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quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Suprema Corte do Canadá muda entendimento sobre boa-fé (Parte 2)




7 de janeiro de 2015, 21h36
Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

A apresentação aos leitores brasileiros da mais importante decisão da Suprema Corte do Canadá sobre a boa-fé objetiva teve início na última semana (clique aqui para ler), quando se narraram os elementos descritivos do caso e se expuseram as teses e a primeira parte da argumentação desenvolvida pelo relator, justice Cromwel.

O acórdão Bhasin v. Hrynew [2014 SCC 71], de 13 de novembro de 2014, tem como questão de fato a ruptura de um contrato de cooperação entre o canadense Bhasin e uma empresa que comercializava fundos educacionais, algo bastante comum em um país com educação superior paga em todos os níveis. Bhasin revendia esses fundos da empresa Can-Am e para isso valia-se de sua pequena empresa e de uma rede de “colaboradores”, muito ao estilo dos retalhistas de cosméticos, embalagens plásticas e roupas. Um concorrente de Bhasin, chamado Hrynew, e a empresa Can-Am uniram-se para forçá-lo a sair do negócio, o que efetivamente ocorreu. O pedido de Bhasin fundamentou-se na violação ao dever de boa-fé. Ele foi vitorioso em primeiro grau, mas o tribunal de apelação acolheu o recurso da Can-Am e de Hrynew.

A matéria subiu à Suprema Corte canadense e o relator iniciou seu voto com a exposição do estado-da-arte da boa-fé no Direito canadense de matriz inglesa, terminando por concluir que inexistia um constructo teórico definido sobre esse princípio, o que dava margem para interpretações incoerentes e fragmentadas. Retoma-se, agora, a fundamentação do voto-condutor do acórdão.[1]

Fundamentos do acórdão (continuação)
1. Segundo o relator, justice Cromwell, os tribunais canadense entendem que há certas espécies de relações que demandam a incidência de um dever de boa-fé, cujo fundamento pode ser extraído implicitamente do Direito. Seriam exemplos: a) as relações de trabalho e a resilição unilateral do vínculo empregatício (Honda Canada Inc. v. Keays, 2008 SCC 39, [2008] 2 SCR 362); b) o pagamento de valores devidos aos segurados  (Fidler v. Sun Life Assurance Co. of Canada, 2006 SCC 30, [2006] 2 3 SCR, parágrafo 630), em relação ao que deve prevalecer a boa-fé. Exige-se também o comportamento de boa-fé do segurado ao prestar todas as informações necessárias à seguradora.

2. Nos Direitos do Reino Unido e da Austrália tem crescido a aplicação da boa-fé, apesar da relutância em se admitir a existência de uma doutrina autônoma nessa matéria. Tem-se reconhecido a existência de deveres específicos, de caráter implícito, como a honestidade, lealdade e a cooperação. Na Austrália, a questão ainda está em desenvolvimento e há alguma claudicação no uso da boa-fé.

3. O relator voltou-se, então, para o Direito canadense, o qual, segundo reiterou, ainda padece de uma doutrina fragmentada, instável e dotada de incerteza no campo da boa-fé.  Há uma forte corrente doutrinária que defende a manutenção do caminho atual, porque conserva as tradições do Direito do Canadá, de matriz inglesa.

4. As vantagens de se adotar a boa-fé como um “princípio de organização” podem ser identificadas por comparação ao que já se fez com o princípio da vedação ao enriquecimento sem causa, a base do Direito Restituitório.

5. Cromwell entende que “o princípio da boa-fé deve ser aplicado de um modo coerente com os compromissos fundamentais do Direito Contratual de common law, o qual geralmente dá um grande peso à liberdade dos contraentes de buscar a realização de seus próprios interesses”.  É comum, “nas relações comerciais, que uma das partes cause prejuízo à outra, ainda que dolosamente, ao favorecer seus próprios interesses econômicos”. Agir desse modo, “não é algo necessariamente contrário à boa-fé”. E, em alguns casos, os tribunais devem “incentivar” essas condutas em nome da “eficiência econômica”. De tal sorte que o desenvolvimento do princípio da boa-fé não deve se transformar em uma “forma ad hoc de moralismo judicial” ou em uma “justiça da palmeira”, em alusão indireta, não referida no acórdão,  ao versículo 5 do capítulo IX do Livro de Juízes, no Antigo Testamento, que descreve a atuação da profetisa Débora.[2]Dito de outro modo, o princípio “organizador” da boa-fé não pode ser utilizado para se fazer o “escrutínio dos motivos das partes contratantes”.

6. Iniciando outra seção do acórdão, o justice Cromwell volta-se para os elementos descritos do caso e pergunta se deveria existir um “novo dever”. Para ele, as relações entre a empresa Can-Am e o Sr. Bhasin não eram de emprego ou de franqueado-franqueador. No caso dos autos, não seria possível identificar um dever implícito de boa-fé, muito menos se pode negar que as partes tenham uma certa dose de discricionariedade na execução de um contrato. Desse modo, a questão central para a Suprema Corte está em responder à indagação: devemos ou não criar um novo dever no Direito anglo-canadense “debaixo do guarda-chuva do princípio organizador da boa-fé na execução dos contratos?”

7. Justice Cromwell responde que sim. Para ele, existe um dever geral de honestidade na execução do contrato. Isso significa que as partes não devem mentir ou dolosamente iludir a outra parte em questões diretamente relacionadas com a execução do contrato. No entanto, não se “impõe um dever de lealdade ou de disclosure”, muito menos que a parte renuncie a sua posição mais favorável em um contrato. Deseja-se apenas que se observe uma exigência de não mentir ou de não enganar a outra parte sobre a execução do contrato. Esses deveres defluem diretamente da boa-fé e reconhecê-lo não é algo excessivo.

8. Para Cromwell, exigir a honestidade dos contratantes é algo que “interfere muito pouco na liberdade de contratar”, uma vez que raramente alguém vai esperar que um contrato autorize expressamente o comportamento desonesto. É possível definir de modo particular o que seria esse comportamento, no entanto os limites normativos impedem que se chancelem comportamentos abusivos.

9. Existem, segundo o relator, dois argumentos contra a ampliação do papel do dever da boa-fé nos contratos. O primeiro está em que a boa-fé é um conceito intrinsecamente não claro e que permitirá o exercício de um “moralismo judicial ad hoc”, capaz de “minar a segurança jurídica das transações comerciais”. O segundo argumento é o de que a imposição de um dever de boa-fé é incompatível com o princípio fundamental da liberdade contratual. O relator afirma que não tem de decidir neste caso se esses argumentos são válidos ou não em relação ao propósito de se conferir uma aplicação generalizada à boa-fé. No entanto, “eles não têm peso algum em face da adoção de uma regra de execução honesta [do contrato]".

10. O reconhecimento do dever de honestidade na execução do contrato não implica qualquer risco para a “segurança comercial” no Direito dos Contratos. Um “homem razoável”, que exerça atividade comercial, é levado a esperar que a outra parte contratante ao menos não será desonesta a respeito de sua performance.

11. Aqueles que temem este “modesto passo” em direção à boa-fé, por se criar incertezas ou por se impedir o exercício da liberdade contratual, podem encontrar “conforto” na “experiência do Direito de Québec” e do Direito de common law e o estatutário de muitos Estados norte-americanos.

12. Cromwell, nos parágrafos 83 a 85 do acórdão, faz considerações sobre a boa-fé no Québec e em partes dos Estados Unidos, com o objetivo de demonstrar que seu uso não tem sido óbice ao exercício da atividade contratual ou à segurança nos negócios. Outro ponto digno de nota está em que a adoção da boa-fé objetiva pelo legislador nesses locais foi antecedida de sua admissão e aplicação pelos tribunais.

13. O relator também salientou que o dever de execução honesta do contrato, ora proposto, não se pode “confundir” com um dever de disclosure  ou de “lealdade fiduciária”. Mais diretamente: “A parte, em um contrato, não tem o dever geral de subordinar seu interesse ao de outra parte”. As partes contratantes, todavia, devem ser capazes de contar com um “padrão mínimo de honestidade” no comportamento de seu parceiro no negócio em relação à execução do contrato. Se as coisas não correrem bem, terão a oportunidade equânime de proteção de seus próprios interesses.  No exemplo dos autos, um contrato como o firmado entre a Can-Am e Bhasin não poderia ser qualificado como uma espécie submetida a padrões radicais de boa-fé (uberrimae fidei), como se daria em um contrato de seguro, que exige a divulgação de fatos relevantes. Mas, no contrato entre a recorrente e o recorrido é possível distinguir entre a omissão de fato relevante e a intenção firme de resolver o contrato e a desonestidade manifesta.

14. Para Cromwell, a ação de Bhasin propôs a adoção da boa-fé de um modo muito mais amplo do que o proposto em seu voto.  É de se concluir, todavia, que a introdução no Direito anglo-canadense de um “dever geral de execução honesta” é um passo adequado, reconhecendo-se que as implicações da adoção de um princípio organizador da boa-fé objetiva no país devem ser avaliadas conforme a evolução da jurisprudência.

15. Em resumo, Cromwell apresenta suas conclusões:

a) Existe um princípio geral da boa-fé, de caráter organizador, que delineia muitas facetas do Direito dos Contratos no Canadá anglófono.

b) De um modo geral, as implicações particulares do princípio para casos particulares são determinadas pela doutrina que o desenvolveu e que lhe emprestou eficácia em várias espécies de situações e relações.   

c)  É apropriado reconhecer um novo dever, fundado em common law, aplicável a todos os contratos como uma manifestação do princípio geral organizador da boa-fé.  Trata-se de um dever de execução honesta do contrato, o qual requer das partes um comportamento honesto de umas em relação às outras na execução de suas obrigações contratuais.

Na próxima semana, apresentar-se-á o dispositivo do acórdão e far-se-á uma comparação com o Direito brasileiro.


[1] Renova-se aqui a advertência feita na coluna anterior: muitas passagens do voto foram parafraseadas ou colocadas entre aspas. No entanto, a autoria do texto contido nos parágrafos numerados é integralmente atribuída à câmara julgadora da Suprema Corte do Canadá. Considerou-se desnecessário o recurso exaustivo às notas de rodapé, por se tratar de uma coluna (e não de um artigo) e para evitar que o texto perdesse a fluidez.   O colunista, portanto, não tem qualquer pretensão autoral em relação a essas passagens. Seu contributo foi traduzir, organizar, sintetizar e adaptar o texto.

[2] “4. Naquela época, a profetisa Débora mulher de Lapidot, era juíza em Israel. 5. Sentava-se sob a palmeira de Débora, entre Ramá e Betel, na montanha de Efraim, e os israelitas iam ter com ela para que julgasse suas questões” (Juízes, IX: 4-5).

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Revista Consultor Jurídico, 7 de janeiro de 2015, 21h36

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