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quinta-feira, 31 de março de 2016

Como se produz um jurista? O modelo sul-africano (parte 40)

Introdução
Após uma interrupção excessivamente longa, retoma-se a série de colunas sobre o ensino jurídico no mundo, continuando-se a análise da África do Sul.

Aos leitores que desejarem retomar as duas primeiras colunas da série, recomenda-se a consulta aos textos Como se produz um jurista? O modelo sul-africano (parte 38) e Como se produz um jurista? O modelo sul-africano (parte 39).

1. Faculdades de Direito na África do Sul
A África do Sul não possui um número expressivo de faculdades de Direito. São apenas 17 cursos jurídicos autônomos, sendo que o mais antigo é a Wilfred & Jules Kramer Law School, cuja fundação se deu em 1859 (embora o ato formal tenha se dado em 1858)[1], sendo uma instituição vinculada à Universidade da Cidade do Cabo, a qual foi criada em 1829 e é, por sua vez, a segunda mais antiga do continente africano.

A Faculdade de Direito da Universidade do Cabo[2] é uma instituição pública, dividida em três departamentos (Direito Comercial, Direito Privado e Direito Público), mantida com recursos orçamentários, mas também com apoio financeiro de particulares, inclusive com um espaço próprio para esse fim em sua página eletrônica[3]. A faculdade precedeu a universidade, como é tradição em muitos lugares do mundo. Segundo dados de 2010, o curso possuía 900 alunos e, em termos de qualidade internacional, de acordo com o relatório da consultoria Quacquarelli Symonds (QS), é o melhor da África, figurando na 171ª posição internacional[4].

Outra faculdade sul-africana de tradição é vinculada à Universidade de Pretória. Criada em 1908, a Faculdade de Direito é uma instituição pública conhecida internacionalmente por seu Centro de Direitos Humanos, criado em 1986, em pleno regime do apartheid. Esse centro recebeu em 2006 o prêmio de Educação para Direitos Humanos da Unesco e teve ativa participação nos trabalhos preparatórios da vigente constituição sul-africana[5]. No ranking da QS, Pretória está entre as 500 melhores faculdades de Direito do mundo[6].

Em 331º lugar na classificação da consultoria QS está a Faculdade de Direito da Universidade de Witwatersrand[7], de Johanesburgo, uma instituição pública onde estudou Nelson Mandela. Seu financiamento é público, mas também, à semelhança de outras escolas de Direito sul-africanas, recebe contribuições de particulares[8].

As faculdades possuem autonomia administrativa e são geralmente dirigidas por um deão, com subdivisões internas em departamentos e centros autônomos de pesquisa. Há colegiados acadêmicos e intensa participação estudantil. Os cursos, no entanto, seguem um modelo híbrido, que ora se aproxima dos Estados Unidos e do Reino Unido, ora se amoldam ao padrão europeu continental. Coexistem nas faculdades as formações típicas para graduandos, mas também cursos ao estilo norte-americano, que se aproximam do juris doctor. Encontram-se também cursos mistos, que se conjugam com outras áreas em Ciências Sociais, Administração e Comércio, ao exemplo do que se encontra em algumas universidades francesas.

Outro problema relevante está na cobrança de anuidades dos estudantes. A hibridez do modelo sul-africano torna plúrimas as fontes de custeio das universidades, inclusive por meio de contribuições dos estudantes. Os anos de separação racial pré-democracia e os desníveis entre a população branca e a nativa ou mestiça ainda mostram seus efeitos no baixo índice de conclusão dos cursos superiores pelos estudantes de ascendência africana ou mestiça. O número final de alunos negros e mestiços que conseguem concluir o curso é de 15% dos que ingressam nas faculdades[9].

2. A estrutura dos cursos e dos currículos nas faculdades de Direito na África do Sul
As marcas da hibridez do sistema sul-africano também são perceptíveis na estrutura de seus cursos jurídicos. À semelhança dos Estados Unidos, obachelor of laws (LLB) sul-africano, até 1998, era um curso pós-graduado, de formação complementar, que permitia a seu titular o acesso ao exercício das carreiras jurídicas. No entanto, há 20 anos, a África do Sul admitiu que o LLB fosse ofertado no sistema antigo de pós-graduação e também como um curso de graduação. Na qualidade de curso pós-graduado, o LLB tem duração máxima de três anos. Na modalidade de graduação, sua extensão máxima é de quatro.

Existe uma variedade de curso jurídico mais próxima ainda do modelo norte-americano, no qual o aluno cursa um bachelor of arts ou um bachelor of commerce com especialização em Direito. Posteriormente, o aluno faz curso de pós-graduação com um prazo menor (dois anos), que o habilita ao exercício de profissões jurídicas, desde que aprovado nos instrumentos de acesso às respectivas carreiras.

Tal variedade de formações, períodos e nomenclaturas deve-se a algumas razões particulares. O sistema jurídico sul-africano foi influenciado por matrizes do Direito continental europeu e do Direito inglês, o que permite a convivência de diferentes tipos de formação. Essa dualidade radica-se na existência de universidades fundadas por magnatas ou por instituições filantrópicas britânicas em contrapartida às que nasceram sob a influência dos colonizadores de ascendência holandesa.

Os currículos jurídicos também são marcados pela liberdade de sua conformação pelas diferentes faculdades de Direito. Nesse aspecto, é perceptível a influência europeia e anglo-americana nas matrizes curriculares sul-africanas. Em um primeiro nível, os sul-africanos observam a tradição europeia de autonomia das instituições de ensino superior na definição de suas matrizes, sem observar um corpo comum nacional de disciplinas. Em um segundo nível, percebe-se o efeito da tradição anglo-americana com cursos mais flexíveis e, em algumas faculdades, com formações que conjugam Direito, Economia ou outras ciências sociais, o que, à exceção da França, quanto a este último aspecto, seria algo chocante para um observador europeu. Dada a enorme disparidade entre os cursos jurídicos sul-africanos, não é possível fazer afirmações peremptórias sobre a existência de um "modelo" de matriz curricular ou de estrutura de formação nas faculdades da África do Sul.  Encontram-se ainda as "clínicas jurídicas", de matriz norte-americana, em muitas faculdades de Direito.

A eficiência desse modo híbrido e complexo não é susceptível de avaliação universal. Tudo depende da faculdade e do modo como ela se estrutura. Essas distinções tornam-se notáveis quando se entra em contato com um egresso de uma instituição de ensino superior sul-africana e quando se nota a formação de vínculos desses egressos com as matrizes jurídicas mais próximas do modo de organização curricular e do curso de sua alma mater. Estudantes oriundos de faculdades mais "europeias" buscam a Alemanha como o locus para estudos doutorais ou pós-doutorais. Alunos que saíram de escolas à inglesa vinculam-se a cursos de doutorado ou a estágios pós-doutorais no Reino Unido ou nos Estados Unidos.

Tantas singularidades não têm impedido, porém, de se encontrar críticas ao modelo sul-africano, especialmente em relação a alunos que não são formados em escolas pautadas na centralidade do Direito. Essas críticas acentuam-se quando os alunos iniciam o exercício das profissões jurídicas. Esse, porém, não é um problema exclusivo da África do Sul, mas também dos Estados Unidos. Mais do que isso, é um dilema contemporâneo, quando cada vez mais juristas sentem-se "culpados" por sua formação preponderantemente jurídica, como se não fosse para aprender Direito que eles se matriculam em cursos jurídicos.

Convém examinar alguns das matrizes curriculares sul-africanas.

Veja-se o Bachelor of Laws da Faculdade de Direito da Rhodes University, que oferece ao aluno uma formação baseada na centralidade jurídica. Ele está assim organizado[10]:

a) Primeiro ano: no primeiro semestre, Fundamentos do Direito e, no segundo, Introdução ao Direito. Em paralelo, três disciplinas não jurídicas.

b) Segundo ano: o aluno terá uma disciplina jurídica no segundo ano. No primeiro semestre, têm-se as disciplinas Direito Constitucional A, Direito dos Contratos A, Law of PersonsProperty Law A e Hermenêutica Jurídica. No segundo semestre, Direito Constitucional B, Direito dos Contratos B, Property Law B, Direito Costumeiro e Law of Life Partners (uma parte do Direito de Família, voltada para o estudo das uniões conjugais e não conjugais);

c) Terceiro ano: no primeiro semestre, estudam-se as matérias Processo Civil A, Direito Societário A, Direito Penal A, Processo Penal A, Law of Delict A (uma espécie de Responsabilidade Civil, mas com foco também na responsabilidade criminal e seus efeitos cíveis), Legal Skills (uma espécie de formação em competências jurídicas) e Direito Internacional. No segundo semestre, Direito Societário B, Jurisprudence(Teoria do Direito), Direito Penal B, Law of Delict BLaw of Evidence A(uma espécie de estudo sobre provas), Law of Partnerships and Trusts(sem equivalente no Brasil, que estuda associações e trust). A Prática Jurídica pode ser cursada no primeiro ou no segundo semestre.

d) Quinto ano: no primeiro semestre, Direito Administrativo A, Processo Civil B, Processo Penal B, Direito do Trabalho, Direito da Compra e Venda e da Locação, mais duas eletivas. No segundo semestre, Direito Administrativo B, Law of Evidence B,  Direito Falimentar, Direito dos Contratos Securitários e Creditícios, Direito das Sucessões e de Administração de Imóveis. Em cada semestre, o aluno pode escolher duas das disciplinas ofertadas, de modo livre.

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Na próxima semana, prossegue-se na série sobre a África do Sul.



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