14 de janeiro de 2015, 8h00
Por Otavio Luiz Rodrigues Junior
O caso Bhasin v. Hrynew [2014 SCC 71], de 13 de novembro de 2014, a despeito de sua contemporaneidade, já pode ser considerado um marco na jurisprudência canadense sobre a boa-fé objetiva, com reflexos para outros sistemas. Um dado comprova essa importância: em menos de dois meses, o precedente mereceu um verbete na Wikipedia, este último com referência a nossas colunas sobre o julgado, e notícias em jornais de circulação nacional no Canadá.
Nas colunas anteriores (Parte 1 e Parte 2), foram expostos os elementos descritivos e os fundamentos do acórdão da Suprema Corte do Canadá, que teve como relator o justice Cromwell. Agora, far-se-á a apresentação do dispositivo do acórdão e, em seguida, oferecer-se-ão alguns comentários de caráter comparatista.
Cromwell encerra seu voto com a resposta a alguns problemas que ele próprio formulou ao final de seu relatório.
A primeira conclusão (ou resposta) de Cromwell consiste em admitir a "entrada" para o Direito canadense (de common law, enfatize-se) da boa-fé objetiva como um princípio geral organizador, no entanto não a elevou ao status de um fundamento autônomo para a intervenção judicial nos contratos. Além disso, o acórdão não negou as demais formas de exteriorização da boa-fé no Direito anglo-canadense, ao estilo dos implied terms.
A segunda está na limitação da incidência da boa-fé à execução do contrato, não se aplicando à fase de negociações preliminares.
A terceira está em que se preserva o direito das partes de decidir sobre a continuidade dos vínculos contratuais. A exceção está, como afirmado reiteradamente no acórdão, especialmente nos parágrafos 86, 90-91 e 103, no reconhecimento da existência de práticas maliciosas voltadas a impedir a renovação do contrato.
A adoção da boa-fé como princípio geral organizador dependerá muito da experiência jurisprudencial e de modo como suas funções serão compreendidas pelos tribunais e pelas partes. O relator, a todo momento, ressalta que não é seu objetivo abrir as portas do Direito canadiano de língua inglesa para um novo instrumento de "moralismo judiciário".
Ao final do acórdão, o tribunal relembrou a tese do juízo de primeiro grau de que a empresa Can-Am[1] agiu desonestamente contra Bhasin ao exercer o direito postestativo assegurado pela cláusula de não renovação automática. O exame das conclusões da Alberta Court of Queen's Bench pela Suprema Corte levou a este tribunal a acolher a tese do comportamento desonesto da Can-Am em face de seu representante Bhasin. Não se negou o direito a não renovar o contrato, mas se afirmou que os meios utilizados tornaram o exercício dessa prerrogativa uma conduta desonesta.
Outro ponto importante no julgamento foi definir se haveria um conluio entre a Can-Am e o Sr. Hrynew, que terminou por assumir a área de representação do Sr. Bhasin em Alberta. Diversos fatos comprovados na instrução processual apontaram a participação de Hrynew no processo de desestabilização dos negócios de Bhasin, como relatado na primeira coluna da série.
A Suprema Corte do Canadá, nesse capítulo, acompanhou o resultado do Tribunal de Apelação e eximiu Hrynew de qualquer participação nos atos que culminaram com a não renovação do contrato entre a Can-Am e Bhasin. De modo explícito, no parágrafo 105 do acórdão, Cromwell declara que Hrynew não pode ser acusado de ter induzido a violação de um dever contratual de execução honesta por parte da Can-Am. Em linguagem mais próxima de nosso modelo, a Suprema Corte recusou a Hrynew o papel de "terceiro cúmplice na violação do contrato".
No parágrafo106, Cromwell foi mais explícito: "(...) à luz de minhas conclusões, a única violação do contrato neste caso é violação do dever de execução honesta e não houve indução à quebra do contrato". Com isso, Hrynew foi considerado parte ilegítima do processo.
Definida a responsabilidade exclusiva da Can-Am e afastada a incidência da doutrina do terceiro cúmplice, a Suprema Corte passou à etapa de quantificação de danos. A condenação baseou-se no valor atribuído pelo juízo de primeiro grau ao negócio de Bhasin, o que atingiu o montante de 87 mil dólares canadenses.
Alguns leitores, em contato com o colunista, mostraram-se extremamente surpreendidos com o acórdão. Houve quem considerasse o julgado canadiano muito atrasado em relação às soluções a que o Brasil já chegou faz muito tempo. Outros manifestaram pesar pela entrada do Direito Canadense anglófono em um arriscado modelo de intervenção judicial nos contratos.
O exame crítico do acórdão deve ser, contudo, antecedido por duas advertências. A primeira está nos riscos da inadequada "importação" de conceitos, categorias e normas jurídicas estrangeiros,[2] tal como já salientado em outra coluna. O caso canadense é emblemático quanto a isso, pois no país coexistem a tradição de civil law, preponderante em Québec, com seu Código Civil, e a de common law, que é, em relação à inglesa, à australiana e a parte dos estados norte-americana, extremamente original.
A segunda advertência, mais específica em torno da expressão boa-fé, está em que este conceito não pode ser tratado de maneira uniforme pela simples tradução de bona fides, good faith, bonne foi ou Treu und Glauben, para se ficar apenas no latim, no inglês, no francês e no alemão. Entre cada um desses Direitos nacionais existe uma miríade de sutilezas e de diferenças conceptuais da "boa-fé" que se torna extremamente arriscado fazer aproximações e diferenciações puramente linguísticas. O acórdão, neste aspecto, foi muito infeliz em diversos parágrafos. Veja-se, por exemplo, o parágrafo 83, quando se analisou o Código Civil de Québec e citaram-se os artigos 6o, 7o e 1.375 para se afirmar sobre o tratamento subjetivo e objetivo da boa-fé. Ora, para um leitor da tradição de civil law, essa diferenciação é mais do que óbvia e ela vem acompanhada do reconhecimento de 2 espécies de boa-fé, a objetiva e a subjetiva. Essa diferenciação é diferente de se afirmar que a boa-fé teria um aspecto objetivo e outro subjetivo. Desse equívoco original, o acórdão ora se refere a condutas violadoras da boa-fé objetiva, ora dá exemplos de condutas contaminadas pela má-fé como se fossem faces da mesma moeda.
Bem, a segunda advertência acabou por extrapolar os limites e "entrou" no exame do próprio acórdão. Siga-se, portanto, o caminho já aberto. Essa confusão terminológica é exasperadora para um leitor da tradição de civil law, especialmente se este for influenciado pelo Direito Civil alemão, como é o caso do brasileiro. O relator do caso Bhasin v. Hrynew chegou a resultados muito modestos e nada surpreendentes porque desconhece — ou não julgou relevante utilizá-los — os enormes avanços dogmáticos da literatura alemã do século XX sobre a boa-fé objetiva. Distinções sobre incidência da boa-fé na execução do contrato e em suas fases anteriores e posteriores é algo banal para o civilista brasileiro. O acórdão, como se observou, admitiu a incidência apenas na fase de execução e a rejeitou expressamente na fase de formação do negócio.
O caso Bhasin v. Hrynew, se tivesse sido apresentado a um tribunal brasileiro, teria provavelmente um resultado parcialmente similar. Faça-se um exercício quanto a esse julgamento "transplantado": uma empresa de planos de saúde (não há equivalente brasileiro de uma empresa que comercializa planos para custeio da educação, ao menos com importância macroeconômica) contrata um pequeno empresário para rever seus produtos. Com o tempo, para favorecer outro representante, amigo do gerente regional, a empresa faz todo tipo de expediente para reduzir-lhe a base de negócios, retirar-lhe os melhores vendedores e devassar suas contas, repassando os dados para o concorrente local. Passado um tempo razoável, a empresa tem fundamentos para não renovar o contrato e, com isso, a despeito de uma relação mutualística e colaborativa, praticamente destruir a atividade de seu parceiro comercial. O outro revendedor entra em conluio com a empresa e incentiva essas práticas, as quais resultarão em sua entrada na região do primitivo representante.
Antes da vigência do Código Civil de 2002, com base exclusivamente em princípios com ao boa-fé objetiva, seria possível defender a posição do pequeno revendedor e obter alternativamente tutela para se manter o contrato por um tempo razoável, até que se conseguisse um novo parceiro ou que se liquidassem os investimentos feitos, ou uma tutela ressarcitória, esta última a deferida pela Suprema Corte canadense.
O parágrafo único do artigo 473 do Código Civil de 2002 terminou por resolver essa questão de modo normativo — e não apenas principiológico — ao assegurar o direito a resilição unilateral dos contratos, por meio de simples denúncia notificada à outra parte. No entanto, se "dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos". A respeito desse dispositivo, já escrevi que: "Doravante, além de casos especiais previstos em leis extravagantes, uma das partes não poderá simplesmente resilir o contrato sem considerar a eventualidade de que tal ato venha a comprometer a própria existência econômica da outra parte. A norma do parágrafo único do artigo 473 fazia-se há muito necessária. De fato, tornou-se assaz frequente no Brasil o aniquilamento repentino de empresas pelo mero exercício da faculdade resilitória, em especial nos contratos de colaboração (...) Ao viso deste estudo, o parágrafo único do artigo 473 não objetiva a perpetuação dos contratos. Trata-se de uma norma que concretiza a boa-fé objetiva, aplicando-a a uma pletora de negócios jurídicos amplamente massificados na realidade brasileira e que se marcam pelo extremo mutualismo entre as partes."[3]
Quanto ao problema da interferência de Hrynew, a leitura do acórdão dá a entender que este último realmente agiu como um terceiro cúmplice. Pode-se considerar que a Suprema Corte não deu suficiente peso às provas contidas na instrução. Nesse ponto, o tribunal canadiano, se reconhecesse a interferência ilícita em negócios alheios, simplesmente aplicaria um constructo teórico reconhecido em seu próprio país e em outros de tradição de common law. Refere-se à doutrina do terceiro cúmplice, que também se acha desenvolvida no Brasil, seja com estudos dogmáticos, ao exemplo de nosso artigo de 2004[4], seja no belíssimo acórdão do Superior Tribunal de Justiça, do ministro Humberto Martins, pioneiro em seu reconhecimento no STJ em uma matéria de Direito Público.[5]
As duas observações feitas pelos leitores sobre o acórdão canadense merecem ser revisitadas. Ambas são paradoxalmente válidas e inválidas.
De fato, se comparado com as soluções a que se chegou no Direito Contratual brasileiro, o acórdão canadiano pode ser qualificado como pouco inovador. A questão pode ser vista, porém, sob outro ângulo: o Direito brasileiro é bem mais avançado nesse ponto dada a longa e triste história de quebras contratuais, crises econômicas e abuso de posições no mercado. Em nosso caso, pode-se dizer que existe "tecnologia de ponta" nesse tema, o que é motivo de orgulho e de lástima, por razões evidentemente diversas. No Brasil, deve-se hoje buscar meios de se controlar os excessos de voluntarismo (na concepção teórica) e de subjetivismo (na aplicação prática) de instrumentos como a boa-fé. Se isso não ocorrer, os frutos saborosos do salgado plantio dessa árvore poderão amargar.
Quanto ao outro comentário, a respeito da concessão dos canadenses ao modelo da boa-fé como "princípio geral organizador", valem as mesmas ponderações quanto ao prisma pelo qual se enxerga o acórdão canadiano. Sim, o abandono de 100 anos de tradição jurisprudencial pode ser lamentado pela quebra da solidez do modelo anglo-canadense. O argumento de Bhasin de que o Canadá deveria seguir o exemplo de "outras jurisdições", sob pena de seu isolamento, é bem conhecido dos brasileiros, quando se pretende mudar nossas normas para ajustá-las a um suposto viés do mercado internacional (parágrafo 29 do acórdão). As críticas de Cromwell, reiteradas aliás (parágrafos 33, 34, 62 e 70), ao modo incoerente com que a boa-fé é utilizada no Canadá bem poderiam ser formuladas em relação a outros institutos de common law. Seria essa uma real incoerência ou uma característica de um modelo que tem pouca devoção pelo caminho continental de um Juristenrecht, um "Direito dos professores", sistematizador e dedutivo?
A justiça da tese de Bhasin é inegável. O tribunal canadense não lhe poderia ter negado o direito. A argumentação, porém, esconde problemas sérios para o futuro do Direito Contratual canadiano. O relator, em diversas passagens, pretende se imunizar contra o uso "moralista" da boa-fé (vide parágrafos 70 e 79). Ao dizer que não o deseja, termina por exalçar um certo sentimento de culpa. Afinal, excusatio non petita accusatio manifesta. Em bom português, quem se escusa, se acusa. Espera-se que isso não ocorra. E é provável que não se verifique, dadas as condições históricas do Canadá. Ao estilo do que já escreveu aqui, não se pode orgulhar de um sistema contratual rico de precedentes e de constructos, como é o nosso, se a causa disso está em uma profunda disfunção social e econômica. De qualquer sorte, a coerência técnica e o rigor dos conceitos, nos dias de hoje, não podem mais ser acusados de instrumentos de um formalismo estéril. São, em verdade, uma das poucas proteções que restaram aos que desejam conhecer as razões pelas quais seus direitos são tolhidos.
[1] A empresa Can-Am, ou seja, Canadian American Financial Corp. (Canada) Limited), mudou se razão social ao longo do julgamento. Ela se tornou posteriormente Allianz Education Funds e, quando da prolação do acórdão, seu nome era Heritage Education Funds Inc. Em seu voto, Cromwell optou por denominá-la simplesmente de Can-Am.
[2] Utilizou-se a expressão "importação", com aspas, para destacar seu caráter genérico e pouco rigoroso tecnicamente. Há diversos fenômenos como a recepção, o legal transplant ou a internação, cujo sentido é bastante específico e deve ser respeitado. Para uma leitura mais cuidadosa sobre esses termos, sugere-se a leitura da seção 4.1. do artigo A influência do BGB e da doutrina alemã no direito civil brasileiro do século XX, disponível aqui: http://www.direitocontemporaneo.com/wp-content/uploads/2014/01/A-Influ%C3%AAncia-do-BGB-e-da-Doutrina-Alem%C3%A3-no-Direito-Civil-Brasileiro-do-S%C3%A9culo-XX.pdf e aqui https://www.academia.edu/8066581/A_INFLU%C3%8ANCIA_DO_BGB_E_DA_DOUTRINA_ALEM%C3%83_NO_DIREITO_CIVIL_BRASILEIRO_DO_S%C3%89CULO_XX
[3] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: Autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 76 e 78.
[4] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. A doutrina do terceiro cúmplice: Autonomia da vontade, o princípio res inter alios acta, função social do contrato e a interferência alheia na execução dos negócios jurídicos. Revista dos Tribunais, v. 821, p.80, mar. 2004. Disponível aqui: https://www.academia.edu/7188746/A_DOUTRINA_DO_TERCEIRO_C%C3%9AMPLICE.
[5] REsp 468.062/CE, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 11/11/2008, DJe 01/12/2008.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.
Revista Consultor Jurídico, 14 de janeiro de 2015, 8h00
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