ensino jurídico alemão: os famosos Exames de Estado (ou Exames Estatais). Se a universidade alemã criou os “professores mandarins”, como visto em coluna anterior (clique aqui para ler: http://www.conjur.com.br/2015-fev-04/direito-comparado-produz-jurista-alguns-lugares-mundo-parte), os estudantes de Direito da Alemanha tem de se submeter a um duríssimo ritual de passagem, que definirá o resto de suas vidas profissionais e que responde, em grande medida, pela elevação do nível médio de formação do jurista daquele país.

A regionalização do ensino jurídico na Alemanha
Os Länder alemães gozam de considerável autonomia legislativa e executiva em termos de ensino jurídico. Daí ser inadequado falar em modelo unificado de currículo e de avaliações para todo o país. Essas discrepâncias são acompanhadas pela assimetria qualitativa entre as faculdades de Direito de diversas regiões do país. Dito de modo mais explícito: até na Alemanha há cursos de qualidade irregular e não é o fato de ser uma instituição alemã que a torna de per si um centro de excelência jurídica. Dois pontos, contudo, são comuns aos Länder: a quase totalidade dos cursos são públicos (como visto na parte 2 desta série) e o acesso à universidade é amplo, desde que o candidato haja preenchido os requisitos de ingresso. Por essa razão, as salas lotadas e a dificuldade de se comparar o modelo alemão com o norte-americano, cujos alunos custeiam pessoalmente seus estudos em instituições privadas.

Feitas essas advertências, vamos aos Exames de Estado:

Os Exames de Estado e seu impacto na formação discente e nas carreiras jurídicas
Vamos fazer uma apresentação diferente nesta seção da coluna. Começaremos do final do processo para retornarmos ao início. O leitor compreenderá a vantagem desse método.

Segundo dados da Rede Europeia de Justiça em matéria civil e comercial[2], as carreiras jurídicas de magistrado, membro do Ministério Público e advogado possuem as seguintes características:

a) Magistratura. O juiz (Richter) é um agente político e sua seleção varia conforme as normas locais. Em geral, a escolha para os cargos de início de carreira dá-se pelo ministro da Justiça das unidades federadas ou por meio de um comitê de busca, cuja composição é variável, podendo haver juízes, advogado, políticos e personalidades de relevo. Os tribunais federais (por exemplo, o Bundesgerichtshof -Tribunal Federal de Justiça e o Bundesverwaltungsgericht - Tribunal Federal Administrativo) têm seus membros escolhidos por um comitê de busca federal e pelo ministro de Estado competente para o respectivo tribunal. Os magistrados federais devem sua nomeação ao presidente da República.

O cargo é privativo de nacionais alemães e não há, como visto, um concurso público para ingresso na carreira. É necessário, porém, que o candidato seja bacharel em Direito e haja sido aprovado no Segundo Exame de Estado. Suas notas nesses exames definirão fortemente suas possibilidades de ser escolhido para o cargo.

b) Ministério Público. Seus membros são denominados de magistrados do Ministério Público (Staatsanwälte). O processo de seleção é muito assemelhado ao dos juízes.  Não há autonomia administrativa e independência funcional. Em última análise, reportam-se ao ministro da Justiça do respectivo Lander ou da República Federal, conforme seus vínculos de carreira. Os requisitos para o cargo equivalem-se aos de juiz, tendo enorme peso a nota nos Exames de Estado. Não há restrição a que membros de outros Estados da União Europeia sejam membros do Ministério Público.

c) Advogados. São profissionais liberais e possuem status de “órgãos independentes da administração da justiça”. É necessário ter uma licença para o exercício da advocacia, obtida por meio de um processo pelas Rechtsanwaltskammern (Câmaras de Advogados).  O ingresso na advocacia exige do interessado o atendimento dos mesmos requisitos para o acesso à carreira de juiz, com ressalvas em se tratando de advogados europeus.  É necessária aprovação no Primeiro e no Segundo Exame de Estado.

Existem outras carreiras, mas fiquemos com essas três.

O que há de comum entre elas? A ausência da figura do concurso público, como nós o conhecemos no Brasil. Entretanto, o filtro de entrada é comum às três carreiras e ele tem natureza dupla: é aplicado no final do curso de bacharelado (Primeiro Exame de Estado) e depois do período de 2 anos que antecede à aplicação do Segundo Exame de Estado.  Não é sem causa que um jurista alemão coloque em suas páginas pessoais, currículo e, alguns, em seus livros que foram aprovados nesses exames, com indicação do local (pois há variações entre exames aplicados por este ou aquele Lander) e da nota obtida. É este o mais importante cartão de visitas de um jurista alemão para o mercado de trabalho. Pode-se dizer que esses exames são o combustível da usina de mandarins alemães.

O Primeiro Exame de Estado(PEE)[3]
Este primeiro exame, que é qualificado como “estatal” por ser aplicado pelos Länder e suas autoridades, de modo independente das universidades, exige dos candidatos a capacidade de solucionar problemas práticos (estudo dos casos) por meio da aplicação da lei. As questões conceituais, como bem anota Tilman Quarch, “só são feitas na parte das Zusatzfragen (perguntas adicionais)”. O paradigma das questões do Primeiro Exame é o trabalho de cassação, ou seja, a verificação de erros de direito, à semelhança do que faz o Superior Tribunal de Justiça no Brasil no exercício dessa competência, e do Tribunal Federal de Justiça alemão, de modo mais específico. Neste exame, o Gutachtenstil (estilo de parecer) é o predominante.[4]

As notas no PEE variam de zero a 18 pontos. Tilman Quarch, em tabela apresentada no referido artigo publicado na Revista de Direito Civil Contemporâneo, que nós coordenamos, demonstra a importância e o impacto desses resultados.[5] 0,15% dos candidatos ficam com notas entre 14-18 pontos. No intervalo de 11,50-13,99, estão 3,10% dos certamistas. A terceira faixa – 9-11,49 pontos – compreende 14,24%. O grosso das notas está nos intervalos de 6,50-8,99 (26,78%), 4,00-6,49(26,78) e 1,50-3,99 mais 0-1,49 (28,95).[6] 

O PEE é aplicado por tribunais locais (v.g. Renânia do Norte-Vestefália) ou por um órgão do Ministério da Justiça do Lander (v.g. Baixa Saxônia), cabendo sua elaboração e correção por comissões de variável composição (juízes, magistrados do Ministério Público, advogados do Estado, professores.

O Segundo Exame de Estado (SEE)[7]
 Durante a faculdade, não há formação prático-profissional, como os estágios no Brasil. Essa etapa ocorre precisamente após o aluno ter concluído o curso e haver sido aprovado no PEE. Após isso, ele inicia um período de Referendariat, um estágio obrigatório de duração média de 2 anos, no qual “o Referendar (assim se chama o jurista-estagiário durante o Referendariat) aprende a Relationstechnik, i.e., a “técnica de relação” dos fatos que corresponde à observância dos ônus da alegação e da prova (Darlegungs– und Beweislast) tal como está disciplinada pelo processo civil alemão”.[8]

O Referendar, em tese, estagia em tribunais, no Ministério Público e em escritório de advocacia, além de outros ofícios aonde tenha interesse ir. A intenção é que ele se familiarize com as diferentes formas de exercício profissional e, ao fim, escolha a que irá seguir. É possível que este venha a escolher o magistério superior. Nesse caso, a experiência no Referendariat não lhe será inútil: ele a usará na docência ou, em muitos casos, na oferta de pareceres (o que alguns professores fazem diretamente ou por meio de contratação do instituto de pesquisa ao qual está vinculado) ou ainda quando os professores são chamados a integrar os tribunais regionais ou as cortes superiores.  Não é necessário ter o SEE para ingressar no magistério. Mas, é quase impossível que alguém seja aceito como docente universitário sem o SEE e com notas medíocres no exame. O estagiário recebe um bolsa durante o Referendariat.

A estrutura de notas do SEE é muito próxima à do PEE. Tomando-se novamente o exemplo do exame da primavera de 2013 no Estado de Baden-Württemberg, desta vez com dados do SEE, veja-se essa aproximação nos resultados, em ordem decrescente: 14-18 pontos (muito bom, 0,37%); 11,50-13,99 (bom, 1,12); 9-11,49 (plenamente satisfatório,19,33%); 6,50-8,99 (satisfatório, 38,66%); 4-6,49 (suficiente,  30,11%) e 1,5-3,99 (deficiente)e 0-1,49 (insuficiente), com o percentual de 10,41. As notas do padrão baixo (deficiente e insuficiente) apresentaram maior diferente no SEE, o que se explica pela seleção ocorrida no PEE, que eliminou os piores candidatos.[9]

O impacto dos Exames de Estado
Os efeitos dos resultados dos exames na vida profissional são imensos. A reprovação por duas vezes impede a obtenção do título. Não há terceira oportunidade. As notas acumuladas abaixo de 9 inviabilizam a contratação na maior parte dos escritórios e, se estas ocorrem, dão-se em condições menos vantajosas e após maior tempo de espera.  A colocação nos exames também determina a carreira jurídica, sendo as mais prestigiadas destinadas aos que obtiveram notas mais elevadas.[10] 

Por conta de críticas ou de opções políticas governamentais, adotou-se uma composição mista do Exame de Estado, com a integração de até 30% da nota por uma avaliação feita pela própria universidade. Segundo Tilman Quarch, essas notas universitárias “não são levadas a sério pelo mercado de trabalho”, o que leva os candidatos a pedirem que elas sejam discriminadas no currículo, a fim de evitar confusões.[11]  

O modelo alemão é meritocrático e implacável com os que não alcançam resultados satisfatórios em sua vida universitária e no estágio preparatório ao SEE. A preocupação em se ficar preso nas frestas do sistema ronda os estudantes e os torna mais conscienciosos de que não há uma terceira oportunidade. Os efeitos colaterais são também notórios: a) menor preocupação com disciplinas não dogmáticas; b) direcionamento da vida universitária para uma boa formação voltada aos exames estatais. Os defensores do modelo, contudo, reagem com 2 argumentos: a) os bons alunos interessar-se-ão por disciplinas não dogmáticas e seguirão os estudos nesses temas por vontade, associando os dois saberes. Saber Filosofia não é impeditivo que se conheça bem Direito Penal; b) a média geral qualitativa dos alunos termina por se elevar, o que justifica a conservação do modelo.

Quando este colunista participou da Comissão do Ministério da Educação para a Reforma do Ensino Jurídico brasileiro (2013-2014), um dos pontos que colocamos para apreciação dos pares foi a introdução de algo semelhante ao Primeiro Exame de Estado no Brasil. Era uma forma de retirar o peso da avaliação dos alunos sobre os professores e também de uniformizar os padrões de qualidade do ensino, além de inserir o Estado como um agente mais próximo do que era produzido nas faculdades de Direito. A ideia não foi apoiada pela maioria dos membros do comitê. Ponderou-se que não havia condições de introdução desse modelo no Brasil nas circunstâncias atuais.

O Repetitorium
Como prometido na última coluna, vamos falar muito brevemente dos cursinhos jurídicos alemães. Trata-se de uma instituição muito antiga, oriunda do final do século XVIII e que hoje é operada majoritariamente por lucrativas empresas privadas (bem longe do conceito de “instituição de caridade”), apesar de algumas universidades manterem um Repetitorium público para seus estudantes. As aulas são voltadas à preparação para o exame estatal e têm seu público formado por estudantes universitários.

Muito da literatura jurídica alemã sobre Direito Civil ou Direito Penal, traduzida para o português e que é citada por autores brasileiros como se fossem “grandes obras”, não passam de livros de cursinhos alemães, com seus estudos de casos e questões específicas para quem deseja se submeter ao exame estatal.

Alguns desses “resumos” são elaborados por professores universitários, pelo que recebem bons valores em direitos autorais. No entanto, eles não lecionam nessas instituições. É igualmente impensável que um docente de Repetitorium seja admitido como professor em uma universidade alemã respeitável.

Conclusões

Encerramos hoje a longa viagem pelo riquíssimo modelo de ensino jurídico alemão. Com suas virtudes e seus problemas, o exemplo da Alemanha deve ser estudado com profundidade. Muitas das soluções ali encontradas não são compatíveis com a realidade nacional, seja pela diferença na seleção dos professores, seu prestígio e sua representação social, a existência dos exames estatais e a formação prático-profissional ser diferida para depois da universidade. Apesar disso, a investigação sobre essa experiência evita que se propaguem muitos mitos sobre o que seria melhor para a qualidade do ensino jurídico, como se procurou demonstrar nesta série de colunas.

A ética meritocrática, a existência de mecanismos de exclusão (praticamente) definitiva por insuficiência de notas, a valorização dos códigos (não no modelo de leitura descontextualizada, evidentemente), a participação do Estado na seleção dos universitários e graduados, são standards, práticas e valores cujo aproveitamento deveria ser pensado a sério no Brasil.  A específica questão dos exames deveria, contudo, ser objeto de ampla discussão sobre sua metodologia, o tipo de conhecimento exigido e, acima de tudo, seria imperativa a existência de controles sociais sobre o processo. Não se poderia admitir a perpetuação de bancas, a ausência de critérios formais para sua composição e que a sociedade deixasse de fiscalizar suas atividades, como infelizmente se dá hoje em muitas provas de ingresso em carreiras jurídicas.

No volume 1 da Revista de Direito Civil Contemporâneo, Nelson Nery Jr., em entrevista concedida a este colunista, deu um depoimento dos mais eloquentes sobre as qualidades do modelo alemão, que tanto influenciou sua formação e sua vida profissional:

O professor Schwab então me disse: ‘Aqui na Alemanha, as pessoas estudam. Elas não ficam esperando o professor ensinar, elas vão à biblioteca, leem e estudam, não ficam esperando pelo professor’. Foi um grande contraste para mim. (...) O estudante lá é um estudante, na acepção da palavra. (...) Isso tudo me impressionou muito. O aluno alemão tem de estudar em profundidade os assuntos. Ele deve fazer esses trabalhos de pesquisa, com referências em vários autores, com notas de rodapé”.[12]

Reflitamos sobre essas palavras de um de nossos grandes juristas. Na próxima coluna, o ensino jurídico em Portugal.


[1] FERGUSON, Niall. Civilização: Ocidente versus Oriente. Tradução de Janaína Marcoantonio. 1. reimpressão. São Paulo: Planeta, 2012. p. 69.

[2] Disponíveis em: http://ec.europa.eu/civiljustice/legal_prof/legal_prof_ger_de.htm. Acesso em 15-2-2015.

[3] Erste juristische Staatsprüfung.

[4] QUARCH, Tilman. Introdução à hermenêutica do direito alemão: der Gutachtenstil.Revista de Direito Civil Contemporâneo, v.1, outubro-dezembro de 2014, p.251.

[5] QUARCH, Tilman. Op. cit., loc. cit.

[6] Resultados do PEE da primavera de 2013 no Lander de Baden-Württemberg.

[7] Zweite juristische Staatsprüfung.

[8] QUARCH, Tilman. Op. cit., loc. cit.

[9] QUARCH, Tilman. Op. cit., loc. cit. Dados também disponíveis aqui: http://www.jum.baden-wuerttemberg.de/pb/site/jum/get/documents/jum1/JuM/import/pb5start/pdf/ii/II%20F%2013%20-%20Ergebnisse.pdf. Acesso em 16-2-2015.

[10] QUARCH, Tilman. Op. cit., loc. cit.

[11] QUARCH, Tilman. Op. cit., loc. cit.

[12] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Entrevista com Nelson Nery Jr. Revista de Direito Civil Contemporâneo. v. 1, p. 367,  out.-dez. 2014. 

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Revista Consultor Jurídico, 18 de fevereiro de 2015, 8h00

 

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

The changing face of the legal profession (Star Tribune), fev 17 2015, 9





The changing face of the legal profession
By MITRA SHARAFI Mitra Sharafi is an associate professor at the University of Wisconsin Law School. She is the author of "Law and Identity in Colonial South Asia: Parsi Legal Culture, 1772-1947" (Cambridge University Press, 2014).
Star Tribune
fev 17 2015

Plans to merge the Hamline and William Mitchell law schools in the Twin Cities remind us that law student enrollment continues to fall in the United States. The pattern may look different, however, among Middle Eastern and South Asian Americans. These...
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Can Computers Practice Law?

Vendor Voice: "Computers as task masters is different from computers as counselors."

, Legal Tech Newsletter

February 18, 2015


Can computers practice law? Many are inclined to say yes when using them affects us in so many ways. When scanning the pages of Law Journal Newsletters' Legal Tech Newsletter, we learn a good deal about the use of computers in the practice of law, but what I am really asking here is how far can—or will—we go to automate dispute resolution?

Everyone associated with legal technology supports the use of computers in managing the practice of law. Years ago, many of the tasks easily accomplished today with computer assistance could not be accomplished at all. A simple time-delimited search for a case by category in a single court would have been unthinkable without a system like Reed Elsevier's LexisNexis or Thomson Reuters' Westlaw.

As technology evolves, computerization will be used increasingly to support legal practice and it will become more mobile as well. Offices are unnecessary for many except to promote camaraderie. Camaraderie is critical even as people annoy each other more; it is so much easier to rely on electronics for interaction. As we increase our dependency on devices, we actually have more disputes and misunderstanding. We do things and track things with computers just because we can, and so create entire categories of additional legal work.

Sentiments tip differently when it comes to resolving problems through algorithms alone, but certainly the view is consistent that practice today would be impossible without computer assistance. All lawyers have to be IT competent and many have undergraduate degrees in IT. This fosters doing things we once could never do.

WHAT IS PRACTICING LAW?

In these pages, we learn a great deal about data security, e-discovery and case management tasks, but the topic of computers as task masters is different from computers as counselors and advisors. It could be provocative. It not merely raises questions about what it means to practice law, but how we value legal work product and measure success in resolving legal disputes. These are qualitative questions that suggest that law practice has changed dramatically in four decades of law office automation. But what would be the consequences if we were to obliterate the need for customized advice? What else does the practitioner have to sell? The personal advice of a knowledgeable and thoughtful lawyer is indispensable as the unique legal work product. Or is it?

I am not a lawyer, but like many of our readers, I have spent a lifetime working for and with them. They learn to view the world in a particular way and approach problem-solving competitively. Depending on subject matter expertise, they seem intentionally to seek out the problems dwelling in every sphere of human conduct. Computers actually help to do this better. Historically, wise human beings have been called upon to solve problems created by other human beings; now they are called upon to solve problems created by technology.

Regardless of the focus of practice, solving problems involves recordkeeping, the quintessential computer activity. The paperwork usually involves forms to fill out, templates to manage, and boilerplate to apply. And so we have computers to help us out. We can cut and paste and reuse documents to our heart's content, avoiding of course the violation of someone's proprietary words or space. The Internet has aided formulaic practice. More is available to copy, cut and paste.

In addition to forms, formats, formulas, templates and boilerplate, computers have developed highly focused and comprehensive approaches to the body of law with online legal research systems. A multitude of legal publishers have been consolidated online and few new entries to the field have been successful in withstanding takeover. The price increases, but most of the time, it is all the better for both the lawyer and the vendor.

In the last four decades we have awakened and become accustomed to using legal research tools online. Computers have mastered editing resources and tracking changes. No longer attached to a desk or large physical devices, the lawyer has new-found freedom to travel and remain capable of managing multiple clients, projects or cases. Tracking expenses is easier, as is working with court documents and managing a schedule. Cybersecurity software consultants provide means of authenticating users regardless of where they are and what devices they are using.

All of these time- and labor-saving resources are wonderful. They even manage to create new problems to solve. How many more clients can be served or cases filed when a few word changes and the enter key is all one needs? What could be better for the next generation of lawyers? Entire categories of legal practice have been made possible by the use and misuse of computer expertise, and a lot of it evolving out of new legislation, whether from cybercrime, Internet fraud, forensic finance, remote workforce management, or privacy. The expansion of information is fascinating; often mind-numbing, and-time consuming in different ways than in the past.

LIMITATIONS FROM COMPUTERS

Administrative task management is the positive side of what computers can do. They reduce significantly the work of lawyers, much of which is not value-added and for which clients hate to pay. But there is a downside many never consider. Increased regulation, along with prescribed penalties and mandatory sentencing, have limited the maneuvering room of attorneys. As in medicine, so much administrative management also reduces the lawyer's ability to provide personal service, to address human consequences, and to raise the standard of the professional to client relationship. While many will see the explosion in regulation as a positive deterrent to corruption and crime of all kinds, we also have to ask how much professionalism is lost if we have no room to attend to individual differences in problems and circumstances and merely treat everything and everyone as part of a category or the system in which they are named.

Entire groups of lawyers are employed to scan networks for criminal intent, as thousands more create scams for useless devices. Computers scan documents for keywords for litigation or judge competence in job searches. Looking for the worst in your fellow man is not an appealing occupation for a trained professional, but certainly it is great computer work. Among the scoping activities are the patent trolls and other individuals and systems seeking opportunities to plunder and sue. This increases the work for the large number of lawyers we have schooled since 1973, when Lexis was launched into the marketplace. Today the practicing lawyer would not be able to function without a mobile phone or computer. Many may be able to function perfectly well with just a phone and tablet device. But the best lawyers, like the best in business and accounting, combine the features of physician and clairvoyant, visionary and engineer. We have high hopes for computerization and should take advantage of all they have and may yet have to offer for advancing and rationalizing legal practice in a complex age. At present, they are highly efficient assistants, capable of filing a case and tracking its progress in the courts. Computers can control the case management process and reduce or eliminate missed filing dates (and excuses for missing them). Of course, we still have the garbage in or garbage out rule and the basics of human error. This is a great benefit to online research as editing is made available automatically. The resources will be less likely to have errors than the searcher can introduce by asking the wrong question of the wrong resource for the wrong dates or statute. We want to erase human error and its messiness, so we target individuality and dispose of an important part of legal practice as a result.

Practicing law is an art. Computer assistance is a science, or at least leans that way. Under the right circumstances, science serves the art. I will not say computers will never read the minds of clients and lawyers or create the remedy previously unheard of that takes a case to a favorable conclusion for one party or another. But I do think it is more likely that people will become more like computers or robots than it is for machines to become like real human beings. Computers will never be as messy as the unpredictable human being. They can track the billable hour and charge for units of time, but the closing argument still results from a creative process that is mixed with some knowledge of the law, human experience, and a sense of certainty.

If nothing else justifies computer assistance, the increased competitive environment requires it. And so does the regulatory environment. Computers make it possible to get alerts on new areas of legislative action, whether changes to a law or new laws altogether. But computers cannot as yet rationalize the consequences of two competing pieces of legislation, not without the query of a good lawyer.

CONCLUSION

I have long been in favor of a closer relationship between IT and the practicing lawyer. It is not uncommon today to find lawyers with IT degrees. But the specialties themselves often compete. Part of the challenge to today's practitioner is working out this balance. There is a lot of information available and ever new applications to make it easy to master both. But if a lawyer can become skilled at using the essential services that align useful technology with his or her practice, working life can become visibly better. It is always possible for the litigator to bring a cause of action to change or reverse legislation or make hay out of a fraudulent lawsuit. It is much easier to do this with the assistance of automation that can catch a thief in the act, such as a security camera or e-mail trail.

Be careful what you wish for unless you manage high level IT. The opportunity for problem solving is infinite. The marketplace for legal services may be a little different. As wisdom is replaced by automated resources and the resources can be bought and sold, the test of whether computers can practice will depend on the incentive parties have to resolve their own disputes by gaining access to the resources electronically and eliminating the middle man.


Nina Cunningham, Ph.D., is an affiliate of Altman Weil Inc., and president and CEO, Quidlibet Research Inc., a global strategic planning and cost management firm founded in 1983.


Read more: http://www.legaltechnews.com/id=1202718148367/Can-Computers-Practice-Law#ixzz3S6Ka3R00

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

New York Law School launches 2-year degree

With the launch of its honors program, New York Law students can receive a degree in two years instead of the typical three, and pay two-thirds of the $147,720 they would normally pay for a three-year degree program.

Published: February 12, 2015 - 3:00 pm

Aspiring lawyers attending New York Law School can now step up to the bar in record time. With the launch of its honors program, New York Law students can receive a degree in two years instead of the typical three and pay two-thirds of the $147,720 they would normally pay for a three-year degree program.

Since the recession, as jobs in the industry dried up, law school critics have been advocating for shorter degree programs. Even President Barack Obama in August 2013 suggested that law school should be cut to two years.

New York Law School is one of a growing number of schools to answer the call and offer accelerated J.D. programs. Last May, Brooklyn Law School also condensed three years of law school into two.

And some students are finding these programs attractive because when it comes to earning a degree, time is money.

But not all two-year programs are cheaper.

"Many students assume that going to school for two instead of three means that they save a year's worth of tuition, but that's not always the case," said David Lat, managing editor of Above The Law, a publication that covers legal issues.

Because many schools charge students by the credits rather than the time spent in school, a two-year degree can easily cost as much as a three-year degree in some cases, according to Mr. Lat.

In fact, at Brooklyn Law the two-year degree isn't cheaper because students still need to pay the same amount for 85 credits to graduate, making the cost of the degree $152,575.

The inaugural class of New York Law School's honors program, however, will pay less, with a $50,000 scholarship and additional financial aid that applies to their $98,480 two-year bill, according to Dean Anthony Crowell.

"About 166 students applied, and only 23 were admitted," said Mr. Crowell. "Because of the small class size, students are able to enjoy more intimate learning experiences."

On Jan. 5, students started the new two-year program at the New York Law School. The program lasts 24 months and requires students to take courses in the summer because accreditation requirements make it impossible to cut some courses throughout the curriculum.

Because the program comes with a heavy course load, it may not be for everyone, especially students who look forward to working in the summer.

"There's a concern of not gaining enough practical work experience, and knowing more theory than practice does put students at a disadvantage of getting a job," said Shawn O'Connor, CEO of Stratus Prep, a law school admissions counseling company.

But Mr. Crowell said students will still gain plenty of clinical and practical experience and expects to grow the program to admit 30 students in the coming year.

"We want to bridge practice into hires by offering our honors graduates a paid postgraduate fellowship opportunity that places students to work at law firms, government agencies and other areas that interest them," said Mr. Crowell. "We even have employers telling us that they will value graduates of this rigorous program because of the high work ethic required to complete it."

It's still debatable as to whether employers find accelerated-degree graduates more desirable than other applicants, especially since employment decisions hinge on a variety of factors besides the duration of time in school.

"Two-year programs are definitely here to stay, and as bigger schools join the bandwagon, I think we will have a better sense of how effective they actually are," said Mr. O'Connor.


Article can be found at http://www.crainsnewyork.com/article/20150212/NONPROFITS/150209842/-new-york-law-school-launches-2-year-degree

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

A interpretação da doutrina do adimplemento substancial (Parte 1)

9 de fevereiro de 2015, 8h00

Por 

Em minha primeira participação na coluna Direito Civil Atual, um espaço que poderá ampliar as oportunidades de diálogo entre a doutrina e a jurisprudência, ofereço aos leitores uma pequena contribuição sobre o instigante tema do adimplemento substancial[1]. Foi com grande satisfação que recebi o convite para integrar a Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, uma iniciativa muito necessária para o fortalecimento do Direito Privado brasileiro em suas bases teóricas clássicas, mas com os olhos postos no futuro. A satisfação também é ampliada pelo convívio, na coordenação desta coluna, com os colegas ministros do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Martins e Luis Felipe Salomão, dois nomes que orgulham a judicatura nacional.

A doutrina do adimplemento substancial é uma construção do Direito inglês, que remonta ao século XVIII, mas com crescente interesse no Brasil nas últimas três décadas. A recepção do adimplemento substancial no Direito Civil brasileiro é, em grande medida, resultado das lições do então professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Clóvis Veríssimo do Couto e Silva. Em suas aulas na pós-graduação, Clóvis do Couto e Silva apresentou a seus discentes vários institutos do Direito Comparado, como a violação positiva do contrato, a perturbação das prestações, a quebra da base do negócio e o adimplemento substancial. Um de seus mais brilhantes alunos era Ruy Rosado de Aguiar Júnior.

É por essa razão que os primeiros acórdãos a tratar sistematicamente desses temas no país foram de relatoria do desembargador Ruy Rosado, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Anos depois, quando nomeado para o Superior Tribunal de Justiça, o ministro Ruy Rosado trouxe para o cenário jurisprudencial nacional esses institutos e figuras jurídicas.

O primeiro acórdão do STJ sobre o tema data de 1995, relatado pelo ministro Ruy Rosado de Aguiar Junior. É o Resp 76.362/MT, julgado em 11 de dezembro de 1995 pela 4a Turma, com publicação no DJ 1o de abril de 1996. O caso já é clássico e seu resumo é este: a) dois segurados promoveram ação de cobrança para receber a cobertura securitária devida em razão de acidente de veículo; b) os segurados deixaram de pagar a última parcela na data do sinistro, o que foi confessado na inicial; c) apreciada a ação pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso, entendeu a corte que o segurado tinha "obrigação primordial" de pagar o "prêmio do seguro". Sem isso, nada poderia exigir da seguradora, na hipótese de se achar em estado de inadimplência.

No STJ, com base nas lições de Clóvis do Couto e Silva, o relator ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr. deu provimento ao recurso utilizando-se da doutrina do adimplemento substancial. Segundo ele "a companhia seguradora não pode dar por extinto o contrato de seguro, por falta de pagamento da última prestação do prêmio, por três razões: a) sempre recebeu as prestações com atraso, o que estava, aliás, previsto no contrato, sendo inadmissível que apenas rejeite a prestação quando ocorra o sinistro; b) a seguradora cumpriu substancialmente com sua obrigação, não sendo sua falta suficiente para extinguir o contrato; c) a resolução do contrato deve ser requerida em juízo, quando será possível avaliar a importância do inadimplemento, suficiente para a extinção do negócio".

A introdução da teoria do adimplemento substancial no STJ é um perfeito exemplo da virtuosa associação entre doutrina e jurisprudência, um diálogo cada vez mais raro em função do enorme acervo que os tribunais são levados a vencer todos os dias e, infelizmente, pela postura mais reativa que parte dos doutrinadores acabou por assumir em seus ofícios nas universidades e nos livros.

O surgimento do adimplemento substancial
A teoria do adimplemento substancial tem sua origem na doutrina e na jurisprudência inglesas, que a partir de 1779 desenvolveu a doutrina da "substancial performance". Atualmente, os autores ingleses, tomando como fundamento a gravidade objetiva do prejuízo causado ao credor pelo não cumprimento da prestação, formulam três requisitos para admitir a substancial performance: a) insignificância do inadimplemento; b) satisfação do interesse do credor; e c) diligência por parte do devedor no desempenho de sua prestação, ainda que a mesma se tenha operado imperfeitamente.[2]

No Direito inglês, há alguns precedentes antigos, sendo o relator Lord Mansfield o responsável pelo desenvolvimento da noção de condição precedente para tratar das obrigações que dependem do adimplemento da outra parte para poderem surgir.[3] Um bom exemplo disso está no caso Boone v. Eyre (1777), que teve por objeto um contrato celebrado por meio do qual o autor (Boone) traditaria uma fazenda e seus escravos, ao passo em que o réu (Eyre) pagaria o preço de 500 libras, somado a prestações anuais de 160 libras, com caráter perpétuo. Boone alienou a propriedade, mas não tinha direitos de transferir os escravos. Eyre, em um típico caso de exceptio non adimpleti contractus, sobrestou o pagamento das prestações anuais. Ao decidir o caso, Lord Mansfield entendeu que a obrigação de dar a coisa (os escravos) não seria uma condição precedente em face da obrigação de pagar as prestações anuais perpétuas. O preço já havia sido pago. Restaria apenas a conversão em perdas e danos.[4]

Trazendo para uma linguagem mais familiar ao Direito Civil brasileiro, pode-se dizer que, em face do adimplemento substancial, o direito potestativo à resolução do negócio não pode ser exercido em qualquer hipótese de inadimplemento. Essa é a "tradução" da solução de common law para os padrões linguísticos de civil law.

Otavio Luiz Rodrigues Junior, em seu livro sobre a revisão judicial de contratos[5], citando a obra de Edward Errante, refere-se a um exemplo hipotético de adimplemento substancial, que também permite compreender essa doutrina em sua concepção inglesa. As aspas correspondem ao texto do professor de Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo São Francisco e também coordenador da coluna Direito Civil Atual:

a) Uma empreiteira foi contratada para construir uma mansão, "tendo o contratante fornecido o projeto e as especificações da obra". No prazo de sua entrega, a empreiteira "apresentou a casa ao proprietário, ficando evidente a observância de todas as indicações arquitetônicas e o uso dos materiais acordados, exceto por faltarem maçanetas em duas portas".

b) Nesse caso, "considerou-se ter havido o cumprimento substancial da obrigação" pela empreiteira, "dada a insignificância das maçanetas no contexto da empreitada".

c) Assim, o contratante "não estaria liberado da prestação que lhe imputava o contrato – que é o pagamento da obra. Ser-lhe-ia lícito, porém, deduzir o valor das peças ausentes e o custo da instalação por terceiros".

d) De tal modo, em situações tais, a parte não poderá resolver a avença invocando a exceção do contrato não cumprido e será compelida a cumprir a sua respectiva prestação.

Porém, reserva-se a esse contratante o direito à parcela faltante ou às perdas e danos exclusivamente em relação à performance imperfeita do contrato.

É muito importante e necessário dizer que, no Direito inglês, no século XX, há poucos julgados que utilizam a substantial performance. Esse caráter rarefeito indica que, em sua origem, o instituto é usado com parcimônia e extremo cuidado. Os magistrados ingleses salientam que a regra é o cumprimento estrito dos contratos e que a ideia de que parcelas mínimas de uma obrigação não poderiam admitir o exercício de um direito potestativo resolutivo pleno está centrada no juízo de equidade, que desde os tempos de Henrique VIII serve para temperar os rigores do direito estatutário.

Não se pode, desse modo, aplicar a noção criada pelos ingleses sem que se desconsidere seu contexto histórico e sua visão restritiva. Outrossim, a vinculação do adimplemento substancial inglês com a boa-fé objetiva, em sua concepção atual, é um equívoco que muitos reproduzem, ignorando que se trata de uma doutrina do século XVIII, quando nem mesmo na Alemanha se havia cogitado uma cláusula geral como a da boa-fé objetiva, nos moldes de seu desenvolvimento na segunda metade do século XIX.

Essa comparação se torna ainda mais curiosa quando se atravessa o Canal da Mancha e se adentra ao Direito Continental, mais próximo a nossa realidade.

Veja-se, por exemplo, o caso da Itália.

O Direito italiano recepcionou a doutrina da substancial performance, com disposições no Código Civil. O adimplemento substancial tem por efeito não permitir o exercício do direito de resolução ao credor em face ao inadimplemento de pouca importância. Na Itália, os requisitos são objetivos, previstos em lei e se espraiam por tipologias negociais distintas.

A presença do adimplemento substancial na legislação, como se dá na Itália, diminui os custos argumentativos para seu uso pelo juiz, ao mesmo tempo em que limita seu emprego para além das bordas legais conhecidas de todos. Tem-se, portanto, maior segurança jurídica e um desestímulo à judicialização. As partes conhecem os limites de suas condutas e, por efeito, de suas pretensões.

Na próxima coluna, exploraremos a casuística do adimplemento substancial no Superior Tribunal de Justiça.

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF e UFC).


[1] O texto desta coluna corresponde, de modo parcial e com modificações, à palestra do autor na XXII Conferência Nacional dos Advogados, promovida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e realizada nos dias 20 a 23 de outubro de 2014, no Rio de Janeiro.
[2] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão Judicial dos contratos: Autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p.72.
[3] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Op. cit. p. 71.
[4] A íntegra do precedente inglês pode ser encontrada aqui: https://h2o.law.harvard.edu/cases/2417. Acesso em 6-2-2015.
[5] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Op. cit. p. 72.

Antonio Carlos Ferreira é ministro o Superior Tribunal de Justiça.

Revista Consultor Jurídico, 9 de fevereiro de 2015, 8h00

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Law graduates facing bleak job prospects (China Daily Hong Kong), fev 9 2015, 5





Law graduates facing bleak job prospects
By CAO YIN caoyin@chinadaily.com.cn
China Daily Hong Kong
fev 9 2015

Li Xiaoxiao, a law student who will graduate with a master's degree from Fudan University this year, is not as passionate for the major as she was when she selected it seven years ago. "I have sent more than 100 resumes on the Internet since...
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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Direito, poder e formação: Como se produz um jurista em alguns lugares do mundo? (Parte 1)

28 de janeiro de 2015, 8h00

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

A primitiva Sorbonne, correspondente hoje às Universidades de Paris I (Panthéon-Sorbonne), III (Sorbonne-Nouvelle), IV (Paris-Sorbonne) e V (Paris Descartes), deve sua origem a um alojamento para estudantes pobres, que foi criado no século XIII por Roberto de Sorbon (1201-1247), um capelão e confessor de Luís IX, rei de França. Sorbon é uma comuna francesa nas Ardenas, no nordeste francês, onde nasceu Roberto, filho de humildes camponeses. Em homenagem ao benfeitor Roberto, nascia, então, na Maison de Sorbonne, o Collège de Sorbonne, que viria a se transformar em um símbolo internacional de ensino superior e que teve alunos como o Armand, Cardeal de Richelieu, e o papa Clemente VI.    

A Ivy League compreende as oito universidades mais antigas dos Estados Unidos. Esse nome — Liga de Hera — provavelmente deve-se às trepadeiras (hera) que recobrem os prédios históricos dessas escolas da costa leste norte-americana. À exceção de Cornell, localizada em Nova York, as outras sete instituições foram criadas no período colonial. Essa circunstância é importante para se recordar seus nomes originais, todos com forte sabor britânico ou latino, como a Universidade de Colúmbia, antigo King’s College; a Universidade Brown, que nasceu como College of Rhode Island, ou a Universidade Yale, originalmente criada em 1701 como Collegiate School

A troca dos nomes de algumas dessas universidades não ocorreu por mero efeito da independência das treze colônias e o natural abandono de símbolos do poder metropolitano nos Estados Unidos.

A Universidade Yale ganhou seu nome em honra de Elihu Yale (1649-1721), nascido em Boston, governador da Companhia das Índias Orientais, posteriormente afastado do cargo por denúncias de corrupção, que fez uma vultosa doação ao antigo Collegiate School. Em reconhecimento, mudaram o nome da sede do college para Yale. Com o tempo, Yale passou a denominar toda a universidade.

A arquirrival de Yale é a Universidade Harvard, fundada em 1636 pela assembleia de representantes coloniais de Massachusetts sob o nome de New College. O londrino John Harvard (1607-1638) migrou para a Nova Inglaterra e, antes de morrer, deixou em testamento metade de seu patrimônio e 400 volumes de sua biblioteca particular para o New College, que mudou seu nome para Harvard College em 1639, de modo a homenagear seu benfeitor.

O que lhes parece uma universidade que teve em seus quadros de alunos e professores o Prêmio Nobel Thomas Mann, o papa Bento XVI, o físico Max Planck, o sociólogo Max Weber, o dramaturgo Bertolt Brecht, o chanceler Konrad Adenauer e os jovens heróis da resistência antinazista Sophie e Hans Scholl? É de fato impressionante. Trata-se da Universidade de Munique -Ludwig-Maximilian (LMU) , uma das mais antigas e melhores da Alemanha.  

Poder-se-ia continuar a fazer o inventário ou a narrativa histórica de várias outras universidades, como as antiquíssimas instituições fundadas em Bolonha (1088), Coimbra (1290), Viena (1365) ou a Universidade de São Marcos, a mais antiga das Américas, fundada em Lima, no ano de 1551, pelo então Vice-Rei do Peru, a mando dos reis de Espanha. 

No  Brasil, a despeito de existirem instituições de ensino superior nos séculos XVIII e XIX, como a Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, de 1792, a Escola de Cirurgia da Bahia (1808) e as Faculdades de Direito de Olinda e São Paulo (1827), apenas no século XX é que surgiram as primeiras universidades. 

No ano de 1912, surgiu a Universidade do Paraná, de caráter estadual, sucedida pela Universidade Federal do Paraná. 

A primeira universidade “nacional”, criada pela União, só nasceria em 1920. Trata-se da Universidade do Rio de Janeiro, posteriormente denominada de Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro) e existe uma “tradição inventada”, segundo Maria de Lourdes de A. Fávero, de que sua criação deveu-se à necessidade de se outorgar um doutorado honorário ao Alberto, rei dos belgas, em visita ao Brasil, acompanhado de sua esposa Elizabeth. A visita de Alberto, rei-soldado e herói da resistência contra os alemães na Primeira Guerra Mundial, teria sido a causa da apressada criação de uma universidade nacional no Brasil.[1]

Em todas essas instituições universitárias, por razões históricas que não cabem neste restrito espaço, os cursos das chamadas “humanidades” ocupam posição de preeminência cronológica e, por muitos séculos, foram as mais importantes. O avanço do denominado “conhecimento científico”, que se delineou fortemente nos séculos XVIII e XIX, retirou-lhes a primazia, embora não a precedência. As ditas Ciências Exatas e as Ciências Biológicas obtiveram uma consagração de tal ordem que são raras as universidades, os comitês de pesquisa, as agências de fomento e as fundações de amparo à investigação científica que não são controladas ou lideradas por docentes e pesquisadores da Física, da Matemática, da Medicina (uma quase intrusa nesse meio, porque ainda conserva enormes espaço à ciência aplicada) e das Engenharias. A esse respeito, lembro-me de um diálogo com um amigo, pesquisador do Instituto Max-Planck de Hamburgo, que me relatou o desconforto eventualmente experimentado pelos juristas quando algum físico se espantava com o orçamento dedicado à pesquisa jurídica pela Sociedade Max-Planck. O conhecimento produzido nos institutos dedicados ao Direito, segundo o físico, não seria científico e isso subtraia recursos essenciais para as áreas verdadeiramente geradoras de saberes aplicáveis à melhoria das condições de vida. Ao ouvir aquilo, de modo quase espontâneo, retruquei: “E ele parece desconhecer que nós garantimos a liberdade para que os físicos, matemáticos e biólogos possam pesquisar?”

Independentemente da diminuição do prestígio e da relevância das faculdades de Direito no concerto das instituições universitárias, algo que se não pode afirmar seja “contemporâneo”, ninguém lhes pode retirar o caráter fundador da universidade, ao lado da Teologia, da Filosofia, das Letras e da Pedagogia, ainda que denominadas de modo diferente em suas origens. Tal precedência ainda se revela na circunstância de que boa parte das instituições citadas nesta coluna tiveram seu núcleo formador nas faculdades de Direito. No Brasil, isso é mais do que verdadeiro, ao exemplo da Universidade de São Paulo, da Universidade Federal de Pernambuco ou da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Mais do que reivindicar um “regime de capitulações especiais”, para se lembrar metaforicamente da legislação do Império Otomano de imunidade judiciária dos súditos estrangeiros, as Faculdades de Direito aparentemente recuperaram, ao menos nos últimos 30 anos, um nível de prestígio social e político há muito desaparecido. É bom fazer um excurso para melhor esclarecer esse ponto, que pode ser examinado sob dois aspectos.

Vamos ao primeiro aspecto. O Brasil — e isso ainda está por ser melhor estudado — deve muito de sua extensão geográfica e de sua estrutura de acomodação de conflitos às tradições do velho Império Austro-Húngaro, homenageado de modo extremamente sensível pelo filme Grande Hotel Budapeste, de Wes Anderson. A influência da imperatriz D. Leopoldina é maior do que se supõe e ela ficou marcada em seu filho, D. Pedro II. O Direito, a Diplomacia e as Forças Armadas foram os pontos de sustentação da unidade nacional e da difícil travessia do jovem império no século XIX. A importância do Direito, visto isoladamente, foi tamanha que se criou uma expressão para caracterizá-la (e criticá-la), o dito bacharelismo, que sobreviveu até a Revolução de 1930, a qual, até para o contrapor, adotou a estética modernizante da técnica. Se olharmos para a Índia, país com mais advogados do que os Estados Unidos, o Paquistão, onde os advogados são uma incômoda e respeitada elite intelectual, a África do Sul, a Turquia e mesmo Portugal, nossa pátria-mãe, exemplos de nações pós-coloniais ou pós-imperiais, encontraremos idêntica primazia do Direito. 

O segundo aspecto, que é mais recente, deve-se à perda do papel de elemento arbitrador de conflitos políticos pelas Forças Armadas.  O Brasil presta-se aqui também como exemplo desse processo. Após 1988, embora não imediatamente, o protagonismo do Supremo Tribunal Federal e, por consequência, do Poder Judiciário, cresceu na exata medida em que os militares saíram de modo ostensivo da função de moderação dos embates entre as forças políticas. A respeito dessa leitura, sugere-se a consulta ao texto do ministro José Antonio Dias Toffoli em Notas jurídico-históricas sobre os conflitos federativos e patrimonialismo no estado brasileiro[2], que tem sido, de modo paradoxal, um membro desse novo poder moderador mas que exibe coragem ao defender sua autocontenção e o respeito às prerrogativas do sistema democrático representativo.

Semelhante papel é perceptível ao se observar a atuação das supremas cortes da África do Sul, da Turquia ou da Tailândia (que legitimou a queda do governo do polêmico primeiro-ministro  Thaksin Shinawatra), embora seu grande modelo esteja no Tribunal Constitucional Federal alemão. Essa corte, desde sua origem, travou sérios embates com os primeiros gabinetes da então Alemanha Ocidental e conseguiu afirmar-se como moderadora da política e da economia, ao exemplo dos recentes julgamentos sobre a participação alemã na recuperação dos países da eurozona. No caso germânico, há a coincidência com o primeiro aspecto: o passado imperial e militar tornou mais fácil essa substituição de atores. O conceito de Verfassungspatriotismus (patriotismo constitucional) bem revela essa passagem: o patriotismo fundado na figura do imperador foi substituído por outro, alicerçado na Constituição.  Uma vez mais o paralelismo com o Brasil é apropriador. Basta recordar a passagem de Memorial de Aires, o último romance de Machado de Assis, quando a personagem principal, o diplomata Aires, no dia 25 de março, anotou em seu livro de memórias: “Era minha ideia hoje, aniversário da Constituição, ir cumprimentar o imperador...”.[3]

Se o Direito possui tamanha nos dias de hoje, para o bem e para o mal, é importante examinar como se formam os cadetes das “academias das Agulhas Negras” de nosso tempo. Se graduar-se oficial era símbolo do status social até duas ou três décadas, hoje a graduação em Direito é o brevê que permitirá ao jovem o vislumbre de um futuro carregado de esperanças. Remuneração desproporcional a outras carreiras; exercício de um imenso poder simbólico, em detrimento da cada vez mais relaxada cobrança por racionalidade e pelos custos argumentativos, que se revela em decisões judiciais, propositura de ações e elaboração de pareceres para órgãos públicos, o qual termina por se revelar o exercício de um poder real; participação quase que obrigatória em decisões da vida privada dos indivíduos, seja como agente estatal ou mesmo como assessor de elementares atos de administração de um condomínio, enfim, são inúmeras as possibilidades de intervenção do jurista na vida contemporânea. E essas intervenções traduzem-se no controle potestativo da vida. 

Em paralelo, como efeito natural da organização da vida sob o sistema capitalista, há um imenso exército de pessoas graduadas em Direito, que não conseguem ser admitidas nas grandes “provas admissionais” para ingresso na Cavalaria, na Infantaria, na Intendência, nos Fuzileiros e em outras armas de maior ou menor prestígio. Subproduto de um conjunto de fatores, de entre eles o elementar desejo de possuir uma “patente” de “doutor” para ser respeitado nas ruas, não sofrer os constrangimentos policiais por sua cor de pele ou condição social, essas pessoas não “herdarão o Reino dos Céus” e servem para conservar máquinas milionárias de ensino superior ou dos famosos cursinhos.

Nesse cenário, os debates sobre o ensino jurídico ganham cada vez mais relevância, embora se possa afirmar que são mais antigos do que se pensa e menos originais do que muitos de seus autores supõem. Na atualidade, a reforma dos currículos dos cursos de Direito também se tornou um tema de grande interesse nas universidades e mesmo fora delas. Muitos modelos estrangeiros passaram a ser invocados como exemplos a serem seguidos no Brasil, sem se considerar as peculiaridades de nossa cultura jurídica, quando não se dá a pura e simples mistificação ou o falseamento de dados, seja por ignorância, seja pela cópia da cópia de estudos que ninguém se deu ao trabalho de ir às fontes e cotejar seus resultados.

É como esta introdução que se inicia uma série de colunas sobre o ensino, a formação e a carreira docente jurídica em alguns países relevantes no mundo do Direito. As colunas tentarão seguir uma ordem sequencial, embora, por diversas razões, como o aparecimento de algum tema mais urgente, ela possa ser interrompida. Os leitores estão convidados a esta interessante, curiosa e reveladora viagem. 


[1] Essa tese é contestada por Maria de Lourdes de A. Fávero no artigo intitulado O título de doutor honoris causa ao rei dos belgas e a criação da URJ. Disponível em http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe1/anais/104_maria_lurdes_a.pdf. Acesso em 18-1-2015.

[2] In. Estudos jurídicos : em homenagem ao Ministro Cesar Asfor Rocha. Ribeirão Preto : Migalhas, 2012, p. 176-197, v. 2.

[3] Para maior desenvolvimento, veja-se: DIAS TOFFOLI, José Antonio; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz.  A primeira constituição do Brasil. Folha de São Paulo, 25.3.2014. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/03/1430288-jose-antonio-dias-toffoli-e-otavio-luiz-rodrigues-jr-a-primeira-constituicao-do-brasil.shtml. Acesso em 27.1.2015.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Revista Consultor Jurídico, 28 de janeiro de 2015, 8h00