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quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Como se produz um jurista? O modelo russo (parte 51)

Do zênite ao altair
Nicolau II abdicou ao trono em 15 de março de 1917 e terminou preso, com a família, na Casa Ipatiev, em Ecaterimburgo, onde seria fuzilado juntamente com sua mulher, o czarevich Alexei e suas filhas, as grã-duquesas Olga, Tatiana, Maria e Anastásia. Esta última ainda alimentaria polêmicas sobre sua sobrevivência ao regicídio praticado pelas forças bolcheviques. O breve governo provisório de Alexander Kerensky, um advogado social-democrata que viria a suceder o regime monárquico, foi derrubado por Lenin e seus revolucionários. A grande promessa dos bolcheviques era celebrar um acordo de paz em separado e retirar o país da fracassada guerra contra os alemães e os austro-húngaros.

O regime comunista modificou rapidamente as estruturas de poder na velha Rússia, que se converteu na república mais importante da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Cessadas as hostilidades com os impérios centrais, uma longa guerra civil teve início entre os comunistas e uma frente ampla de monarquistas, socialdemocratas e republicanos, apoiados pelo Reino Unido e pela França. Vitoriosas as forças comunistas, em 1920, o Exército Vermelho, a máquina militar soviética criada por Trotsky, seria derrotada em uma guerra contra a jovem República Polonesa.

Nos anos 1930, com a ascensão do georgiano Iossif Vissarionovitch Djugashvili, mais conhecido como Josef Stalin, a União Soviética procedeu a um violento expurgo da antiga elite czarista no Exército da na burocracia civil. Na década seguinte, sob a liderança de Stalin, os soviéticos passariam de aliados a inimigos mortais do regime de Adolf Hitler. A queda de Berlim ante o Exército Vermelho foi o marco da ascensão da União Soviética como uma superpotência internacional, ao lado dos Estados Unidos, em substituição ao multissecular eurocentrismo na História do Ocidente.

Na primeira metade do século XX, a velha Rússia passou de um império decadente a uma potência industrial, militar e atômica. Os custos humanos, ambientais e políticos foram imensos. Como uma resposta às demandas de uma sociedade industrializada e planificada, desde cedo, as profissões militares e as técnicas ocuparam posição de preeminência na sociedade. Algo semelhante ao que ocorreu na China comunista e que só mais recentemente vem-se revertendo, por meio da ascensão das carreiras jurídicas.

Uma lenta transformação ocorreu a partir dos anos 1930, quando o Direito já se havia tornado um instrumento do Estado soviético, que adotou uma forte orientação positivista e, tomando-se como petição de princípio que a revolução do proletariado já ocorrera, seria necessário aos juristas assegurar a manutenção da nova ordem. Cumprir a lei seria realizar o fim comum do Estado socialista. Professores, estudantes, advogados e juízes inseriam-se em um modelo no qual o Direito era hierarquizado, sem caráter crítico e autocentrado em sua condição de mera superestrutura. As ideias de Pachukanis, célebre no Brasil por sua teoria marxista do Direito, foram condenadas ao esquecimento.[1] Como diria Stalin, "nós precisamos, mais do que antes, de estabilidade legislativa"[2].

Em 1956, uma nova liderança chega ao poder na União Soviética, na sequência da morte de Stalin e do assassinato ou suicídio de seus principais ministros e assessores, tendo seu sucessor, Nikita Khrushchev  pronunciado o famoso "discurso secreto" no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, no qual se condenou o legado stalinista. Deu-se uma passagem retórica de um Estado do proletariado para um Estado de "todas as pessoas".

Outro ponto de inflexão na história do regime soviético ocorreu sob a administração de Leonid Brezhnev, que aprovou uma nova Constituição em 1977. As bases propostas por Brezhnev recaíam em uma promessa de bem-estar social a partir da "revolução técnico-científica" e de um socialismo desenvolvimentista. O discurso de Brezhnev atendia ao sentimento de que a população desejava ter acesso a bens de consumo e que o modelo de planificação estatal deveria ser aprimorado.

A história demonstrou o fracasso dessas políticas de melhoria da qualidade de vida do cidadão médio, o que resultou em uma troca de guarda na alta liderança do regime soviético, com a chegada ao poder de Mikhail Sergueievitch Gorbachev, no ano de 1985.

Gorbachev viria a ser o último presidente da União Soviética e seria o responsável por sua liquidação, em 1991, quando aquele Estado multinacional esfacelou-se após a secessão de diversas repúblicas, de entre elas a Ucrânia, a Belarus, a Geórgia, as repúblicas bálticas (Lituânia, Letônia e Estônia), a Armênia e as repúblicas asiáticas de origem cazaque, mongol e quirguiz. Gorbachev tornou-se internacionalmente conhecido por suas políticas de transparência e de reestruturação econômica, as quais tentaram conciliar os ideais marxistas-leninistas com uma economia de mercado, algo que (ao menos retoricamente) se iniciava na República Popular da China.

O fracasso de Gorbachev tornou-se notório quando ele foi derrubado temporariamente por um golpe de estado de opereta. Graças à resistência de Boris Nicoláievitch Iéltsin, então presidente da República Socialista Soviética da Rússia, e da população de Moscou, o golpe fracassou e Gorbachev teve de aceitar o exaurimento paulatino de suas funções, até a dissolução total da velha União Soviética em 24 de dezembro de 1991.

Iéltsin atravessou os difíceis anos do pós-comunismo, com a decadência militar, política e econômica da recém-recriada república da Rússia. O novo regime enfrentou conflitos militares contra separatistas, desagregação das Forças Armadas, crise econômica severa, queda nos níveis sociais e formação de grupos mafiosos que terminaram por se apropriar das riquezas do antigo Estado comunista.

O fundador da moderna Rússia saiu de cena com uma inesperada renúncia aos 31 de dezembro de 1999, na qual ele anunciava a transferência do poder para Vladimir Vladimirovitch Putin, um ex-agente do Bureau de Segurança do Estado (em russo, KGB).

Retorno ao zênite?
A Rússia contemporânea tem sido governada, desde então, por Putin (2000-2008 e 2012 até agora) e seu parceiro político Dmitri Medvedev (2008-2012). No período em que Putin deixou a Presidência, Medvedev designou-o como primeiro-ministro. Hoje, esse cargo é ocupado por Medvedev, enquanto Putin é o presidente da Rússia.

Todos esses sucessos na História recente da Rússia podem ser vistos sob uma óptica curiosamente jurídica. Gorbachev graduou-se em Direito em 1955 na Universidade Federal de Moscou. Trata-se de uma surpreendente mudança na formação dos "czares comunistas", quase todos de origem proletária ou campesina, com formação estritamente policial, militar ou em ciências exatas. Esse câmbio, que é perceptível na China há duas décadas, era reflexo da estabilidade interna do país e do avanço da burocracia jurídica sobre os postos de poder soviéticos, algo esperável em um país no qual o Direito era o instrumento por excelência de estabilização e de legitimação formal do exercício da autoridade estatal.

Iéltsin era engenheiro e deveu sua ascensão a seu feitio de "bom tocador de obras". Mas Putin é um jurista, graduado pela Universidade Estatal de Leningrado (atualmente Universidade Estatal de São Petersburgo), com uma tese de láurea sobre a cláusula da nação mais favorecida, um tema clássico de Direito Internacional Privado. Logo após sua licenciatura, Putin ingressou na KGB e, dez anos depois, foi designado para trabalhar na Alemanha Oriental, onde se tornou fluente no idioma alemão.

Medvedev é outro exemplo dessa retomada da influência dos cursos jurídicos na vida político-burocrática soviético-russa do último quartel do século XX. Nascido em São Petersburgo (então Leningrado), em uma família de acadêmicos, Medvedev graduou-se em Direito no ano de 1987 e doutorou-se em 1990, ambos os títulos obtidos na Universidade Estatal de São Petersburgo, a mesma na qual Putin obteve sua licenciatura. O primeiro-ministro russo é um civilista e romanista respeitado nos meios universitários russos, sendo autor de um popular manual de Direito Civil russo em três volumes.

O discurso oficial sobre a importância das profissões jurídicas na Rússia contemporânea segue sendo muito próximo da retórica soviética, no sentido de que o país não carece de mais advogados ou de cientistas sociais, dado que são mais importantes engenheiros e cientistas. No entanto, essas afirmações não se conciliam com os números: a) o número de advogados per capita na Rússia é inferior a seus correspondentes na Europa e nos Estados Unidos; b) os problemas de má formação de profissionais não são exclusivos do Direito, e sim de várias outras atividades, como Medicina, Engenharia ou Agronomia[3].

Na próxima coluna, cuidar-se-á da análise da estrutura educacional jurídica na Rússia, com relação ao número de faculdades de Direito e a docência universitária.


[1] Sobre esse período, recomenda-se a leitura de: HEAD, Michael. The passionate legal debates of the early years of the Russian Revolution. Canadian Journal of Law and Jurisprudence, v. 14, n. 1, p.3.28, jan. 2001.
[2] STALIN, Josef. Report to the XVIII Party Congress, March, 10, 1939. In. BABB, Hugh W.; HAZARD, John
N. (eds). Soviet Legal Philosophy. 20th Century Legal Philosophy Series. Cambridge: Harvard University Press, 1951. v.5, p.XXIX.
[3]  ANISIMOV, Aleksey Pavlovich; RYZHENKOV, Anatoliy Jakovlevich. Contemporary problems of the higher legal education reform in Russia in terms of the provisions of the Bologna Declaration. The Online Journal of New Horizons in Education. v. 4, Issue 3, p.1-12, jul. 2014.

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