28 de abril de 2016, 8h00
Folheando o texto da Magna Carta de 1215 de João Sem Terra e seus Barões, leio que, na Inglaterra medieval, a partir daquele dia, “só serão nomeados juízes, oficiais de justiça, xerifes ou bailios os que conheçam a lei do reino e se disponham a observá-la fielmente”.
Lendo uma decisão de abril de 2016 (801 anos depois) do Superior Tribunal de Justiça, do combalido país chamado Brasil, da lavra da ministra Maria Isabel Gallotti, tenho a impressão que, por aqui, nem chegamos ao patamar da Magna Carta inglesa (que não é a Constituição da Inglaterra, frise-se).
Vejamos o voto condutor no AgRg no AREsp 827.440/MT (DJe 13/04/2016).
A decisão agravada não merece reforma.
A Corte estadual, analisando o contexto fático-probatório dos autos, concluiu pela ocorrência do dano moral do cliente, em face da demora no reparo do veículo e a revisão do citado entendimento esbarra no óbice da Súmula 7/STJ.
Acerca da necessidade de prova pericial, nos termos do art. 370, caput, e parágrafo único, do Código de Processo Civil/2015, em conformidade com o princípio do livre convencimento, "Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito", indeferindo, fundamentadamente, as diligências que entender inúteis ou protelatórias, entendimento que se coaduna com a jurisprudência adotada nesta Corte. Incidência da Súmula 83/STJ.
Em face do exposto, não havendo o que se reformar, nego provimento ao agravo interno.
É como voto.
Confiram também o inteiro teor do acórdão no site do STJ. Ali se vê, para fins de fundamentação, uma expressa referência ao CPC/2015, como, aliás, deve ser, eis que o julgamento ocorreu após o início de sua vigência. Todavia, eis que, também a título de fundamentação, a decisão ressuscita algo que se imaginava sepulto: o “livre convencimento”. Isso mesmo, aquilo que pode ser chamado de curinga epistêmico, que o novo Código Processo Civil em boa hora expulsou da ordem jurídica brasileira. Sabemos que o STJ editou enunciado estabelecendo que, para os recursos interpostos antes de 16 de abril de 2016, deverá ser aplicado, quanto aos juízos de admissibilidade, o CPC-73. Mas não é disso que aqui se trata.
E, a propósito, já que o tema é fundamentação: será que o parágrafo 1º do artigo 489 foi atendido integralmente? Ou teria o STJ invocado motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão (inciso III)? A decisão dá claros indicativos de ser uma decisão-tipo (padrão). Por outro lado, teria a decisão enfrentado todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador (inciso IV — para isso, não teria sido necessário dizer quais foram os argumentos deduzidos pela parte)? Se essas são apenas perguntas, por outro lado uma coisa parece indubitável: nada indica que o inciso V tenha sido observado, pois ao que consta se limitou a invocar precedente ou enunciado de súmula sem a necessária identificação dos fundamentos determinantes e sem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos.
É preocupante a decisão, porque aponta para um futuro nada promissor no tocante à plena efetivação do CPC. O ponto-chave que não se pode esquecer é o novo CPC apenas tornou expressas exigências materiais que já decorreriam de uma leitura sincera (e “moral”, para falar com Dworkin) dos diversos dispositivos constitucionais consagradores de direitos e garantias especificamente processuais. Então: o novo CPC não exatamente “inova” quando determina aos juízes que, ao decidir, não invoquem motivos que justificariam qualquer outra decisão; ele apenas dá consequência ao dever previsto no artigo 93, IX, da CF, que estabelece o dever fundamental de fundamentar decisões judiciais. O novo CPC também não “inova” quando garante aos interessados o direito de manifestação prévia à decisão, ou quando determina que o juiz leve, enfim, em consideração o produto do debate; ele apenas reconhece que a garantia constitucional do contraditório, em sentido material ou dinâmico, assim determina. Bem assim, o artigo 1º do novo CPC não “instaura” a força normativa da Constituição no aparelho processual; o dispositivo apenas fornece um “reforço normativo” a esta concepção, que está na matriz, aliás, do Constitucionalismo Contemporâneo.
Percebam: o legislador infraconstitucional poderia ter feito diferente? Sim. Mas de nada adiantaria dispor de maneira contrária à Constituição. Há juízes no Brasil e há controle difuso de constitucionalidade. Há, também, o Supremo Tribunal Federal para ser acionado. Cedo ou tarde, dispositivos de “resistência” estariam com os dias contados. Constituição é norma.
E o código do Direito é binário. Lícito ou ilícito. Válido ou inválido. Não há 50 tons de cinza entre uma coisa e outra. Por exemplo: eu posso utilizar prova ilícita, ou eu não posso. E dizer “não” significa dizer “não” até mesmo “para aquele caso em-que-todos-estão-de-acordo-que-a-prova-deva-ser-usada”. Princípio é norma e não é valor. Ou eu tenho direito à ampla defesa e ao contraditório, ou eu não tenho. Se eu tenho, eu o tenho, também, mesmo quando o “juiz-já-está-tão-convencido-da-tese-que-não-importa-o-que-eu-diga”, já que ele não mudará de ideia. Ou bem eu tenho o direito, ou bem eu não o tenho. É o having a right, de que fala Dworkin. Ou seja: ou eu tenho o direito de que os incisos do parágrafo 1º. Do artigo 489 sejam cumpridos ou eu não tenho. Não há 49 tons de cinza.
Claro que, no mais das vezes, será difícil saber, num caso concreto, se eu tenho ou não um direito. Direito é assim mesmo, intrinsecamente controvertido. Mesmo para quem (na verdade, especialmente para quem), como eu, defende que há respostas corretas em Direito. Mas o ponto é: se eu o tiver, nem que chova canivete, o Poder Judiciário deve assegurá-lo. E isso não pode depender da boa (ou má) vontade do juiz.
Pois então, voltemos à decisão. Além dos problemas relacionados ao artigo 489, há algo mais grave ainda. Gravíssimo. Trata-se da “repristinação” de um dispositivo que foi derrogado pelo novo CPC: o livre convencimento. Basta olhar a redação do Código e, se se quiser, a própria motivação do legislador. Foi expungida a palavra livre. Logo, não mais se pode invocar o livre convencimento. Portanto, temos um problema.
A decisão ignorou a redação do artigo 371 do CPC, dando indicativos perigosos de que o Tribunal da Cidadania vai fazer algo contra a Cidadania: descumprir o CPC justamente naquilo que o legislador mais se esforçou, isto é, construir mecanismos para evitar decisões lotéricas, repetitivas, descontextualizadas e com fundamentação pífia.
Lendo o acórdão, o que pude perceber é que o tal "livre convencimento" foi utilizado para afastar a produção probatória. Algo como: se eu, juiz, sou o destinatário da prova, sou eu próprio que também decido sobre o que é necessário para a formação do meu convencimento. Se estou satisfeito com o que já veio para os autos, posso barrar eventual requerimento de produção probatória. Oculto por trás das palavras está o fato de que o juiz já está convencido, não necessita mais de elementos de prova. Agora seu trabalho é “motivar” ...
Parece que é a síndrome de Jason. Não há o que mate esse tal de “livre convencimento”. [1] Não bastasse toda a luta política empreendida para extirpar esse mal do novo CPC. E a questão aqui é a seguinte: ainda que o novo CPC tivesse mantido hígida a expressão “livre convencimento”; ainda que o novo CPC estabelecesse com todas as letras que “a prova é dirigida ao juiz” e que “é ele quem sabe”; ainda que o novo CPC dissesse que o convencimento judicial é um “trunfo” em relação às disposições legais que tratam do direito probatório; ainda assim... isso de nada valeria. Seria pura e simplesmente inconstitucional. O modelo constitucional é incompatível com “livre convencimento”. E o CPC deixou isso claro. Sem tons de cinza.
Insisto: O processo é um espaço de construção de soluções democráticas, em que se abre um espaço de discussão intersubjetivo a respeito da melhor interpretação do Direito para um caso específico. É por isso que as partes têm direito de falar. É por isso que o juiz tem a obrigação de dialogar e de levar em consideração todos os argumentos. Não se trata de um favor, mas de direitos e deveres. Se é assim, como compatibilizar esta estrutura com o (de resto, insindicável) convencimento livre de alguém?
Por que é tão difícil entender isso? A autoridade para decidir não decorre apenas da investidura dos juízes em seus cargos, mas sim dos argumentos de princípio que estes utilizam para justificar o uso da coerção pública. Quando o juiz expede uma ordem, em nome do Estado, esta ordem é resultado de um processo devido, sem protagonistas, sem buracos negros de legitimidade (a minha consciência, a minha íntima convicção).
A pergunta é: por que isso é assim? Por que o judiciário brasileiro se comporta tão diferente dos demais países civilizados? Ou o nosso país é, mesmo, de quarto ou quinto mundo, em que precisamos de figuras heroicas ou solipsistas, representadas por juízes e ministros que digam para o povo — e a um milhão de advogados cuja maioria baixa a cabeça e é humilhada cotidianamente, além de boa parte sequer ser recebida em gabinete por juízes e promotores — o que é que eles, juízes (e membros do MP) consideram “o melhor” para todos? “— Ah, aqui o legislador errou. Não vou aplicar”. “— Qual é a importância de tirar a palavra livre do antigo artigo 131 e agora constar que o juiz formará o seu convencimento, não mais de forma ‘livre’”? “Ah — nenhuma”. E, por que? “Ah — porque... sim”. Assim caminha a (des)institucionalidade do direito por aqui.
Pergunto, mais uma vez: como é possível que a lei não tenha nenhuma importância? Por que chegamos a esse ponto? A doutrina se acovardou, mesmo? Já sei a resposta. A pergunta foi meramente retórica. Já vi (novos) livros sobre o CPC — e há dezenas — dizendo que o que o legislador disse no artigo 371 nada quer dizer. Tirou a palavra “livre”, mas... os juízes continuam livres para decidir. Bingo. Pior: quem diz isso não são apenas alguns juízes; são advogados. Sim, advogados e professores. Um dos argumentos é que o livre convencimento veio para substituir a prova tarifada. Está bem... Deixemos assim. Isso é tão velho quanto Matusalém. A CF diz que todas as decisões devem ser fundamentadas. Fundamentação não é o mesmo que motivação (ver aqui). Uma inconfidência: Para vermos a gravidade disso: no próprio Comentário ao CPC que coordeno junto com Dierle Nunes, Leonardo Cunha e Alexandre Freire, na revisão final, tive que retirar, de seis lugares (comentários a dispositivos) a repristinação do livre convencimento. Incrível.
Então, diante disso tudo, o que dizer sobre a decisão do STJ? Pensemos, rapidamente e tentemos entender: o século XIX produziu três tipos de positivismo, em países diferentes. O exegetismo francês, a jurisprudência dos conceitos alemã e a jurisprudência analítica inglesa (não vou discutir, aqui, o que é ou o que foi o positivismo e se o pandectismo foi positivismo — já o fiz em outros textos). Para cada um desses “amarramentos” do juiz à uma estrutura (à lei, a uma pandecta ou a um precedente), exsurgiu uma antítese. Aqui me restrinjo às experiências alemãs e francesa: os movimentos de livre investigação e a construção de uma doutrina de direito livre. No cerne, livre de quê? Simples. Livre da lei. Bingo. Porque a lei, então, era “ruim”. Faltava-lhe o fato, a sangria da historia. E essa tarefa de introduzir na interpretação tais elementos foi atribuída ao intérprete-juiz. O juiz boca-da-lei começava a perder espaço.
No Brasil ocorreu, nos anos 70 e 80, algo semelhante com o direito alternativo e outras correntes críticas, ligadas às concepções realistas. Para que? Para exigir do juiz uma postura interventiva. Que ele se libertasse da lei opressora, de um Estado que sequer tinha uma Constituição, porque outorgada por três Generais. Tanto na França, com sua Livre Investigação (François Geni), a Doutrina do Direito Livre, na Alemanha (por todos, Kantorowicz e seu voluntarismo: o direito é a vontade do juiz') e na Inglaterra (e EUA) com o realismo (poderia falar também da Escola de Upsala), tinha-se que liberar o juiz da lei. Lei opressora e “ruim” exige juiz acionalista: eis a questão.
Mas, então, digam-me por qual razão, em plena democracia, um magistrado do STJ quer se livrar da lei? Um novo movimento do Direito Livre brasileiro? Ou um realismo tardio, a la Holmes, tipo judge made law? Ou uma Brasilian Wertungsjurisprudence (jurisprudência dos valores brasileira) para se livrar do formalismo? Estamos nos primeiros dias do novo CPC. Se a doutrina se acomodar e não estabelecer mecanismos de constrangimento epistêmico aos tribunais, já é possível antever um novo/velho jurisprudencialismo brasileiro. O que diz a lei? Não importa. O importante é saber o que dizem os tribunais acerca do que queria ter dito o infeliz do legislador.
Por tudo isso, muito cuidado quando se diz que Hermes era um semideus que fazia a intermediação entre os deuses e os mortais. E que nunca se soube o que os deuses disseram; só se soube o que Hermes disse acerca dos que os deuses disseram. O que falta nisso? O controle sobre Hermes. Hermes solto, dizendo o que quer, é autoritário. Por isso a modernidade, a partir de Danhauer e Schleiermacher, passou a se preocupar com o conspurcamento dos textos. E o resto? Bem, o resto estamos tentando fazer. Aqui é um dos lugares para isso.
Por último: o TST também se esforça para descumprir o novo CPC. O que é isto — a teoria do conglobamento? (ver aqui) É um salto triplo carpado?
[1] Para não haver dúvida entre interpretação da lei e dos fatos, ler:
http://emporiododireito.com.br/requiem-para-o-livre-convencimento-motivado-por-guilherme-valle-brum-2/
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