É crescente o número de aquisições de estabelecimentos
empresariais em nosso país e, via de conseqüência, o número de questões
societárias, tributárias, trabalhistas e cíveis decorrentes dessas
contratações, que precisam ser equacionadas antes da conclusão do negócio. Uma
das principais questões a serem analisadas diz respeito à previsão da
possibilidade de o alienante continuar a concorrer com o adquirente do
estabelecimento empresarial: a chamada cláusula de não restabelecimento ou
cláusula de não concorrência. Pouca atenção sobre o assunto no momento da
contratação fará com que, mais à frente, o negócio não tenha o sucesso e a
lucratividade esperados pelo adquirente.
A questão não é nova. No início do século passado, o Brasil
dependia economicamente do café. A riqueza do país estava concentrada nos
grandes produtores de café e nos empresários que desenvolviam negócios em
suporte à produção, tal como a indústria de aniagem (tecido feito com juta, uma
fibra têxtil vegetal com a qual eram ensacados os grãos de café). Foi nesse
contexto que Antônio Álvares Leite Penteado alienou a Companhia Nacional de
Tecidos de Juta. O adquirente, contudo, não contava que o alienante, conhecido
como Conde Penteado, pouquíssimo tempo após a venda, construiria ao lado da
fábrica alienada uma nova fábrica de tecidos de juta.
O instrumento em que, à época, as partes pactuaram a compra e a
venda era omisso sobre a possibilidade de o Conde Penteado continuar a
concorrer com o adquirente do estabelecimento empresarial. Isso fez com que
dois grandes advogados travassem histórica discussão no Supremo Tribunal
Federal: José Xavier Carvalho de Mendonça, em nome da Companhia Nacional de
Tecidos de Juta, e Ruy Barbosa, que ingressou nos autos em sede de embargos
infringentes, em nome do Conde Penteado e da Companhia Paulista de Aniagem. Em
resumo e com base em tantos outros argumentos, decidiu-se que além de restricta no tempo, no espaço e no objecto, a
renúncia deve ser expressa, ou pelo menos resultar de modo inequivoco dos
termos do contracto, para que na solução dos conflictos não prevaleça contra o
princípio soberano da livre concurrencia 1. Em
outras palavras: no silêncio do contrato, ao Conde Penteado era permitida a
concorrência 2. E o
adquirente, certamente, não teve o almejado sucesso e lucratividade com o
negócio adquirido.
No entanto, após o referido julgamento pelo e. Supremo Tribunal
Federal, a doutrina caminhou majoritariamente em sentido contrário. O Brasil
permanecia sem legislação expressa sobre o assunto, mas a doutrina socorria-se
de previsões do Código Comercial então vigente. J. X. Carvalho de Mendonça,
agora doutrinariamente, sustentava que uma das garantias devidas pelo alienante
é "fazer boa ao comprovador a coisa vendida", e não inquietá-lo na
sua posse e domínio 3. Assim,
fundar novo estabelecimento em localidade que pudesse retirar toda ou parte da
clientela do adquirente importaria em privar o comprador, em todo ou em parte,
da coisa vendida. Tratava-se de garantia decorrente do próprio contrato de
compra e venda, elevada a preceito de ordem pública, motivo pelo qual
desnecessária a estipulação formal e expressa de uma das obrigações do
alienante 4. A
doutrina ponderava, no entanto, que essa limitação à livre concorrência deveria
obedecer a parâmetros materiais (atividades concorrentes), temporais (período
de tempo), espaciais (âmbito geográfico da proibição) e pessoais (partes
abrangidas) 5.
Em 2002, com a promulgação de um novo Código
Civil, a questão foi, enfim, positivada por seu artigo 1.147:
"não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode
fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos subseqüentes à transferência" 6. Hoje, portanto, no silêncio do contrato, há um norte a ser
seguido.
Diz-se que há um norte porque a positivação não confere
automaticamente a desejada segurança aos contratantes que não regulamentarem a
questão no respectivo contrato. O Código Civil tratou apenas do parâmetro
temporal. Havendo, pois, omissão no contrato, os contratantes continuam com
diversas incertezas sobre questões que podem – e com certeza irão – surgir:
qual o parâmetro geográfico a ser observado? Poderá o alienante constituir novo
estabelecimento empresarial em bairro vizinho? E em cidade vizinha? E se o
negócio adquirido atender a demanda de todo o país. Somente, então, em outro
país, poderá o alienante constituir novo estabelecimento? Se sim, em tempos de
mercados globalizados, continuará o alienante impedido de comercializar com
qualquer estabelecimento do nosso país?
E mais: estariam os herdeiros do alienante impedidos de concorrer
com o adquirente do estabelecimento? E o alienante, agora contratado como
empregado de sociedade concorrente, cometeria infração? Permitir brecha para
essas e tantas outras discussões em meio a um complexo e elevado investimento
realizado para a aquisição de um estabelecimento empresarial é contribuir – e
muito – para que o negócio não tenha o sucesso almejado.
A doutrina tem se mostrado unânime no sentido de que a regra
prevista no art. 1.147 do Código Civil tem natureza dispositiva, ou seja, a lei
permite que as partes possam livremente dispor sobre o assunto 7. É recomendável, pois, que os próprios contratantes estabeleçam
os parâmetros temporais, materiais, geográficos e pessoais que devem nortear a
atuação do alienante em atividades concorrentes, para evitarem, dessa forma,
que a discricionariedade de um Juiz (ou mesmo de um Tribunal Arbitral), após
anos de litígio, venha a regular estas questões.
Em paralelo à alienação do estabelecimento empresarial, hipótese
corriqueira e não menos importante diz respeito à alienação da participação
societária por um dos sócios. Estaria, esse sócio, no silêncio do contrato,
abrangido pelo art. 1.147 do Código Civil? A tendência dos nossos Tribunais é,
se não estender a regra do art. 1.147 do Código Civil – cujo objetivo em última
análise é proteger a clientela – à hipótese, aplicar o art. 209 da lei
9.279/96, que ressalva ao prejudicado o direito de haver perdas e
danos em ressarcimento de prejuízos causados por atos de concorrência desleal
tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão
entre estabelecimentos comerciais, industriais ou prestadores de serviço, ou
entre os produtos e serviços postos no comércio 8. De toda
sorte, a questão não é pacífica e continuará a depender das circunstâncias do
caso concreto 9.
Em conclusão, é recomendável que se preveja e delimite, por
ocasião da celebração do negócio, os parâmetros que devem nortear a atuação do
alienante em atividades concorrentes ao estabelecimento empresarial alienado.
Fica, por fim, o registro: a possibilidade de livremente
estabelecer os parâmetros não significa a possibilidade de os parâmetros serem
estabelecidos livremente. Pretender estabelecer, por exemplo, que o alienante esteja
eternamente impossibilitado de concorrer com o adquirente do estabelecimento
empresarial ou, ainda, que o alienante não concorra com o adquirente em toda e
qualquer atividade empresarial, inclusive naquelas distintas do negócio
alienado, poderá, para dizer o mínimo, encontrar óbice no princípio
constitucional da livre concorrência10. É preciso que se tenha, como
em tudo na vida, razoabilidade e bom senso.
*
Andrea Zoghbi Brick é sócia do escritório Trench,
Rossi e Watanabe Advogados
__________
1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Freguezia - transferência -
necessidade de cláusula expressa. Conde Alvares Penteado e Companhia Nacional
de Tecidos de Juta. Relator: Min. Oliveira Ribeiro. 12 de agosto de 1914.
Jurisprudência. Revista dos Tribunais, São Paulo, a. 3, n. 12, p. 180-189, dez.
1914.
2 BARBOSA, Rui. As cessões de clientela de concorrência nas
alienações de estabelecimentos comerciais e industriais. In: ____. Obras
completas de Rui Barbosa, v. 40, t. 1, 1913. Rio de Janeiro: Ministério de
Educação e Saúde, 1948. Atente-se, também, para a recomendação de J. X.
Carvalho de Mendonça: “A essas razões forenses opomos as nossas, como advogado
daquela companhia, e solicitamos encarecidamente a quem deseje formar juízo
seguro a leitura desse nosso trabalho em três volumes (memoriais) e os votos de
Pedro Lessa nos Acórdãos de 30 de abril de 1913 e de 12 de agosto de 1913 do
Supremo Tribunal federal. Ninguém firme juízo sobre essa famosa causa sem
apreciar as razões dos dois litigantes. É somente o que pedimos” (MENDONÇA, J.
X. Carvalho de. Tratado de direito comercial brasileiro. Campinas, SP: Russel,
2004. v. 4, t. 2, p. 159).
3 Código Comercial, arts. 214 e 215.
4 MENDONÇA, J. X. Carvalho de. Tratado de direito comercial
brasileiro. Campinas, SP: Russel, 2004. v. 4, t. 2, p. 157-158.
5 Subsiste esse último parâmetro, lembrado por Marcelo Andrade
Féres, em razão da conveniência, em determinado caso concreto, de arrastar a
vedação de concorrência sobre outras pessoas, que não os próprios contratantes.
6 Código
Civil, art. 1.147.
7 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 12.ed. São Paulo:
Saraiva, 2008. p. 124; BARBOSA FILHO, Marcelo Fortes. Código civil comentado.
5.ed. São Paulo: Manole, 2011. p. 1118; TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa
Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código civil interpretado conforme a
Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. v. 3, p. 371;
CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao código civil. São Paulo: Saraiva, 2003. p.
652; WALD, Arnoldo. Comentários ao novo código civil. Rio de Janeiro: Forense,
2005. v. 14, p. 751; FÉRES, Marcelo Andrade. Estabelecimento empresarial,
trespasse e efeitos obrigacionais. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 158; DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de
empresa. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 769-770.
8 SÃO PAULO
(Estado). Tribunal de Justiça. Câmara de Direito Privado, 2ª. Ação cominatória.
Abstenção de prática de concorrência desleal em atividade empresarial. Sócio
retirante que constitui outra empresa, no mesmo ramo de atividade e na mesma
praça da sociedade da qual se retirou. Ato de deslealdade configurado.
Implícita, no contrato de cessão das cotas societárias, a cláusula de
não-restabelecimento. Impossibilidade de, embora reconhecida a prática de
concorrência desleal, vedar o exercício da atividade empresarial pelo infrator
por prazo superior a cinco anos, limitando a sua área de atuação futura.
Sentença parcialmente reformada neste capítulo... Ap.
9142767-40.2002.8.26.0000. José André Bitencourt e Pedro Marques de Souza Brás
e os mesmos. Relator: Des. José Roberto Bedran. 18 maio 2010. Tribunal de
Justiça, São Paulo, 2012. Disponível em: . Acesso
em: 09/01/2012; MINAS GERAIS (Estado). Tribunal de Justiça. Câmara Cível, 16ª.
Agravo de instrumento - direito societário - sócio retirante - cláusula de
não-concorrência - prazo indeterminado - nulidade - antecipação de tutela -
requisitos verificados - agravo provido. Em decorrência da aplicação analógica
do art. 1.147 do Código Civil, tem-se que a adoção do prazo de 05 (cinco) anos,
para a proteção do estabelecimento empresarial contra a concorrência do sócio
retirante, mostra-se mais equânime, tendo o legislador infraconstitucional
repelido qualquer limitação temporal indeterminada, justamente a fim de evitar
violação a garantias constitucionais... AgIn 1.0024.06.044308-2/001. José
Waldemar da Silva em causa própria e Imobiliária Bom Destino e outro(a)(s).
Relator: Des. Mauro Soares de Freitas. 14 fev. 2007 . TJMG, Belo Horizonte,
2012. Disponível: . Acesso
em: 09/01/2012.
9 RIO DE JANEIRO (Estado). Tribunal de Justiça. Câmara Cível, 2ª.
Apelação. Ordinária. Reparação de danos. Preliminar de nulidade de sentença por
cerceamento de defesa que se rejeita: não se há de cogitar de cerceamento de
defesa quando a prova pretendida pela parte não é, como não foi, imprescindível
à resolução da lide, diante da documental produzida. Concorrência desleal.
Inexistência. O art. 1.147 do CC/02 não se aplica ao caso vertente, na medida
em que não houve alienação de estabelecimento (complexo de bens organizados,
para exercício da empresa, por empresário ou por sociedade empresária) ao
terceiro apelado, mas, tão somente, cessão de cotas, cujo negócio é restrito à
figura do sócio... Ap. 0006809-86.2009.8.19.0001. Celuk Design e Jóias Ltda e
outros e Hasti Comércio de Metais Ltda e outros. Relator: Des. Jesse Torres. 24
nov. 2010. Poder
Judiciário Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: . Acesso em: 09/01/2012.
10 Constituição da República Federativa do Brasil, art. 170, IV.
EU vendi minha empresa, onde saí da sociedade. Era pra eu continuar como vendedor da mesma empresa, só que devido alguns contratempos nao vou mais trabalhar para os novos proprietários.
ResponderExcluirNão está em nenhum contrato que eu não possa atuar no mesmo setor ou abrir uma nova empresa para atuar nos mesmos clientes. Pelo que entendi, então, não vou poder abrir uma nova empresa para concorrer com os adquirentes da minha empresa? Mesmo nao tendo contrato delimitando esta situação?