02/04/2015 por José Fernando Simão publicado na Revista Carta Forense
Aprovado e sancionado o novo CPC, em 16 de março de 2015, com a vacatio legis de 1 ano, art. 1045, a lei 13.105/215 passa a ser uma realidade.
A matéria de evicção sofre, então, profunda alteração. Isso porque o art. 456 do Código Civil é revogado pelo art. 1072, II do novo CPC.
Dispõe o artigo em questão:
“Art. 456. Para poder exercitar o direito que da evicção lhe resulta, o adquirente notificará do litígio o alienante imediato, ou qualquer dos anteriores, quando e como lhe determinarem as leis do processo.
Parágrafo único. Não atendendo o alienante à denunciação da lide, e sendo manifesta a procedência da evicção, pode o adquirente deixar de oferecer contestação, ou usar de recursos”.
Isso gera de imediato a seguinte consequência: a denunciação da lide para as hipóteses de evicção passa a ser regulamentada exclusivamente pelo CPC, em seu artigo 125. Não haverá mais qualquer contradição entre as regras de evicção como existe atualmente.
Isso porque, atualmente, o atual CPC proíbe a chamada denunciação per saltum, conforme regra do art. 73:
Art. 73. Para os fins do disposto no art. 70, o denunciado, por sua vez, intimará do litígio o alienante, o proprietário, o possuidor indireto ou o responsável pela indenização e, assim, sucessivamente, observando-se, quanto aos prazos, o disposto no artigo antecedente
Note-se que estabelece o atual CPC uma regra de denunciações sucessivas em que o evicto demanda apenas o alienante direto e o alienante direto aquele com quem teve relação jurídica e assim sucessivamente.
O art. 456 do Código Civil previa regra distinta: caberia ao evicto escolher se demandaria o alienante direto ou qualquer outro participante da cadeia de alienações.
Trata-se de desdobramento do princípio da função social do contrato em sua eficácia externa. Tal faceta da função social indica que se trata de abrandar o princípio da relatividade dos efeitos do contrato (res inter alios acta aliis neque nocet nec prodest – o que foi feito entre uns, não pode beneficiar, muito menos prejudicar outros), que não pode ser entendido como mera relação individual, devendo-se considerar os seus efeitos econômicos, ambientais e até mesmo culturais. O contrato não pode ser fonte de prejuízo para a sociedade.
A doutrina tem dado como exemplo da eficácia externa a tutela externa do crédito. Um dos exemplos pelo qual um contrato acaba por atingir terceiro que dele não fez parte é o da vítima do dano decorrente de acidente automobilístico.
Pela teoria tradicional, caso certa pessoa seja vítima de um dano (colisão de veículos), a vítima demanda o causador do dano diretamente. Este, se tiver seguro cuja cobertura abranja tal espécie de dano, terá a opção de, por meio de denunciação da lide, criar a lide secundária contra o segurador. Frise-se: se o causador do dano quiser, pois pode ele optar por assumir a responsabilidade sem se valer do contrato de seguro.
Contudo, a doutrina admite que os efeitos do contrato de seguro (firmando entre o causador do dano e o segurador) beneficiem a vítima que do contrato não fez parte. Assim, a vítima pode demandar diretamente o segurador para receber a indenização.
Por uma questão de prova, como o segurador não tem ciência dos fatos, a jurisprudência exige que a ação seja proposta também contra o segurado e não apenas contra o segurador (STJ. 2ª Seção. REsp 962.230-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 8/2/2012 (recurso repetitivo).
Essa questão da inclusão do segurado como corréu é irrelevante ao direito civil, pois o que interessa é que se admite que a vítima se beneficie dos efeitos de um contrato do qual é estranha. Supera-se a relatividade dos efeitos do contrato quando um estranho recebe seus benefícios sem expressa previsão legal.
A previsão do art. 456 é exatamente a admissão de que os efeitos de um contrato de compra e venda atinjam um terceiro que dela não fez parte. Explico. Se Tício vendeu o imóvel para Mévio e Mévio vende para Caio, sendo que Caio perde o imóvel para o real proprietário, pela teoria tradicional Caio poderia demandar apenas Mévio, pois foi com Mévio que contratou.
Pela regra do art. 456, como decorrência do princípio da função social, Caio pode demandar Mévio ou Tício, ou mesmo quem vendeu o imóvel para Tício.
A conclusão que se chegou, então, é que por força do Código Civil, a denunciação per saltum passou a ser admitida no sistema para o caso de evicção, já que o art. 456, parágrafo único é lei especial e afasta o alcance da regra geral do art. 73 do atual CPC.
Com a revogação do art. 456 do Código Civil a pergunta que resta é: continua facultado ao evicto demandar qualquer um dos alienantes por meio da denunciação per saltum?
A resposta é negativa. O princípio não pode ser aplicado se o legislador revoga a regra que o previa. Note-se: se regra não existisse o princípio teria plena aplicação. Seria hipótese de vácuo da lei.
Quando a regra existe e é expressamente revogada, há um imperativo do ordenamento parta que, naquele caso, o princípio ceda, deixe de ter eficácia.
Aliás, os princípios podem ceder diante do texto expresso de lei sem maiores problemas. Quando o Código Civil atribui ao possuidor de má-fé indenização por benfeitorias necessárias (art. 1220), há uma prevalência da vedação ao enriquecimento sem causa sobre a boa-fé.
A revogação do art. 456 e o texto do art. 125, I do novo CPC pelo qual a denunciação é possível ao alienante imediato e a não reprodução da regra do art. 73 do atual CPC indicam que o princípio da relatividade dos efeitos se sobrepôs ao da função social quanto à evicção.
Mas a função social não é norma de ordem pública que não pode ser afastada pela vontade das partes? Sim, mas o princípio cede por força de lei para dar espaço ao tradicional res inter alios acta.
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