Na última coluna, vimos a origem e resenhamos parte das principais obras doutrinárias que defendem uma responsabilidade civil na qual o dano não seria necessariamente um pressuposto. Continuamos agora tratando do que, penso, parece ser a vertente mais radical delas: a mera conduta humana como fator de imputação para que existam condenações civis (propositadamente não se usou a palavra reparação!). O que se defende, dentro dessa modalidade peculiar de responsabilidade civil, é que a reparação dos danos deixaria de ser sua função primordial. Aliás, deixaria de ser até mesmo seu objetivo central. Agora, com efeito, a responsabilidade civil, completamente alterada em sua essência, teria por finalidade o estabelecimento de regras de comportamento e de modo consequencial a aplicação de sanções eficazes para aqueles que viessem a transgredi-las.[1]
O ponto nodal dessa nova forma de responsabilidade civil está, como dito acima, no alargamento de sua função punitiva. Devidamente aggiornadapara se ajustar ao mundo de hoje, seria possível por meio da responsabilidade civil sancionar qualquer conduta e não apenas condutas danosas como até agora o vem sendo. O redimensionamento teórico proposto por essa respeitada acadêmica colocaria em evidência aquilo que passou a ser denominado de função normativa. Por meio dela, então, a própria conduta (o ato humano) poderia ensejar uma reparação (agora uso o termo para denotar como ele ficaria sem sentido) civil.
O raciocínio partiu da observação, salvo engano equivocada, como posteriormente pretendo demonstrar, que já não existiria um sistema exclusivo de reparações, pois outros instrumentos jurídicos existem no Direito contemporâneo estatuindo outras formas de indenização. Exemplo disso seriam o seguro social e os fundos assecuratórios em geral. Aliás, tais ferramentas peculiares de ressarcimento teriam o mérito adicional de serem menos complexas, sobretudo em relação à prova e outros fatores de imputação e, desse modo, mais eficazes.[2] Suposto que a função tradicional da responsabilidade civil não estaria sendo exercida exclusivamente mais por ela, seria possível remodela-la, convertendo-a em disciplina eminentemente punitiva. Ao invés de institutos reparatórios. Ela agora enunciaria o próprio controle das condutas. Umas das defensoras dessa tese, a professora Suzanne Carval, sugere até mesmo o nascimento de "pena privada oficializada".
As indenizações ficam para um segundo plano. O que vem a ser realmente importante é a função disciplinadora da conduta, que é enaltecida na medida em que não estaria a responsabilidade civil vinculada ao princípio da legalidade. Assim, a pretendida disciplina das condutas humanas poderia ser melhor realizada pela responsabilidade civil. O raciocínio é audacioso: reúne a lógica diretora dos ramos próprios do direito público e, ao mesmo tempo, a flexibilidade estrutural do direito privado. Aqueles, sendo por definição impedidos de atuar diante do mosaico infinito de situações que a experiência social revela, sendo, ademais, imperativo para os tempos hodiernos a disciplina jurídica do próprio comportamento diante da necessidade de evitar o próprio dano, ficaria em última análise a responsabilidade civil com esse papel. Aliás, papel esse que poderia facilmente desempenhado por meio de cláusulas gerais (v. por exemplo o artigo 186 de nosso Código Civil) que permitiriam a inclusão fática de qualquer evento diante da previsão genérica e abstrata que enuncia.
Só por isso, já pode ser antevista com certa preocupação a proposta de uma responsabilidade civil regulamentadora ex ante da conduta humana. Nada obstante suas boas intenções, ela termina engessando a liberdade humana, atribuindo ao Direito Privado um viés repressivo que lhe é substancialmente estranho. O pensamento conduziria ainda, segundo seus próprios defensores, para o reconhecimento de uma verdadeira cisão da responsabilidade civil, que passaria a ser dividida em dois grandes subgrupos: de um lado, o direito das condutas ilícitas e, do outro, o direito dos danos. Este, em rápido resumo, corresponderia à responsabilidade civil como a conhecemos até hoje, propondo-se à compensação dos efeitos lesivos de um ato ilícito sobre a vítima. Em sentido oposto, o direito das condutas lesivas se encarregaria de "estudar e pesquisar o ilícito sob o ponto de vista de suas causas, isto é, a conduta do agente, tendo como fundamento interpretativo a possibilidade de dissuadir o comportamento faltoso".[3] Ao defender um direito das condutas lesivas, sugere-se inclusive que o ato ilícito — e consequentemente a noção de culpa — retome lugar de destaque como fator de imputação. É efetivamente a conduta humana que se deseja controlar, ficando em zona secundária os mecanismos de indenização.
Os autores que, eventualmente, endossam essa ou outras teses favoráveis a uma responsabilidade civil sem dano coincidem, portanto, que instrumentos preventivos devem ser incorporados à responsabilidade civil, ou, ainda, que um simples agir contrário ao Direito poderá ensejar a condenação do agente em uma forma diferente de indenização civil. Rendo-lhes respeitosas vênias, mas acredito que todas terminam fazendo tabula rasa da história da responsabilidade civil. Não pretendo, com isso, hipertrofiar a análise histórica, vendo nos institutos tradicionais que já mencionamos peças de arqueologias jurídicas a serem redescobertas, não sem alguma aventura, com num filme de Indiana Jones. Nada obstante, sua desconsideração tout court obnubila que, durante séculos, a responsabilidade civil já foi direito das condutas lesivas e que, aparentemente, tal fórmula não funcionou.
Enfim, o uso da responsabilidade civil como vetor repressivo universal, o que é enfatizado por muitos como algo redentor, é para mim, justamente ao contrário, motivo de preocupação. Elas bem como as refutações que se podem sistematicamente apresentar a todas as teses que defendem a exclusão do dano da responsabilidade civil, seja por incorporar em seu corpo medidas preventivas, seja ao considerar possível por seu intermédio a disciplina da mera conduta, falaremos na próxima coluna. Com isso, sigo o caminho que propus: traçar um panorama sistêmico do problema, apresentando-o sob uma visão ampla a fim de que o leitor forme sua opinião de maneira consciente.
Contudo, como é natural inferir, será impossível comentá-las de modo mais aprofundado no presente espaço. Quem desejar, poderá obter uma explanação mais pormenorizada das teses aqui resumidas, respectivas críticas, bem como sobre a evolução do conceito dano e sua importância atual em meu Responsabilidade Civil sem Dano: Limites Epistêmicos a Responsabilidade Civil Preventiva ou Simples Conduta (São Paulo, Atlas, 2015). No volume 6 da Revista de Direito Civil Contemporâneo, o leitor poderá encontrar outro interessante estudo crítico sobre o tema, intitulado "Notas sobre a teoria da responsabilidade civil sem dano", de Roberto Paulino de Albuquerque Júnior, coordenador da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo na Faculdade de Direito do Recife, da Universidade Federal de Pernambuco.[4]
Todavia, para que não fiquem dúvidas em relação à posição por mim defendida, encerro citando a seguinte frase de Mario Franzoni uma vez que guiará o conjunto de ideias que serão apresentadas em nossa próxima coluna, que encerrará esta primeira série de contribuições: "a função da responsabilidade civil é a de reagir ao dano injusto e não de reprimir uma conduta antijurídica. "[5]
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).
[1] Nesse sentido, cf.: CARVAL, Suzanne. La responsabilité civile dans sa fonction de peine privée. Paris: LGDJ, 1995, p. 13.
[2] Idem, p. 381.
[3] LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade civil: de um direito dos danos a um direito das condutas lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, p. 221.
[4] ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Notas sobre a teoria da responsabilidade civil sem dano. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 6, p.89-104, jan–mar, 2016.
[5] FRANZONI, Massimo. Trattato della responsabilità civile: l'illecito. 2. ed. Milano: Giuffré, 2010, t. I, p. 1.254.
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