28 de janeiro de 2015, 8h00
A primitiva Sorbonne, correspondente hoje às Universidades de Paris I (Panthéon-Sorbonne), III (Sorbonne-Nouvelle), IV (Paris-Sorbonne) e V (Paris Descartes), deve sua origem a um alojamento para estudantes pobres, que foi criado no século XIII por Roberto de Sorbon (1201-1247), um capelão e confessor de Luís IX, rei de França. Sorbon é uma comuna francesa nas Ardenas, no nordeste francês, onde nasceu Roberto, filho de humildes camponeses. Em homenagem ao benfeitor Roberto, nascia, então, na Maison de Sorbonne, o Collège de Sorbonne, que viria a se transformar em um símbolo internacional de ensino superior e que teve alunos como o Armand, Cardeal de Richelieu, e o papa Clemente VI.
A Ivy League compreende as oito universidades mais antigas dos Estados Unidos. Esse nome — Liga de Hera — provavelmente deve-se às trepadeiras (hera) que recobrem os prédios históricos dessas escolas da costa leste norte-americana. À exceção de Cornell, localizada em Nova York, as outras sete instituições foram criadas no período colonial. Essa circunstância é importante para se recordar seus nomes originais, todos com forte sabor britânico ou latino, como a Universidade de Colúmbia, antigo King’s College; a Universidade Brown, que nasceu como College of Rhode Island, ou a Universidade Yale, originalmente criada em 1701 como Collegiate School.
A troca dos nomes de algumas dessas universidades não ocorreu por mero efeito da independência das treze colônias e o natural abandono de símbolos do poder metropolitano nos Estados Unidos.
A Universidade Yale ganhou seu nome em honra de Elihu Yale (1649-1721), nascido em Boston, governador da Companhia das Índias Orientais, posteriormente afastado do cargo por denúncias de corrupção, que fez uma vultosa doação ao antigo Collegiate School. Em reconhecimento, mudaram o nome da sede do college para Yale. Com o tempo, Yale passou a denominar toda a universidade.
A arquirrival de Yale é a Universidade Harvard, fundada em 1636 pela assembleia de representantes coloniais de Massachusetts sob o nome de New College. O londrino John Harvard (1607-1638) migrou para a Nova Inglaterra e, antes de morrer, deixou em testamento metade de seu patrimônio e 400 volumes de sua biblioteca particular para o New College, que mudou seu nome para Harvard College em 1639, de modo a homenagear seu benfeitor.
O que lhes parece uma universidade que teve em seus quadros de alunos e professores o Prêmio Nobel Thomas Mann, o papa Bento XVI, o físico Max Planck, o sociólogo Max Weber, o dramaturgo Bertolt Brecht, o chanceler Konrad Adenauer e os jovens heróis da resistência antinazista Sophie e Hans Scholl? É de fato impressionante. Trata-se da Universidade de Munique -Ludwig-Maximilian (LMU) , uma das mais antigas e melhores da Alemanha.
Poder-se-ia continuar a fazer o inventário ou a narrativa histórica de várias outras universidades, como as antiquíssimas instituições fundadas em Bolonha (1088), Coimbra (1290), Viena (1365) ou a Universidade de São Marcos, a mais antiga das Américas, fundada em Lima, no ano de 1551, pelo então Vice-Rei do Peru, a mando dos reis de Espanha.
No Brasil, a despeito de existirem instituições de ensino superior nos séculos XVIII e XIX, como a Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, de 1792, a Escola de Cirurgia da Bahia (1808) e as Faculdades de Direito de Olinda e São Paulo (1827), apenas no século XX é que surgiram as primeiras universidades.
No ano de 1912, surgiu a Universidade do Paraná, de caráter estadual, sucedida pela Universidade Federal do Paraná.
A primeira universidade “nacional”, criada pela União, só nasceria em 1920. Trata-se da Universidade do Rio de Janeiro, posteriormente denominada de Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro) e existe uma “tradição inventada”, segundo Maria de Lourdes de A. Fávero, de que sua criação deveu-se à necessidade de se outorgar um doutorado honorário ao Alberto, rei dos belgas, em visita ao Brasil, acompanhado de sua esposa Elizabeth. A visita de Alberto, rei-soldado e herói da resistência contra os alemães na Primeira Guerra Mundial, teria sido a causa da apressada criação de uma universidade nacional no Brasil.[1]
Em todas essas instituições universitárias, por razões históricas que não cabem neste restrito espaço, os cursos das chamadas “humanidades” ocupam posição de preeminência cronológica e, por muitos séculos, foram as mais importantes. O avanço do denominado “conhecimento científico”, que se delineou fortemente nos séculos XVIII e XIX, retirou-lhes a primazia, embora não a precedência. As ditas Ciências Exatas e as Ciências Biológicas obtiveram uma consagração de tal ordem que são raras as universidades, os comitês de pesquisa, as agências de fomento e as fundações de amparo à investigação científica que não são controladas ou lideradas por docentes e pesquisadores da Física, da Matemática, da Medicina (uma quase intrusa nesse meio, porque ainda conserva enormes espaço à ciência aplicada) e das Engenharias. A esse respeito, lembro-me de um diálogo com um amigo, pesquisador do Instituto Max-Planck de Hamburgo, que me relatou o desconforto eventualmente experimentado pelos juristas quando algum físico se espantava com o orçamento dedicado à pesquisa jurídica pela Sociedade Max-Planck. O conhecimento produzido nos institutos dedicados ao Direito, segundo o físico, não seria científico e isso subtraia recursos essenciais para as áreas verdadeiramente geradoras de saberes aplicáveis à melhoria das condições de vida. Ao ouvir aquilo, de modo quase espontâneo, retruquei: “E ele parece desconhecer que nós garantimos a liberdade para que os físicos, matemáticos e biólogos possam pesquisar?”
Independentemente da diminuição do prestígio e da relevância das faculdades de Direito no concerto das instituições universitárias, algo que se não pode afirmar seja “contemporâneo”, ninguém lhes pode retirar o caráter fundador da universidade, ao lado da Teologia, da Filosofia, das Letras e da Pedagogia, ainda que denominadas de modo diferente em suas origens. Tal precedência ainda se revela na circunstância de que boa parte das instituições citadas nesta coluna tiveram seu núcleo formador nas faculdades de Direito. No Brasil, isso é mais do que verdadeiro, ao exemplo da Universidade de São Paulo, da Universidade Federal de Pernambuco ou da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Mais do que reivindicar um “regime de capitulações especiais”, para se lembrar metaforicamente da legislação do Império Otomano de imunidade judiciária dos súditos estrangeiros, as Faculdades de Direito aparentemente recuperaram, ao menos nos últimos 30 anos, um nível de prestígio social e político há muito desaparecido. É bom fazer um excurso para melhor esclarecer esse ponto, que pode ser examinado sob dois aspectos.
Vamos ao primeiro aspecto. O Brasil — e isso ainda está por ser melhor estudado — deve muito de sua extensão geográfica e de sua estrutura de acomodação de conflitos às tradições do velho Império Austro-Húngaro, homenageado de modo extremamente sensível pelo filme Grande Hotel Budapeste, de Wes Anderson. A influência da imperatriz D. Leopoldina é maior do que se supõe e ela ficou marcada em seu filho, D. Pedro II. O Direito, a Diplomacia e as Forças Armadas foram os pontos de sustentação da unidade nacional e da difícil travessia do jovem império no século XIX. A importância do Direito, visto isoladamente, foi tamanha que se criou uma expressão para caracterizá-la (e criticá-la), o dito bacharelismo, que sobreviveu até a Revolução de 1930, a qual, até para o contrapor, adotou a estética modernizante da técnica. Se olharmos para a Índia, país com mais advogados do que os Estados Unidos, o Paquistão, onde os advogados são uma incômoda e respeitada elite intelectual, a África do Sul, a Turquia e mesmo Portugal, nossa pátria-mãe, exemplos de nações pós-coloniais ou pós-imperiais, encontraremos idêntica primazia do Direito.
O segundo aspecto, que é mais recente, deve-se à perda do papel de elemento arbitrador de conflitos políticos pelas Forças Armadas. O Brasil presta-se aqui também como exemplo desse processo. Após 1988, embora não imediatamente, o protagonismo do Supremo Tribunal Federal e, por consequência, do Poder Judiciário, cresceu na exata medida em que os militares saíram de modo ostensivo da função de moderação dos embates entre as forças políticas. A respeito dessa leitura, sugere-se a consulta ao texto do ministro José Antonio Dias Toffoli em Notas jurídico-históricas sobre os conflitos federativos e patrimonialismo no estado brasileiro[2], que tem sido, de modo paradoxal, um membro desse novo poder moderador mas que exibe coragem ao defender sua autocontenção e o respeito às prerrogativas do sistema democrático representativo.
Semelhante papel é perceptível ao se observar a atuação das supremas cortes da África do Sul, da Turquia ou da Tailândia (que legitimou a queda do governo do polêmico primeiro-ministro Thaksin Shinawatra), embora seu grande modelo esteja no Tribunal Constitucional Federal alemão. Essa corte, desde sua origem, travou sérios embates com os primeiros gabinetes da então Alemanha Ocidental e conseguiu afirmar-se como moderadora da política e da economia, ao exemplo dos recentes julgamentos sobre a participação alemã na recuperação dos países da eurozona. No caso germânico, há a coincidência com o primeiro aspecto: o passado imperial e militar tornou mais fácil essa substituição de atores. O conceito de Verfassungspatriotismus (patriotismo constitucional) bem revela essa passagem: o patriotismo fundado na figura do imperador foi substituído por outro, alicerçado na Constituição. Uma vez mais o paralelismo com o Brasil é apropriador. Basta recordar a passagem de Memorial de Aires, o último romance de Machado de Assis, quando a personagem principal, o diplomata Aires, no dia 25 de março, anotou em seu livro de memórias: “Era minha ideia hoje, aniversário da Constituição, ir cumprimentar o imperador...”.[3]
Se o Direito possui tamanha nos dias de hoje, para o bem e para o mal, é importante examinar como se formam os cadetes das “academias das Agulhas Negras” de nosso tempo. Se graduar-se oficial era símbolo do status social até duas ou três décadas, hoje a graduação em Direito é o brevê que permitirá ao jovem o vislumbre de um futuro carregado de esperanças. Remuneração desproporcional a outras carreiras; exercício de um imenso poder simbólico, em detrimento da cada vez mais relaxada cobrança por racionalidade e pelos custos argumentativos, que se revela em decisões judiciais, propositura de ações e elaboração de pareceres para órgãos públicos, o qual termina por se revelar o exercício de um poder real; participação quase que obrigatória em decisões da vida privada dos indivíduos, seja como agente estatal ou mesmo como assessor de elementares atos de administração de um condomínio, enfim, são inúmeras as possibilidades de intervenção do jurista na vida contemporânea. E essas intervenções traduzem-se no controle potestativo da vida.
Em paralelo, como efeito natural da organização da vida sob o sistema capitalista, há um imenso exército de pessoas graduadas em Direito, que não conseguem ser admitidas nas grandes “provas admissionais” para ingresso na Cavalaria, na Infantaria, na Intendência, nos Fuzileiros e em outras armas de maior ou menor prestígio. Subproduto de um conjunto de fatores, de entre eles o elementar desejo de possuir uma “patente” de “doutor” para ser respeitado nas ruas, não sofrer os constrangimentos policiais por sua cor de pele ou condição social, essas pessoas não “herdarão o Reino dos Céus” e servem para conservar máquinas milionárias de ensino superior ou dos famosos cursinhos.
Nesse cenário, os debates sobre o ensino jurídico ganham cada vez mais relevância, embora se possa afirmar que são mais antigos do que se pensa e menos originais do que muitos de seus autores supõem. Na atualidade, a reforma dos currículos dos cursos de Direito também se tornou um tema de grande interesse nas universidades e mesmo fora delas. Muitos modelos estrangeiros passaram a ser invocados como exemplos a serem seguidos no Brasil, sem se considerar as peculiaridades de nossa cultura jurídica, quando não se dá a pura e simples mistificação ou o falseamento de dados, seja por ignorância, seja pela cópia da cópia de estudos que ninguém se deu ao trabalho de ir às fontes e cotejar seus resultados.
É como esta introdução que se inicia uma série de colunas sobre o ensino, a formação e a carreira docente jurídica em alguns países relevantes no mundo do Direito. As colunas tentarão seguir uma ordem sequencial, embora, por diversas razões, como o aparecimento de algum tema mais urgente, ela possa ser interrompida. Os leitores estão convidados a esta interessante, curiosa e reveladora viagem.
[1] Essa tese é contestada por Maria de Lourdes de A. Fávero no artigo intitulado O título de doutor honoris causa ao rei dos belgas e a criação da URJ. Disponível em http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe1/anais/104_maria_lurdes_a.pdf. Acesso em 18-1-2015.
[2] In. Estudos jurídicos : em homenagem ao Ministro Cesar Asfor Rocha. Ribeirão Preto : Migalhas, 2012, p. 176-197, v. 2.
[3] Para maior desenvolvimento, veja-se: DIAS TOFFOLI, José Antonio; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. A primeira constituição do Brasil. Folha de São Paulo, 25.3.2014. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/03/1430288-jose-antonio-dias-toffoli-e-otavio-luiz-rodrigues-jr-a-primeira-constituicao-do-brasil.shtml. Acesso em 27.1.2015.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.
Revista Consultor Jurídico, 28 de janeiro de 2015, 8h00
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