Por Otavio Luiz Rodrigues JuniorConjur, 6 de maio de 2015, 8h00
A geração de meus pais foi a última a ter no idioma francês sua segunda língua. O inglês, ao menos para quem era jovem nos anos 1960, era uma língua técnica, voltada para os que desejavam seguir carreira no mundo dos negócios, no mercado financeiro ou em alguma multinacional britânica ou norte-americana. Na Medicina, apesar do crescente desenvolvimento dos Estados Unidos no setor, fazer uma residência na França ainda era o sonho da maioria dos melhores egressos de universidades brasileiras. Nas Engenharias, a disputa era maior. Instituições norte-americanas, alemãs (em franco processo de reconstrução) e francesas disputavam a primazia nesse campo. No Direito e, em larga medida, nas Ciências Humanas, a liderança francesa permanecia insuperável.
A Universidade de São Paulo, fundada em 1934, muito deve de sua formulação original à chamada "missão francesa", da qual participaram Roger Bastide, Paul Arbousse-Bastide, Claude Lévi-Strauss, Pierre Monbeig, Paul Hugon e Fernand Braudel, quase todos jovens e recém-formados docentes, cuja fama internacional só surgiria nas décadas seguintes. Por um feliz acaso, esses desconhecidos professores converteram-se em líderes ou expoentes de escolas de pensamento nos anos subsequentes. Essa circunstância deu mais relevo aos professores brasileiros que se graduaram sob esse influxo, ao exemplo de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e, no Direito, Silvio Rodrigues. Os efeitos tardios da "missão francesa" fizeram-se sentir até os anos 1970. Silvio Rodrigues reforçou a "tradição francesa" na disciplina de Direito Civil na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, o que se observa pela sequência de titulares dessa disciplina até os dias de hoje, como Antonio Junqueira de Azevedo, Teresa Ancona Lopez, Carlos Alberto Dabus Maluf e Silmara Chinellato, todos membros da Associação Henri Capitant de Amigos da Cultura Jurídica Francesa.
No século XX, padres franceses educavam os filhos da classe média em muitas capitais brasileiras. Tive relatos de amigos da geração de meus pais que se lembravam do anúncio da derrota francesa para as forças vietnamitas do general Vo Nguyen Giap, na célebre batalha de Dien Bien Phu, em 1954. Era o intervalo da aula e os professores ouviam pelo rádio o anúncio do fim humilhante da Indochina francesa sob as armas de guerrilheiros terceiro-mundistas. As escolas de línguas complementavam a formação escolar básica em francês. Sartre, Foucault, Camus, a Nouvelle Vague, Brigitte Bardot, Alain Delon, o mítico general Charles de Gaulle, o campeão da França Livre, uniam-se aos grandes nomes do passado glorioso da France éternelle, como Pasteur, Napoleão, Dumas, Balzac, Pascal, Luís XIV, Voltaire e Montesquieu.
Aquele esplendor dos anos 1960 era apenas a antecâmara de um longo período de decadência, que se iniciaria nos anos imediatos e que se acentuaria, com maior ou menor intensidade desde então. Acontecimentos como a criação da Comunidade e depois União Europeia; o período presidencial de François Mitterrand ou o desenvolvimento autônomo da bomba atômica foram aparentes intervalos nesse processo, na medida em que expuseram a liderança francesa no cenário político internacional, ainda que, em muitos casos, mais imaginária do que real.
De Gaulle é uma síntese dessa França contemporânea. Líder de um movimento de resistência contra o invasor de sua pátria, ele comandou tropas formadas por um estranho amálgama de oficiais superiores da velha aristocracia do Antigo Regime, legionários estrangeiros, republicanos espanhóis derrotados por Franco na Guerra Civil de 1936, poloneses fugidos da ocupação alemã, batalhões coloniais de vietnamitas, árabes e africanos. Todos com uniformes britânicos adaptados e armas americanas. A esmagadora maioria de seus contemporâneos optou por servir ao regime de Vichy e colaborar com o invasor nazista. Com esse exército simbólico, carregado nos ombros por britânicos e americanos, reconquistou a França, invadiu a Alemanha com a vanguarda de magrebinos e subsaarianos liderados por oficiais monarquistas da República Francesa e ainda assinou o tratado de armistício ao lado dos vencedores, embora ele não passasse de um brigadeiro general temporário e vice-ministro da Defesa de um Estado que foi vencido em poucas semanas pelos alemães em 1940.
Ao seu lado, desde a primeira hora, encontrava-se um homem com uma história muito peculiar: doutor em Direito em 1914, foi mobilizado pelo Exército francês após a deflagração da Primeira Guerra Mundial, com 27 anos de idade. Ferido em combate após carregar com a infantaria francesa contra uma posição alemã, condecorado por bravura e de volta à vida civil, ele ingressou na carreira universitária até assumir a cátedra da Faculdade de Direito da Universidade de Paris em 1929. Judeu, cujos antepassados eram marranos expulsos de Portugal pela Inquisição, esse homem foi um dos primeiros a fugir de Paris, após a queda da cidade em 1940, e a juntar-se à França Livre em Londres. Perdeu a nacionalidade francesa, por decreto do marechal Petáin, e foi condenado à morte in absentia por alta traição. Seu nome? René Samuel Cassin (1887-1976), o pai da Declaração Universal dos Direitos Humanos e prêmio Nobel da Paz de 1968.
Se De Gaulle conseguiu por meio de blefes e de uma coragem suicida conduzir uma França derrotada ao mito da vitória em 1945, Cassin fez algo parecido em termos jurídicos. Ele elaborou todos os documentos constitucionais da França Livre (e suas posteriores reinvenções jurídicas até que De Gaulle assumisse a presidência francesa em 1944) e teve de enfrentar Churchill e, com maior dificuldade, Roosevelt, a fim de sustentar que o movimento gaullista era o único representante legítimo da verdadeiraFrança e não o governo de Vichy, que controlava efetivamente o país e o império colonial. Indagado por um representante do presidente Franklin Delano Roosevelt sobre em qual legitimidade ele se baseava para insistir que os americanos não mais reconhecessem o governo do marechal Petáin, o professor judeu disse, com a coragem dos loucos, que os colaboracionistas eram inconstitucionais por definição. Todos os seus atos, como a deportação de judeus e a cooperação com o ocupante estrangeiro, eram a negação quotidiana do texto constitucional.
A coragem de Cassin em 1940, que foi o jurista combatente em substituição ao combatente jurista de 1914, contrasta com a covardia de grande parte dos professores de Direito franceses ao tempo da invasão alemã.
Um dos exemplos mais vergonhosos é o de um jurista muito citado e admirado no Brasil, Adolphe Marie Louis Georges Ripert (1880-1958). La règle morale dans les obligations civiles (A regra moral das obrigações civis) é provavelmente seu livro de maior influência no Brasil[1]. Embora suas ideias mais importantes, em termos de metodologia jurídica e de perspectiva sobre a suposta decadência do Direito Privado, encontrem-se em Le déclin du droit: études sur la législation contemporaine (O declínio do Direito: estudos sobre a legislação contemporânea),[2] como bem destacou Nelson Nery Jr. em entrevista a nós concedida na Revista de Direito Civil Contemporâneo.[3] Ripert foi um dos pioneiros na defesa de uma certa decadência do Direito Civil e de sua publicização, que começou a se divulgar nos anos 1960 no país e ganhou ares quase hegemônicos nos últimos 20 anos. O solidarismo ripertiano ainda é bem forte, a despeito dos quase 70 anos de seu surgimento.
Ripert foi ministro de Estado da Educação e Juventude no governo de Vichy e, nessa condição, abandonou suas posições filossemíticas dos anos 1930, ao tempo em que autorizou a elaboração de listas de judeus que ocupavam postos no serviço educacional. Cassin foi uma das vítimas de Ripert, tendo perdido sua cátedra universitária por efeito da nova legislação antissemita. O ministro Georges Ripert assinou o ato de demissão de Cassin.
As diferentes trajetórias de Cassin e Ripert unem-se em dois aspectos. O primeiro está em sua condição de catedráticos franceses em um ambiente universitário elitista e ao qual só havia acesso para um número pequeno de cidadãos. O segundo está na lenta transformação no perfil das carreiras jurídicas francesas após a Segunda Guerra Mundial e, de modo decisivo, sob o governo do presidente Charles de Gaulle, com as reformas educacionais e na magistratura, esta última marcada pela Ordenança 58-1270, que baixou a Lei Orgânica do Estatuto da Magistratura, com a criação do Centro Nacional de Estudos Judiciários, como bem assinala Fernando Fontainha, no melhor estudo já publicado em língua portuguesa sobre o recrutamento de juízes na França.[4]
Dez anos após a morte de Ripert e a reforma judiciária gaullista, o mundo se veria abalado pelos movimentos estudantis de 1968. A República Francesa foi a base de uma revolução liderada pelos universitários e que se propagou por diversos países do mundo, em cada um deles assumindo pautas particulares, como a objeção à Guerra do Vietnã (Estados Unidos), a luta pela democratização do regime (Primavera de Praga) ou à rejeição à ditadura militar (Brasil). O ano de 1968 foi uma nova "esquina do mundo", para se referir ao ano revolucionário de 1848. Mas, em França, a insatisfação dos estudantes com a estrutura universitária e à crise de oferta de vagas no ensino superior para uma nova geração de filhos do pós-guerra estiveram na raiz da rebelião, que quase derrubou o presidente De Gaulle.
Um dos efeitos desse novo quadro pôde-se sentir na divisão da Universidade de Paris, ocorrida em 1970, que se desmembrou em Paris-I, Paris-II, Paris-IX, Paris-X, Paris-XII e Paris-XIII, graças ao Decreto 70-928, de 8.10.1970, o qual deu efeito ao art.44 da Lei 68-978, de 12 de novembro de 1968, aprovada após o enfraquecimento do movimento estudantil e a retomada do controle político pelo general De Gaulle.
As faculdades de Direito francesas transformaram na segunda metade do século passado, na mesma ordem em que a própria universidade se abriu para um número exponencialmente maior de pessoas. Essa universalização do ensino superior também causou impactos nas carreiras jurídicas, com a mudança de perfil dos ingressantes e na relação entre as elites e a ocupação desses postos.
Uma das principais notas do modelo jurídico francês está na paridade quase absoluta entre as remunerações das principais carreiras do serviço público. Auditores, engenheiros, militares, médicos, juízes e professores seguem, em suas respectivas áreas do serviço público, uma tabela de correspondência de remunerações, que leva em conta tempo de serviço e a equivalência de responsabilidades e de níveis na hierarquia dos respectivos órgãos ou plexos administrativos. O almirante, o magistrado da Corte de Cassação, o professor com agregação e o chefe de um serviço médico, salvo variações pouco expressivas, decorrentes de gratificações de periculosidade, por exemplo, percebem valores aproximados.
Não existe em França uma cultura de preeminência das carreiras jurídicas sobre as demais na administração pública. Desse princípio igualitário geral e do reconhecimento da dignidade intrínseca de cada uma das funções no Estado é que não se identificam fenômenos tão tipicamente brasileiros como a hipertrofia dos cursos jurídicos, a formação de um imenso exército de reserva de bacharéis em busca do Santo Graal do "concurso público jurídico" (e não do "concurso público" simplesmente, faça-se esse registro) e a representação social diferenciada dos membros das carreiras jurídicas em face das demais.
No Brasil, há anúncios na televisão para que os "jovens" alistem-se nas Forças Armadas para o serviço militar e ingressem nas corporações militares. Essa publicidade justifica-se pela necessidade de lembrar seus destinatários do caráter compulsório do alistamento e também para atrair quadros para o oficialato, o que se dá pela baixa atratividade dos soldos. Em França, esses anúncios podem ser encontrados nos jornais para várias carreiras, e, o mais surpreendente, para a magistratura. Seria algo impensável para um brasileiro imaginar que o tribunal de Justiça ou o tribunal federal pagasse por um anúncio de abertura de inscrições para concurso de ingresso em suas carreiras.
Nas próximas colunas, far-se-á o exame das universidades, da formação discente e das carreiras jurídicas francesas. Será mais uma oportunidade para se contrastar a experiência de uma nação que muito influenciou e ainda influencia o Direito brasileiro e suas instituições jurídicas e judiciárias, a despeito de sua substituição, nos últimos 30 anos, por novos paradigmas, como a Alemanha e os Estados Unidos.
P.S. Na confecção das colunas sobre o Direito francês, o autor contará com o importante auxílio dos professores Fernando de Castro Fontainha (Uerj), Alexandre Veronese (UnB) e Reinaldo Couto Filho (Uneb), representantes da nova geração de docentes brasileiros de formação francófona.
[1] RIPERT, Georges. La règle morale dans les obligations civiles. Paris: LGDJ, 1925.
[2] RIPERT, Georges. Le déclin du droit : études sur la législation contemporaine. Paris: LGDJ, 1949.
[3] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Entrevista com Nelson Nery Jr. Revista de Direito Civil Contemporâneo. v. 1, p. 367-388, out.-dez.2014.A entrevista está disponível aqui:https://www.academia.edu/11200822/Entrevista_com_Nelson_Nery_Jr. Acesso em 20-5-2015.
[4] FONTAINHA, Fernando de Castro. Como tornar-se juiz? : uma análise interacionista sobre o concurso da magistratura francesa.Curitiba: Juruá, 2013. p.45-47.
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