Thiago Cássio D'Ávila Araújo
A teoria do adimplemento substancial tem, no Direito brasileiro, o efeito jurídico central de exatamente mitigar a eficácia do art. 475 do CC/2002, para retirar da parte lesada o direito de obter a resolução do contrato, quando tiver ocorrido inadimplemento mínimo do contrato, pela outra parte.
quinta-feira, 26 de janeiro de 2017
Boone v. Eyre, um caso dos anos setenta do século XVIII decidido por Lord MANSFIELD, na Inglaterra, é apontado, em vários textos jurídicos, no Common Law, como base para a "doctrine of substantial performance in contract law", que, no Brasil, vem a ser conhecida como "teoria do adimplemento substancial", ou "teoria do inadimplemento mínimo" ou, ainda, como "teoria da substancial performance". Francis Eyre, após quitar o preço inicial de £500 por uma propriedade com escravos nas Antilhas, deixou de pagar prestações anuais de £160 a que se obrigara em caráter vitalício, alegando que John Boone não tinha título sobre os escravos que lhe prometera transmitir. Boone processou Eyre e ganhou a causa. Lord MANSFIELD entendeu que, se estivesse correto Eyre (defendant), bastaria uma pequena falha, como a de que um só escravo não fosse propriedade de Boone (plaintiff), para Eyre ser liberado do pagamento da parcela anual, o que seria incabível, porque Eyre, em não pagando a parcela anual devida a Boone, receberia a propriedade por muito menos do que valia.1
Lord MANSFIELD (1705-1793), nascido escocês, mudou-se ainda jovem para a Inglaterra e por muitos é considerado o maior jurista britânico do século XVIII, chegando a Chief Justice da English Court of King's Bench, tendo apresentado teses de enorme importância histórica, firmadas em julgados como Carter v. Boehm (1776), que estabeleceu a boa-fé em contratos de seguros no Direito inglês – "uberrimae fidei", ou Somerset v. Stewart (1772), em que reconhecida a ausência de legalidade da escravidão, na Inglaterra e no País de Gales, com Habeas Corpus deferido a um escravo, que tornou-se homem livre em solo inglês, em decisão que impulsionou o movimento abolicionista, inclusive em outros países, e contribuiria para a futura proibição do comércio de escravos no Império Britânico, através do Abolition of the Slave Trade Act, de 1807, e contribuiria também para o próprio fim da escravidão, pelo Slavery Abolition Act, de 1833. É, ainda, considerado o pai do Direito Comercial inglês, dada sua enorme contribuição a este ramo jurídico.2
Embora, do ponto de vista humanitário, Boone v. Eyre (1777) seja um caso detestável, pois versava sobre venda de pessoas, juntamente com uma propriedade, numa época em que a escravidão era lamentavelmente aceita pelas instituições ― e, ainda por cima, tenha sido julgado depois de todo o clamor gerado pela decisão de Lord MANSFIELD em Somerset v. Stewart (1772) ―, por outro lado, Boone v. Eyre é um clássico da jurisprudência contratual, abordado em várias obras doutrinárias inglesas pela sua importância técnica, tornando-se impossível de ser ignorado pelo estudioso da matéria. No Common Law, há relevantes discussões histórico-doutrinárias sobre o caso Boone v. Eyre, no tocante a aspectos de hermenêutica contratual, como, por exemplo, aquelas em torno da "condition precedente" e da "independent promise", dentre outras. Importa dizer que, tecnicamente, a decisão teve estreita ligação, em sua fundamentação, com a teoria das condições vigente à época, sendo, num certo sentido, evolução da tese apresentada em Kingston v. Preston (1773), pelo próprio Lord MANSFIELD. Em outras palavras, em Boone v. Eyre, houve flexibilização da teoria das condições então praticada no Direito inglês.3 Não se exigiu, em Boone v. Eyre, o rigor da fórmula estabelecida, através da qual, somente pelo cumprimento integral das próprias obrigações em um contrato, concedia-se à parte (adimplente) o direito à compensação pelo inadimplemento da outra parte. Em razão dessa flexibilização, Boone venceu a causa, pois ele não tinha cumprido integralmente o dever de entregar a Eyre escravos que possuísse sob título válido, mas, de outro modo, assim entendeu o tribunal, cumprira substancialmente seus deveres contratuais, pela entrega da propriedade propriamente dita, de modo a ter direito a receber de Eyre a renda contratual anual, conforme decisão de Lord MANSFIELD, que, por outro lado, garantiu a Eyre direito indenizatório pelo parcial prejuízo pelos escravos não recebidos ("… where they go only to a part, where a breach may be paid for in damages, there the defendant has a remedy on his covenant and shall not plead it as a condition precedent").4
No Brasil, como aliás em outros países, sem maiores cerimônias o caso Boone v. Eyre é citado como exemplo de decisão na qual, do inadimplemento mínimo por uma das partes, não decorreu a resolução do contrato. E tal tem sido considerado suficiente. Toma-se, em maior relevância, o resultado de Boone v. Eyre, do que a análise em si da técnica decisória daquele caso, quando esta foi de extrema relevância, à época, para que Boone v. Eyre tenha recebido, no Direito inglês, o destaque que recebeu. Boone v. Eyre, utilizado desta forma superficial pela doutrina brasileira, tem servido mais como inspiração para a técnica hermenêutica do que como orientação técnica sobre a dinâmica das cláusulas contratuais.
O tema da performance substancial, na doutrina brasileira, é anterior ao CC/2002, tendo sido divulgado por tese à cátedra, defendida na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1964, por CLÓVIS DO COUTO E SILVA. Até aqui, poucos são os casos em que a teoria foi aplicada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ), embora nas instâncias inferiores goze de certo prestígio e apareça com maior intensidade na fundamentação das decisões judiciais. Em parte, o número inexpressivo de decisões de mérito, do STJ, a respeito da teoria do adimplemento substancial, pode ser mera consequência da aplicação de regras processuais aos casos concretos, consideradas as súmulas 5 e 7 do STJ.5
A doutrina da "substantial performance" é uma dentre várias significativas limitações à liberdade contratual;6 notadamente por retirar, do prejudicado, o direito de optar pela resolução do contrato, ainda que da avença tenha constado a cláusula resolutiva. Assim, importa que a teoria do adimplemento substancial seja usada com cautela, isto é, para casos em que realmente for indicada, garantindo-se, por outro lado, prestígio ao princípio pacta sunt servanda. Cautela, entretanto, não quer dizer parcimônia. Em suma, que se use sempre que possível a doutrina da "substantial performance", desde que acertadamente. Não há motivo para assombro, pois a teoria já está inserida na prática forense brasileira. Em alguns países, a matéria está inclusive positivada. Por exemplo, o CC italiano, no art. 1.455, é claro em vedar a resolução do contrato diante da importância escassa do inadimplemento ("scarsa importanza dell'inadempimento"), no caso concreto: "Il contratto non si può risolvere se l'inadempimento di una delle parti ha scarsa importanza, avuto riguardo all'interesse dell'altra".
No Título V, do CC brasileiro de 2002, que trata "Dos Contratos em Geral", há previsão, no Capítulo II, "Da Extinção do Contrato" por meio da Cláusula Resolutiva (Seção II), cujo art. 475 é de redação de que "A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos". Observe-se bem isto: o dispositivo legal (art. 475) está inserido na seção denominada "Da Cláusula Resolutiva", e prevê que a parte lesada tem a opção de pedir a resolução do contrato ― diante do inadimplemento da prestação, pela outra parte ― se não preferir exigir-lhe o cumprimento.7 A teoria do adimplemento substancial tem, no Direito brasileiro, o efeito jurídico central de exatamente mitigar a eficácia do art. 475 do CC/2002, para retirar da parte lesada o direito de obter a resolução do contrato, quando tiver ocorrido inadimplemento mínimo do contrato, pela outra parte. Com isso, a jurisprudência tem optado por salvar o contrato, isto é, preservar o negócio jurídico celebrado e quase totalmente executado (em que houve, portanto, performance substancial).
De todo modo, é incorreto dizer que o art. 475 do CC/2002 positivou a teoria do adimplemento substancial, pois o dispositivo não teve tal propósito, nem tem tal conteúdo. Assim, a teoria do adimplemento substancial, no Direito brasileiro, tem sido aplicada por interpretação restritiva do tanto quanto contido no art. 475 do CC/2002, por mitigação de sua eficácia quanto à resolução do contrato e, por interpretação sistemática, quando juízes levam em consideração o princípio da boa-fé e o princípio da função social dos contratos (arts. 421 e 422 do CC/2002), para entendimento de que, diante do cumprimento quase total do contrato, o pleito de resolução contratual feriria mencionados princípios jurídicos, inclusive, em outra vertente, caracterizando abuso de direito.
Reserva-se, ao prejudicado, o direito à indenização, em relação à parcela inadimplida pela outra parte, seja por equidade, seja pela aplicação da parte remanescente do art. 475 do CC/2002, pois de mitigação se trata, e não de negativa de vigência ao dispositivo.8 Pela mesma razão jurídica, o credor também pode proceder à retenção da parte remanescente que lhe cabe, para aplicação da cobrança do saldo que lhe seja devido, por aplicação da exceptio non adimpleti contractus.9
Aponta-se como leading case brasileiro, ao menos no âmbito do STJ, o Recurso Especial (RESp) 76.362-MT, julgado em 1995. Neste caso, realmente, o então Min. RUY ROSADO DE AGUIAR, Relator, fez expressa menção, em seu voto, ao "adimplemento substancial", tendo sido acompanhado, à unanimidade, para decidir que a falta de pagamento de uma prestação, considerando o valor total do negócio, não autorizava a seguradora a resolver o contrato, pois a segurada havia cumprido substancialmente o contrato. Entretanto, o STJ determinou que, como havia ocorrido o sinistro, do crédito da autora deveria ser deduzido o valor do prêmio em atraso, com juros e correção monetária, assegurando-se, portanto, o direito indenizatório que assistia à seguradora, diante do descumprimento parcial do contrato pela segurada.10
Também, o ex-Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, quando foi o Relator do RESp 272.739-MG, julgado em março de 2001, embasou parcialmente seu entendimento, em um caso que versava sobre ação de busca e apreensão de automóvel objeto de alienação fiduciária em garantia, no raciocínio de que "Usar do inadimplemento parcial e de importância reduzida na economia do contrato para resolver o negócio significa ofensa ao princípio do adimplemento substancial, admitido no Direito e consagrado pela Convenção de Viena de 1980, que regula o comércio internacional".11 A Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, também em consideração à equidade, prevê, quanto à compra e venda de mercadorias, no artigo 25, que a violação ao contrato por uma das partes é considerada como essencial se causar à outra parte prejuízo de tal monta que substancialmente a prive do resultado que poderia esperar do contrato, salvo se a parte infratora não tiver previsto e uma pessoa razoável da mesma condição e nas mesmas circunstâncias não pudesse prever tal resultado. Pela Convenção de Viena de 1980, apenas no inadimplemento fundamental considera-se possível a rescisão do contrato. Isto é, conforme arts. 49 e 64, a parte prejudicada (comprador ou devedor) só pode declarar o contrato rescindido se o descumprimento, pela outra parte, constituir violação essencial do contrato (dentre outras hipóteses).12
No Direito Privado brasileiro, a orientação da aplicação da teoria do adimplemento substancial, no aspecto quantitativo, é para casos em que o descumprimento do contrato tenha sido mínimo. A jurisprudência do próprio STJ tem sido vacilante, a respeito. Já se entendeu que apenas a falta de pagamento da última prestação do contrato de seguro pode, eventualmente, ser considerada adimplemento substancial da obrigação contratual, para não comprometer as atividades empresariais da companhia seguradora,13 como também já se entendeu que é de se aplicar a teoria do adimplemento substancial dos contratos em caso no qual o réu pagou 31 das 36 prestações contratadas.14 Por definição, impera o casuísmo: ao juiz cabe avaliar, caso a caso, se o aspecto quantitativo do adimplemento da obrigação está suficientemente caracterizado para permitir a aplicação da doutrina da substancial performance, por equidade. De todo modo, se a resolução do contrato for muito gravosa à parte inadimplente, o juiz deve evitá-la, para não configurar-se enriquecimento sem causa da outra parte, vedado pelo art. 884 do CC/2002. Mas, ao credor da obrigação inadimplida, é sempre assegurado o direito à reparação pela parte que deixou de receber.
O STJ tem exigido também o cumprimento de critérios qualitativos para aplicação da teoria do adimplemento substancial, notadamente a existência de expectativas legítimas geradas pelo comportamento das partes ― além de ser possível a conservação da eficácia do negócio sem prejuízo ao direito do credor de pleitear a quantia devida pelos meios ordinários.15 Em outras palavras, deve haver boa-fé do devedor (critério qualitativo), para admitir-se que o descumprimento de pequena parte do contrato (critério quantitativo) não é, no caso concreto, suficiente à resolução do contrato por iniciativa da parte prejudicada. E tal realmente já constara do leading case do STJ, RESp 76.362, pois um fator relevante para a aplicação da teoria do adimplemento substancial, naquele caso concreto, foi que a seguradora sempre recebera as prestações da segurada, aceitando o atraso nos pagamentos periódicos (teoria dos atos próprios), o que estava inclusive previsto no contrato, tendo a Corte Superior reputado inadmissível que a seguradora apenas rejeitasse o recebimento da prestação em atraso em razão de ter ocorrido o sinistro.
Em verdade, o critério qualitativo da boa-fé espalhou-se por vários países que adotaram a teoria do adimplemento substancial. Para citar exemplo, o CC das Filipinas, de junho de 1949, no seu art. 1.234, trouxe previsão expressa de que, se a obrigação tiver sido substancialmente executada (critério quantitativo), de boa-fé (critério qualitativo), ao credor caberá indenização pela parte em que sofreu dano, entendendo-se pelo pleno cumprimento da obrigação, pelo devedor.
Importante destacar que uma das funções do princípio da boa-fé objetiva é a imposição de limites ao exercício de direitos subjetivos. Para tal função, conforme for a situação, tanto pode ser aplicada a "teoria do adimplemento substancial das obrigações", como a "teoria dos atos próprios" (onde se inserem os institutos venire contra factum proprium, surrectio, supressio, tu quoque).16 Mas, tais são doutrinas distintas entre si. Apenas ocorre que, em vários casos concretos, a teoria do adimplemento substancial tem sido aplicada em conjunto com a teoria dos atos próprios.
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1. Tese fixada: "The distinction is very clear. Where mutual covenants go to the whole of the consideration on both sides they are mutual conditions, the one precedent to the other. But where they go only to a part, where a breach may be paid for in damages, there the defendant has a remedy on his covenant and shall not plead it as a condition precedent. If this plea were to be allowed, any one negro not being the property of the plaintiff would bar the action".
2. Cf. OLDHAM, James. English Common Law in the Age of Mansfield. The University of North Carolina Press, 2004.
3. Cf. BALOCH, Tariq A. Unjust enrichment and contract. Oxford: Hart Publishing, 2009, p. 97 e ss.; GILMORE, Grant. Security interests in personal property. New Jersey: The Lawbook Exchange, Vl. I, 1999, p. 65.
4. Cf. PLATT, Thomas. Practical treatise on the law of convenants. London: Saunders and Benning, 1829, p. 91.
5. Exemplificativamente: "(...) 2. No caso, o Tribunal de origem, com base no contrato e nas provas coligidas aos autos, concluiu não ser caso de aplicação da teoria do adimplemento substancial. Alterar tal conclusão demandaria o reexame de fatos e provas, inviável em recurso especial, a teor do disposto nas mencionadas súmulas. 3. A incidência dos referidos enunciados também obsta o conhecimento do recurso especial pela alínea "c" do permissivo constitucional, consoante a jurisprudência desta Corte. 4. Agravo regimental a que nega provimento" (STJ - AgRg no AREsp 382.989/MG, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, julgado em 18/09/2014, DJe 25/09/2014).
6. Cf. NELSON, William E. The legalist reformation: law, politics, and ideology in New York, 1920-1980. The University of North Carolina Press, 2001, p. 84.
7. No CC anterior, em redação semelhante, o parágrafo único do art. 1.092 dispunha que "A parte lesada pelo inadimplemento pode requerer a rescisão do contrato com perdas e danos".
8. Cf. STJ - REsp 1255179/RJ, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 25/08/2015, DJe 18/11/2015.
9. BENETI, Sidnei; BENETI FILHO, Sidnei. Teoria do adimplemento substancial do contrato na atualidade. Revista do Advogado, v. 36, n. 131, p. 224-238, out. 2016.
10. STJ - REsp 76.362/MT, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, 4ª Turma, julgado em 11/12/1995, DJ 01/04/1996, p. 9917.
11. STJ - REsp 272.739/MG, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, 4ª Turma, julgado em 01/03/2001, DJ 02/04/2001, p. 299.
12. Cf. Decreto 8.327, de 16.10.2014 e Decreto Legislativo 538, de 18/10/2012.
13. STJ - REsp 415.971/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 14/05/2002, DJ 24/06/2002, p. 302.
14. STJ - REsp 1051270/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 04/08/2011, DJe 05/09/2011.
15. STJ - REsp 1581505/SC, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, julgado em 18/08/2016, DJe 28/09/2016.
16. Cf. STJ - RESp 1202514/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 21/06/2011, DJe 30/06/2011.
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Thiago Cássio D'Ávila Araújo é procurador Federal da AGU em Brasília/DF. Mestre em Direito pelo UniCEUB. Professor de Direito.
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