1.Introdução
Na sequência da série de colunas sobre a formação em Direito na África do Sul, examinam-se hoje a profissões jurídicas. A Constituição sul-africana de 1996, em vigor desde 1997 e já sucessivamente modificada, é tida como um marco na refundação do estado nacional pós-apartheid. Por seu efeito, consolidou-se o poder do Tribunal Constitucional como um agente moderador dos conflitos e permitiu-se a construção de uma jurisprudência interventiva em questões sociais. Outro ponto de interesse na nova configuração do Direito sul-africano está na justiça restaurativa, que conseguiu levar a público as violações dos direitos humanos no país, mas, em conformidade ao desejo de Nelson Mandela, sem gerar convulsões sociais e aumentar as dissenções raciais que poderiam ter destruído a nascente democracia sul-africana. Nenhum desses aspectos, porém, é insusceptível de críticas. O intervencionismo judicial é crescente, ao exemplo do que ocorre no Brasil, e muita vez não encontra amparo na própria Constituição, ao exemplo da proibição da pena de morte. Além disso, a lentidão judicial, o preenchimento de cargos por critérios não exclusivamente técnicos e ausência de investimentos no setor têm levado a problemas crescentes na área da Justiça.
É possível reconhecer que o Direito na África do Sul vive um dilema estrutural de três ordens: a) parte de seus juristas tendem a uma visão left-liberal em termos sociais e morais, ao passo em que a sociedade é baseada em valores religiosos africanos ou protestantes de viés conservador; b) vive-se um conflito de legados jurídicos, na medida em que sobrevivem tradições inglesas e africâneres, com tudo o que isso implica de diversidade de modelos jurídicos, ao passo em que se tenta criar um novo modelo, em grande medida com o repúdio ao que constituiu a essência metodológica do Direito na África do Sul e com a redescoberta do direito costumeiro autóctone; c) a inserção do Direito sul-africano em um debate comum aos países capitalistas periféricos que é o da formação sem a necessária centralidade da disciplinas jurídicas.
Feita esta introdução, vamos às carreiras jurídicas sul-africanas.
2. A magistratura sul-africana
O Poder Judiciário é constitucionalmente independente e se estrutura de modo relativamente semelhante ao que se dá no Brasil, exceto pela inexistência de uma Justiça Federal. No ápice da estrutura judiciária tem-se o Tribunal Constitucional. Abaixo dele estão o Supremo Tribunal de Recursos e a Corte Eleitoral, esta última reportando-se diretamente ao Tribunal Constitucional. No terceiro nível, encontram-se os tribunais militares de recursos, o Tribunal Superior e o Tribunal Trabalhista de Recursos, com seus respectivos estratos inferiores.
A escolha dos juízes constitucionais dar-se-á por ato do presidente da República, após ouvida a Comissão do Serviço Judicial, um organismo especial de assessoramento na designação de magistrados, e os líderes das representações parlamentares no Congresso Nacional. Os membros do Tribunal Constitucional têm mandatos de 12 anos, não renováveis, até o limite de idade de 60 anos. Ao menos quatro membros do Tribunal Constitucional devem ser selecionados de entre os membros da magistratura de carreira. Toda e qualquer nomeação deve levar em conta critérios de gênero e raça.
Órgão central nas nomeações para o Poder Judiciário, a Comissão do Serviço Judicial lembra o modelo britânico de recrutamento de magistrados, que possui órgão semelhante para assessorar a rainha no preenchimento de cargos judiciais. No caso sul-africano, diferentemente do britânico, essa comissão tem assento constitucional e sua composição é objetivamente prevista, a saber: a) o Chefe do Poder Judiciário, que preside o Tribunal Constitucional e também as reuniões da Comissão do Serviço Judicial; b) o presidente do Supremo Tribunal de Recursos; c) um juiz presidente de uma dos Tribunais Superiores, indicado por seus presidentes; d) um equivalente ao ministro da Justiça no Brasil; e) quatro advogados (sendo dois advocates e dois attorneys) que efetivamente exercem a profissão, indicados pelo presidente da República; f) um professor de Direito, indicado por seus pares de faculdades sul-africanas; g) seis pessoas indicadas pelo Congresso Nacional de entre seus membros, dos quais ao menos três devem ser representantes da oposição; h) quatro representantes do Conselho Nacional de Províncias; i) quatro pessoas indicadas pelo presidente da República, após consultados os líderes do Congresso Nacional.
O ingresso na magistratura não se dá por meio de concursos públicos como existentes no Brasil. Abrem-se seleções nas quais os interessados preenchem um formulário no qual preenchem dados como seu gênero, sua etnia (brancos, negros, mestiços e indianos), sua formação e suas experiências profissionais. Em algumas seleções, exige-se um tempo mínimo de formação acadêmica ou de experiência profissional. O critério de raça e gênero é expressamente indicado como primordial na definição dos pré-selecionados. O candidato deve também apresentar um currículo, cópia de documentos comprobatórios de sua titulação universitária e de experiência na área.
Em 2014, a remuneração de um magistrado em início de carreira era de 708.136 rands (equivalentes a US$ 44.350,48 ou R$ 172.856) por ano. No início de 2015, o presidente Zuma aprovou um reajuste geral no serviço público sul-africano. A remuneração do presidente do Tribunal Constitucional é agora de 2.000.800 rands (R$ 488.395,28 ou US$ 125.309,89), em valores anuais. Um magistrado de primeiro grau faz jus a 788.155,00 rands (US$ 49.362,06 ou R$ 192.388,64) por ano.[1]
Esses valores receberam aumento após inúmeros protestos dos magistrados em 2011, que se queixavam por perceber menos que os promotores de Justiça. Naquele ano, o mais alto magistrado do país – chief justice – ganhava 2.130.769 rands anuais e um juiz de primeiro grau 649.256 anuais.[2]
A alta magistratura da África do Sul, nos tempos do apartheid, adotou posturas mais liberais nos últimos vinte anos do regime, o que lhe valeu algum respeito público. A imagem de um órgão comprometido com o regime, especialmente no âmbito criminal, custa até hoje à magistratura de carreira um preço relativamente alto em termos de percepção social negativa. Ainda é cedo para avaliar qual a percepção social da "nova" magistratura sul-africana, na medida em que ainda se vive um momento de transição, embora haja sido ampliado o número de juízes não brancos e do sexo feminino. Dados de 2013 dão conta de que 39% de todos os magistrados sul-africanos eram mulheres, sendo que quase metade dos juízes de tribunais de recursos eram desse gênero. Quatro dos nove tribunais de recursos (regionais) eram presididos por mulheres. Por sua vez, conforme números de 2014, 63% dos juízes de carreira na África do Sul eram negros.[3]
3. O Ministério Público na África do Sul
Uma instituição temida durante o apartheid, como de resto em todos os países que viveram experiências ditatoriais, era o Ministério Público. Hoje, ele é conhecido como National Prosecuting Authority, referido quase sempre pela sigla em inglês NPA, e tem caráter constitucional, que lhe confere unidade em todo o território sul-africano, a chefia por um diretor nacional, nomeado pelo presidente da República e com funções típicas e clássicas de titular do direito de ação penal em nome do Estado.
O regime jurídico do Ministério Público está previsto no National Prosecuting Authority Act (1998), elaborado dois anos após a promulgação da vigente Constituição sul-africana. O Ministério Público é parte integrante do Poder Executivo. Seu diretor nacional não é submetido ao escrutínio do Congresso Nacional, embora seu mandato seja de dez anos. Atualmente, há muitas críticas à atuação do órgão, que é considerado politicamente frágil e submetido a interferências constantes da Presidência da República. Em 2013, não foi aprovada uma proposta de emenda constitucional que conferia autonomia real à instituição.
Da mesma forma que na magistratura, o preenchimento de cargos no Ministério Público deve refletir a questão racial e de gênero (capítulo 3, item 8, NPA Act 1998).[4] O cargo de diretor nacional não precisa ser preenchido por membro da carreira (capítulo 3, item 9, subitem 1, NPA Act 1998). O recrutamento dos promotores dá-se por critérios internos do órgão, sem o equivalente a um concurso público no estilo brasileiro.
A remuneração do diretor nacional do Ministério Público não pode ser inferior à equivalente de um membro do Tribunal Superior (capítulo 3, item 17, subitem 1, NPA Act 1998).
4. Advocates e attorneys: a advocacia na África do Sul
Antiga, respeitada e ainda baseada na divisão inglesa entre barristers esolicitors, eis uma síntese da advocacia na África do Sul, uma profissão que deu prestígio a Nelson Mandela no início de sua carreira. Identicamente à tradição inglesa, embora hoje extremamente atenuada, o cliente deve procurar um advocate (equivalente ao inglês barrister) e este utiliza-se dos serviços de um attorney (solicitor) para atuar em juízo.[5] Essas duas atividades não são acumuláveis.
São requisitos para se tornar um advocate: a) ter a idade mínima de vinte e um anos; b) possuir qualificação acadêmica; c) ser sul-africano ou possuir visto de residente no país. A profissão de advocate é representada peloGeneral Council of the Bar of South Africa, que exige para nela ingressar o título de bacharel em Direito, obtido em uma instituição universitária sul-africana, haver sido aprovado em um curso profissional e sido aprovado em um exame organizado pelo bar onde deseja exercer suas atividades. Osadvocates atuam perante os tribunais sul-africanos e em procedimentos arbitrais.[6]
Os attorneys exercem suas funções perante os juízos de primeiro grau, admitindo-se, porém, situações excepcionais em que estes podem funcionais em tribunais superiores. Seu órgão de representação é a Law Society of South Africa,[7]órgão que fornece estatísticas bem atualizadas sobre o quadro atual de seus membros.
Em 2005, havia 16.416 attorneys registrados nas diversas Law Societies sul-africans. Esse número cresceu de modo linear anos após ano até chegar a 23.712 membros em 2015. O número de attorneys admitidos anualmente naLaw Society passou de 1.525 em 2004 para 2.514 no ano de 2014. Na série histórica, em 2007 houve uma queda no número de ingressantes na profissão (1.435), um crescimento em 2008 (1.551), seguido de outro aumento expressivo em 2009 (2.070). Nos anos de 2010 a 2013, os ingressantes na carreira permaneceram em número estável (1.542; 1.588; 1.529 e 1.506).[8]
Ano após ano, desde 2006, o número de mulheres que entram para Law Society é sempre superior ao equivalente de homens. Em 2006, foram 810 mulheres e 761 homens, ao passo em que, no ano de 2014, ingressaram 1.108 homens e 1.416 mulheres. Utilizado o critério racial, o quadro é diverso: a) 2004 – 390 negros; 92 mestiços; 85 asiáticos e 632 brancos; b) 2014 – 856 negros; 207 mestiços; 247 asiáticos e 1.185 brancos.[9]
***
Na próxima coluna, veremos as faculdades de Direito da África do Sul.
[1] Disponível em: http://www.2016jobsouthafrica.com/magistrate-jobs-magistrate-commission-south-africa-2014/. Acesso em 9-2-2016.
[2] Disponível em http://www.sowetanlive.co.za/news/business-news/2011/09/26/magistrates-want-higher-salaries. Acesso em 9-2-2016.
[3] BAUER, Gretchen; DAWUNI, Josephine. Gender and the Judiciary in Africa: From obscurity to parity. Routledge: New York, 2016. p. 54
[4] Disponível em: http://www.justice.gov.za/legislation/acts/1998-032.pdf. Acesso em 10-2-2016.
[5] Disponível em: http://www.sabar.co.za/legal-system.html. Acesso em 10-2-2016.
[6] Disponível em: http://www.sabar.co.za/advocates.html. Acesso em 10-2-2016.
[7] Disponível em: http://www.lssa.org.za/about-us/this-is-the-lssa. Acesso em 10-2-2016.
[8] Disponível em:http://www.lssa.org.za/upload/documents/LSSA%20LEAD%20Statistics%20Document%202015.pdf. Acesso em 10-2-2016.
[9] Disponível em:http://www.lssa.org.za/upload/documents/LSSA%20LEAD%20Statistics%20Document%202015.pdf. Acesso em 10-2-2016.
Nenhum comentário:
Postar um comentário