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quinta-feira, 2 de junho de 2016

As teorias ajudam a interpretar as leis sobre pessoas jurídicas

2 de junho de 2016, 8h00

Por João Grandino Rodas

Uma vez surgida a personalidade jurídica da sociedade, a partir do século XVIII, a doutrina passou a tecer teorias a respeito. Tais teorizações, longe de serem elucubrações vazias, servem como fundamento para as elaborações das leis sobre sociedades, bem como fornecem subsídios para interpretação da legislação societária existente.

A mais antiga teoria baseava-se na ficção, data do século XIII e tinha suas raízes no direito canônico. Desenvolvida mormente na Alemanha no século XIX teve largo curso, principalmente na própria Alemanha, na França, na Bélgica, na Itália e no Reino Unido[1].

Embora tenha tido outros arautos, tem-se como assente que sua formulação clássica coube a Savigny, que a delineou, como segue. Somente o ser humano é sujeito de direito, devendo o conceito de pessoa coincidir com o de ser humano. Cabe contudo ao direito positivo influir sobre tal princípio, quer negando capacidade a certos seres humanos, quer estendendo-a a entes que não o são. Nesse caso, seres artificiais criados pela mera ficção — fictio juris — terão capacidade jurídica. É o caso da pessoa jurídica. Como a capacidade artificial das pessoas jurídicas só se pode referir a relações de direito privado, pode-se definir pessoa jurídica como sendo um sujeito criado artificialmente, capaz de possuir patrimônio. Dentre as pessoas jurídicas, algumas têm existência natural ou necessária — o Estado —, enquanto outras são artificiais e arbitrárias — caso das corporações e fundações.

A pessoa jurídica, pelo fato de ser simples ficção, de um lado, não é capaz de querer e de agir; de outro, é inimputável. Sua vontade, assim como a dos loucos e impúberes, manifesta-se por meio da representação. Atos ilícitos somente podem ser cometidos por indivíduos que delas participam. Sublinhe-se, ademais, três pontos. Primeiramente, a personalidade jurídica é um atributo concedido pela lei a certo grupo, não sendo decorrência necessária do direito de associação. Em segundo lugar, que uma pessoa jurídica é distinta das de seus membros componentes, podendo teoricamente sobreviver ao desaparecimento do grupo que a tenha constituído. E, finalmente, que a sua supressão como pessoa jurídica não está na alçada da vontade de seus membros.

Dentre as objeções levantadas contra a teoria da ficção, estão as seguintes.

Não é factível ao Legislativo criar fictamente uma pessoa, quando os requisitos básicos estão ausentes. Um relacionamento social tem existência de per si, embora seja possível a esse Poder estabelecer proibições, quando considerar algo ilícito.

A teoria não traz realmente uma solução, pois uma pessoa ficta, por não possuir vontade própria, é uma não-pessoa. Atribuir a uma pessoa jurídica bens não pertencentes a indivíduos é um eufemismo, para dizer que não pertencem a ninguém. Por não terem um titular, em última análise, poderá o Estado facilmente se manumitir em tais bens.

Não se compreende como é possível ao ente coletivo ficto ser independente e ao mesmo tempo estranho às pessoas físicas que o compõe, chegando ao ponto de a existência ideal poder sobreviver a todos os seus membros. O normal seria o reconhecimento de mútua interdependência.

A teoria da ficção preocupou-se com a noção de personalidade moral no direito privado, pois, no âmbito do direito público, considerava aceitável a atribuição da soberania à pessoa física do soberano e não ao Estado. Peça lógica, entretanto, a noção de personalidade jurídica deve ser comum tanto ao direito privado como ao público. O próprio fato de ter a teoria em questão afirmado ser o Estado uma pessoa jurídica necessária, coloca em xeque a própria teoria, ao admitir a possibilidade do sacimento de uma pessoa jurídica, por outro modo que não pela vontade da lei.

Inobstante ter sido muito criticada, é inegável a notável disseminação e a força da teoria em tela até inícios do século XX. Seus próprios detratores a reconhecem, chegando até mesmo a apontar como razões para tanto, além de estar imbricada na tradição, a sua ínsita simplicidade e seu rigor lógico. Na verdade, toda a teoria é deduzida de uma premissa — só o homem é sujeito de direito — de que deriva o corolário, a pessoa jurídica é um entre fictício.

Acreditar no axioma de que unicamente o homem é sujeito de direitos, mas não aceitar a ficção de personalidade, leva à completa desnecessidade da existência de personalidade jurídica e subsequentemente à sua negação. As teorias que surgiram nessa linha e que procuraram uma resposta para a situação do patrimônio da pessoa jurídica, bem como aos direitos por ela exercidos, podem ser didaticamente agrupadas em duas: teoria dos direitos sem sujeito ou teoria do patrimônio de afetação; e teoria individualista.

Desenvolvendo a possibilidade da existência de direitos sem sujeito, afirmada por Windscheid em 1853, e utilizando também formulações do direito romano, Brinz acabou por deduzir a teoria do patrimônio-fim (Zweckvermögen).

Entre os romanos só havia uma espécie de pessoa, a humana. A criação, modernamente, de uma segunda categoria de personalidade - a jurídica – representa um regresso fantasioso, além de desnecessário. Isso porque os bens podem pertencer ad aliquem - a alguém -, mas também ad aliquid - a uma finalidade – a qual não necessita ser personificada para merecer proteção jurídica. Dessa maneira, os bens da pessoa jurídica seriam patrimônio sem fim. Titular dos direitos e deveres seria o patrimônio, e seus representantes agiriam no intuito da finalidade, e não per se.

Bekker trouxe à teoria em tela novos desenvolvimentos. Face ao direito duas são as situações possíveis: o gozo (genus) e a disposição (verfügung). Nem sempre o gozo – potencialidade de usufruir suas vantagens materiais – vem junto com a disposição – direito de agir como proprietário, administrando-os etc. Enquanto o gozo pode também caber a um incapaz, animal ou coisa inanimada, a disposição é privativa de alguém capaz de volição. Além disso, ele bipartiu os patrimônios-fim em independentes e dependentes. Os primeiros repetem a conceituação de Brinz, conjunto de bens afetados a uma finalidade e sem sujeito. Os últimos são bens, embora compondo um patrimônio maior de uma pessoa, servem como autonomia a um objetivo especial.

Centrada na pessoa dos associados e com raízes na doutrina do direito subjetivo de Ihering, Van der Heuvel propôs uma teoria que foi posteriormente desenvolvida por Vareilles-Sommières.

Para Van der Heuvel não é necessário apelar-se para a ficção, de vez que as regras de associação podem ser explicadas por meio dos princípios gerais. Três seriam as diferenças entre sociedades com personalidade e as dela destituídas: (i) mesmo possuindo a sociedade bens imóveis, sempre se considera mobiliário o direito dos sócios; (ii) o ativo social, patrimônio da sociedade, garante apenas os credores da sociedade, não os credores pessoais dos sócios; e (iii) o gerente representa a sociedade em juízo.

A praticidade está na origem da primeira diferença: simplificação do procedimento de transmissão de ações ou partes da sociedade. A segunda encontra sua explicação na separação de patrimônio e na liberdade contratual. Os sócios, ao formarem a sociedade, afetam certos bens à finalidade social e somente esses bens responderão pelas dívidas dessa sociedade. Isso é factível, desde que se acautelem terceiros. A última se dá, pois o gerente representa todos os sócios.

Em conclusão, as pessoas jurídicas seriam associações às quais a lei concedeu alguns privilégios, além de certas derrogações dos princípios comuns, em suma, um conjunto de privilégios.

Vareilles-Sommières parte do pressuposto de que todas as pessoas jurídicas são associações e considera como sendo, na verdade, dos associados os direitos tidos pela doutrina como pertencentes à pessoa jurídica. Os associados, coproprietários do patrimônio social, no exercício de seus direitos, acham-se sob a égide de um regime personificante — régime personnifiant — cujas feições são : a) um associado, somente com o consentimento de todos, poderá alienar a sua parte da massa comum; b) não pode um associado receber separadamente o seu quinhão de crédito social; c) não se pode exigir isoladamente de um sócio a sua parte da dívida social.

Embora se possa depreender dessa trilogia que exista uma pessoa, pelo fato de os associados possuírem conjuntamente o patrimônio social, na realidade inexiste outra pessoa a não ser a dos indivíduos associados. Assim, a gênese da pessoa jurídica não se deve ao legislador, mas sim ao regime a que se submeteram os associados.

As características do regime personificante, por seu turno, estão em consonância com os princípios gerais de direito obrigacional. Nessa linha, a pessoa jurídica seria um conjunto de cláusulas, devidamente aceitas pelos associados.

Embora creditando à teoria dos direitos sem sujeito, o fato de ter realçado o elemento teleológico no conceito de personalidade jurídica, são as seguintes as objeções mais frequentes contra tal teoria.

A possibilidade da existência da pessoa jurídica destituída de patrimônio comprova que os conceitos de patrimônio-fim e de pessoa jurídica não se superpõem. Qualquer patrimônio, inclusive o pertencente a um indivíduo, serve a uma finalidade. A pessoa jurídica é muito mais que uma simples coleção de bens. A existência de sujeito é imprescindível para que haja direito. Embora se possa imaginar a junção dos direitos patrimoniais em um todo, foge à compreensão como no patrimônio possam residir direitos de outras naturezas, como, exemplificativamente, os corporativos.

Já a teoria individualista ocasionou, mormente, as críticas a seguir:

Não aquilatou a importância do reconhecimento legal no surgimento da associação, acabando por, inter alia, deixar de reconhecer as diferenças entre associações não reconhecidas e pessoas jurídicas, na verdade existentes. Não é possível que a personalidade jurídica se cinja à exterioridade da associação, pois os próprios associados encontram-se perante um ente, o qual inclusive pode pelos mesmos ser acionado.

Ambas as teorias patrimonialistas foram acoimadas de serem apropriadas apenas ao direito privado, não tendo dado explicações à existência das pessoas jurídicas de direito público[2].

Ainda há uma terceira vertente teórica sobre as pessoas jurídicas, a que afirma sua personalidade real. Esta merece ser tratada, em outro momento, especificamente. Do exame das três visões teóricas sobre pessoas jurídicas e da meditação à respeito, exsurge compreensão holística da natureza jurídica dessas pessoas, fundamentais no mundo contemporâneo.


1 Rodas, João Grandino, A evolução que criou a pessoa jurídica merece ser conhecida, Revista eletrônica ConJur, 21 de abril de 2016.

2 Rodas, João Grandino, Sociedade Comercial e Estado, São Paulo, Editora Saraiva, 1995, p. 18/23

 

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