13 de maio de 2015, 19h52
Por Otavio Luiz Rodrigues Junior
O império da República
Luís XIV (1638-1715), o rei-sol, autor da famosa frase "o Estado sou eu" (L'État c'est moi"), é considerado o grande responsável pela consolidação do conceito de estado-nacional francês e pela consagração do regime absolutista. Sua infância foi profundamente marcada pelo movimento da Fronda, uma reação político-militar da aristocracia francesa contra o processo de centralização dos poderes na pessoa do rei, por meio de uma política tributária opressiva, algo que se iniciou com o regime dos "validos reais", os ministros e cardeais de Richilieu e Mazarino. A revolta dos nobres gerou revoltas em Paris, que ameaçaram a vida da Família Real.
Após colocar as finanças nacionais em ordem, graças ao trabalho incansável de Jean-Baptiste Colbert, Luís XIV deu início a um processo de aproximação com a nobreza nacional, cujo símbolo maior é o Palácio de Versalhes, a nova sede da monarquia, após o abandono do Louvre, onde vivera os traumas das rebeliões contra seu falecido pai. Essa política modificou, ao longo de seu duradouro reinado, as relações da aristocracia com seus feudos e com o rei. Criou-se uma cultura cortesã inteiramente nova: ele trouxe os nobres para junto de si, que trocaram a vida no interior por Paris e por novos hábitos mundanos. Ligações ancestrais com o povo e com uma vida militar e ascética foram substituídas pela busca pela proximidade com o rei (a fonte de todo o poder) e com a moda, a música e os prazeres cortesãos. Em menos de um século, essa aristocracia degenerada, que precisava espoliar seus feudos para manter a vida dupla em Paris, alheia à vida d'armas (um dos fatores de sua legitimidade social), não conseguiu resistir à devastadora e cíclica revolta iniciada em 1789, que culminou com a morte de Luís XVI, o neto do rei-sol, e de sua esposa Maria Antonieta, de sangue Habsburgo, após o julgamento pela Convenção, liderada pelos jacobinos de Robespierre.
Uma nova França nascia daquele mar de sangue que foi o período do Terror. Quando Napoleão, após ter sido um cabo de guerra do regime revolucionário, tomou o poder no 18 Brumário, ele tentou refundar o país com um arranjo insustentável: unir a velha aristocracia das Cruzadas com os novos "aristocratas" da espada, forjados nas guerras revolucionárias e napoleônicas. O ideal igualitário, tingido pelo sangue de tantos nobres assassinados, foi apagado no curto período do Império de Napoleão I. A iniciativa não deu certo. Em 1815, há 200 anos, o Exército Imperial seria derrotado por uma coalização de monarquias nos campos belgas de Waterloo pelo irlandês Duque de Wellington e pelo general prussiano Blücher.
Desde 1815, a França viveu épocas monárquicas ou de regimes autoritários, ao tempo em que foi palco de revoluções populares radicais, como a Comuna de Paris, até a retomada da plena normalidade institucional com o fim da Segunda Guerra Mundial. Passados 200 anos, o igualitarismo tornou-se um valor fundante da República Francesa. A última oportunidade de restauração monárquica na França foi o turbulento período da queda do governo colaboracionista de Vichy e a reconquista nacional pelos exércitos aliados e pelos franceses livres de Charles de Gaulle. O general nascera em uma família monárquica legitimista (defensora da restauração dos Bourbon, a dinastia dos Luíses), mas se converteu em republicano. A porta estava fechada.
A sociedade francesa vive hoje o império do republicanismo. Tal estado de coisas reflete-se no quotidiano de greves, protestos, alto nível de sindicalização e de politização social. Mas também em algo intangível: o profundo senso de dignidade individual, que se reflete em todas as profissões, intelectuais ou não, o que muita vez é confundido com arrogância (embora ela não possa ser desconsiderada). O garçom, o pedreiro, o militar ou o magistrado não se colocam em posições assimétricas como indivíduos por causa de suas profissões.
Esse igualitarismo radical só é atualmente fissurado pelo grave conflito de assimilação dos netos e bisnetos de soldados das tropas coloniais e de regimentos de franceses livres compostos por africanos subsaarianos e magrebinos, levantinos e indochineses, que lutaram pela metrópole nas duas guerras mundiais do século XX, além das guerras da Indochina (atual Vietnã, Laos e Camboja) e da Argélia. Para não serem massacrados por haverem lutado pelo lado perdedor — a metrópole — esses homens e seus familiares foram admitidos a emigrar para a França. Com a descolonização, outra leva de africanos e árabes seguiu para o território francês. Atualmente, a pobreza e as guerras têm levado nos contingentes para a França. O abismo cultural e religioso cresceu e a fratura social vem corroendo o igualitarismo francês.
A despeito disso, prevalece a ideia de dignidade individual e, com isso, não há no cenário profissional francês, uma assimetria tão profunda das carreiras jurídicas com as não jurídicas, como se dá no Brasil contemporâneo.
As principais carreiras jurídicas francesas
Como visto na coluna anterior, a correlação de remunerações entre as carreiras do serviço público e das forças armadas é notável em França. Com isso, não se formou um "Estado dos juristas" dentro do Estado francês.
Convém agora fazer um exame das principais carreiras jurídicas em França, suas atribuições e suas formas de acesso.[1]
a) Magistratura — A magistratura francesa, à semelhança do que se dá na Itália, divide-se em juízes e procuradores, sendo os primeiros ditos "magistrados judiciários" e os segundos "procuradores da República", antigos procuradores do rei.
A Lei Orgânica da Magistratura francesa foi baixada pela Ordenança 58-1270, de 22.12.1958, modificada Lei Orgânica 94-100, de 5 de fevereiro de 1994, que tem como órgão central o Conselho Superior da Magistratura.[2] A magistrat du siège divide-se em 2 graus. O primeiro grau, nos chamados tribunais de grande instance, compõe-se de juízes; juízes de instrução; juízes de menores; juiz de execução penal; juiz de instância; e juiz alçado a um tribunal de recurso. Na Corte de Cassação, tem-se a figura do auditor. No segundo grau, estão os "vice-presidentes", uma típica tradição francesa que vem da atribuição ao presidente da República o papel de "presidente" do Conselho de Estado (verdadeiramente presidida pelo vice-presidente). Nas cortes de apelação, no segundo grau, tem-se o conselheiro. E, na Corte de Cassação, o auditeur e o conseiller référendaire.
Em um nível denominado de hors-hiérarchie, que não é propriamente um grau, há o primeiro vice-presidente (como variações de nomenclatura), no tribunal de grande instance, o presidente de câmara e o primeiro presidente (na Corte de Apelação) e o conselheiro, presidente de câmara e primeiro presidente (na Corte de Cassação).
De modo vulgar, pode-se dizer que esses níveis guardam correspondência na estrutura do Ministério Público, cujos cargos também variam conforme os graus, os tribunais de grande instance, a Corte de Apelação e a Corte de Cassação. No segundo grau, por exemplo, tem-se o substituto de procurador da República. No primeiro grau, o procurador da República, com diversas variantes de nomes e funções. E, na hors-hiérarchie, o procurador da República e o procurador da República adjunto. Na Corte de Apelação, porém, há o procurador-geral e o advogado-geral. Ao passo em que, na Corte de Cassação, têm-se o advogado-geral, o primeiro-advogado-geral e o procurador-geral.
Ambas as carreiras da magistratura francesa equivalem-se, por efeito do princípio da unidade do corpo judiciário, que permite a nomeação para quaisquer de suas expressões, a magistratura ou a procuratura. Há, no entanto, algumas diferenças de regime como a ausência de sujeição hierárquica e a garantia da inamovibilidade para os juízes, o que não se tem para os procuradores, conforme os dados da Rede Judiciária Europeia.
As estatísticas da Rede Judiciária Europeia revelam que, em 2013, na França metropolitana e nos territórios do ultramar, havia 8.090 magistrados.
Fernando Fontainha, baseado em pesquisas específicas de autores franceses, permite colocar o número de 2013 em perspectiva: no ano de 1857, havia 6.254 juízes em França, enquanto, no ano de 1970, esse número não passava de 4.160. Nesse intervalo, a população do país passou de 37 para 50 milhões de habitantes. Outro dado importante, na segunda metade do século XX, decresceu significativamente o número de candidatos às provas da magistratura, caiu o interesse da elite em ingressar nessas carreiras e ocorreu uma acentuada ampliação do número de mulheres na magistratura.[3]
b) Ministério Público — Os membros do Ministério Público são também magistrados, no entanto, cabe-lhe defender a sociedade e fiscalizar a aplicação da lei. Sua estrutura é hierárquica, à exceção da procuradoria-geral junto à Corte de Cassação.
Como ocorria no Brasil até a Constituição de 1988, o Ministro da Justiça, que em França ainda conserva o nome monárquico de Garde des Sceaux (Guarda dos Selos). Cada tribunal de grande instance possui um procurador da República que nele oficial, tendo sob sua coordenação um grupo de procuradores.
Hierárquico o Ministério Público, ele também é indivisível, um conceito bastante conhecido no Brasil e que permite a vinculação institucional dos atos individuais de cada procurador.
Diversamente do que ocorre no Brasil pós-1988, os magistrados do Ministério Público francês exercem atribuições majoritariamente no âmbito criminal e, de modo residual, no âmbito cível nas ações envolvendo menores, nas ações de estado, na fiscalização do cumprimento de atos administrativos (consumo de bebidas) e em algumas ações comerciais.
c) Juízes leigos — A Lei de Orientação e Planejamento da Justiça, baixada em 9 de setembro de 2002, dita Lei no 2002-1138, criou a figura juge de proximité, uma espécie de juiz leigo, nomeados após uma decisão do Conselho Superior da Magistratura. Esse juiz tem um mandato não renovável de sete anos, não renovável. Sua competência cível limita-se a ações patrimoniais ou pessoais de valor inferior a 4 mil euros e que não se enquadrem na jurisdição dos tribunais de grande instância. Em matéria penal, eles atuam em processos de menor potencial ofensivo ou em auxílio aos tribunais penais. Segundo a Rede Judiciária Europeia, no ano de 2013, havia 452 juízes leigos em funções na França.
d) Os conselheiros "homens probos" — Figura histórica das mais antigas, o conseillers prud'hommes converteram-se, após diversas mudanças desde sua criação no século XIII, em um órgão que exerce jurisdição nas relações de trabalho, muito à semelhança dos juízes vogais da Justiça do Trabalho, após sua extinção por reforma constitucional. Esses conselheiros têm mandatos de 5 anos, sendo eleitos por indicação de empregadores e empregados ou de representantes da agricultura, da indústria, do comércio e do setor de serviços. São requisitos para ingresso a nacionalidade francesa, a idade mínima de 21 anos e a capacidade civil plena.
e) Juízes dos tribunais de comércio — Outra função muito antiga é a de juiz dos tribunais do comércio, todos eles comerciantes que atuam sem remuneração e que se elegem por escolha de seus pares. O mandato inicial é de dois anos e, posteriormente, de quatro anos. É vedada a atuação por mais de quatro mandatos consecutivos.
f) Advogados — Membros de outra antiga e respeitada carreira jurídica, os advogados são auxiliares da Justiça e regem-se atualmente pela Lei 71-130, de 31 de dezembro de 1971, com reformas posteriores, especialmente a que extinguiu a antiga carreira autônoma de consultor jurídico. Ambas as funções são hoje exercidas por "advogados", sem distinção.
Não há um órgão corporativo confederado, como é o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, e sim um conjunto de 161 ordens distribuídas pelos departamentos franceses metropolitanos e ultramarinos. A vinculação desses conselhos dá-se com as unidades jurisdicionais locais. Sua presidência cabe a um bastonário.
Em 1990, criou-se o Conselho Nacional das Ordens dos Advogados, por efeito da Lei de 31 de dezembro de 1990, que consiste em "uma associação de utilidade pública, dotada de personalidade jurídica, encarregada de representar a profissão de advogado junto dos poderes públicos e de zelar pela harmonização e pela unificação das regras e costumes da profissão".[4]
Os franceses possuem uma classe especial de advogados que atuam exclusivamente no
Conselho de Estado e na Corte de Cassação. Sua indicação para esse múnus é devida a ato do Ministro da Justiça. Eles formam uma corporação à parte, com uma ordem específica e distinta dos demais advogados. Desde 1814, o número desses advogados limita-se a 60 membros. No entanto, ainda segundo a Rede Judiciária Europeia, "o decreto de 22 de abril de 2009 permite ao Ministro da Justiça criar, por decreto, novos postos de advogado junto do Conselho de Estado e do Tribunal de Cassação, para assegurar uma boa administração da justiça dado o aumento do contencioso perante estes dois órgãos jurisdicionais".
[1] Dados extraídos da Rede Judiciária Europeia em matéria civil e comercial: https://e-justice.europa.eu/content_legal_professions-29-fr-pt.do?member=1. Acesso em 12 de maio de 2015.
[2] Disponível em versão consolidada aqui: http://legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000000364282. Acesso em 12 de maio de 2015.
[3] FONTAINHA, Fernando de Castro. Como tornar-se juiz? : uma análise interacionista sobre o concurso da magistratura francesa.Curitiba: Juruá, 2013. p.42-46.
[4] Dados extraídos da Rede Judiciária Europeia em matéria civil e comercial: https://e-justice.europa.eu/content_legal_professions-29-fr-pt.do?member=1. Acesso em 12 de maio de 2015.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.
Revista Consultor Jurídico, 13 de maio de 2015, 19h52
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