Supremas diferenças
Indicações de novos juízes para as cortes constitucionais no Brasil e nos Estados Unidos reacendem o debate: existe fórmula ideal? Entenda (e compare) os diferentes modelos de nomeação adotados em outros países
Por: Ricardo Vasques Helcias (texto), Alexandre Hoshino e André Fuentes (design)
É justo que o presidente do país escolha os juízes das cortes constitucionais que possivelmente vão julgar processos do interesse do governo? O debate sobre essa questão foi reacendido nas últimas semanas com as novas nomeações para o Supremo Tribunal Federal e para a Suprema Corte dos Estados Unidos. Com a morte de Teori Zavascki em um desastre aéreo em janeiro, Michel Temer fez sua primeira indicação para o STF: Alexandre de Moraes, que ocupava o cargo de ministro da Justiça no seu governo. Nos EUA, o presidente Donald Trump escolheu o juiz federal Neil Gorsuch para a vaga aberta com a morte do notório Antonin Scalia, em fevereiro do ano passado. Tanto nos Estados Unidos como no Brasil, que replica o modelo americano, o candidato passará por uma sabatina no Senado e precisa ser aprovado pela maioria da Casa.
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A fórmula de nomeação adotada aqui e nos EUA, com o Poder Executivo indicando e o Poder Legislativo referendando, é uma das muitas possíveis para a seleção de um juiz de suprema corte. No geral, os modelos buscam que exista um equilíbrio entre os Poderes na escolha, e que o futuro ministro seja alguém com conhecimento técnico e amparo político. Outro método popular é dividir as indicações entre os poderes. Na França, os presidentes da República, do Senado e da Câmara escolhem um terço dos assentos da corte cada um; na Alemanha, a divisão é entre as duas Casas Legislativas; e na Itália, entre os três Poderes. Israel adota uma fórmula diferente: um colegiado composto por representantes da corte, do governo e do Parlamento faz as indicações. Já na Índia, em um sistema que beira o corporativismo, o próprio Supremo aponta os seus ministros. (Confira abaixo os diferentes modelos de composição. O número de processos foi baseado nas decisões finais das cortes no ano judiciário de 2015).
Brasil
Supremo Tribunal Federal
A enorme carga de processos da corte brasileira é reflexo das intermináveis oportunidades de recursos que a Justiça do país oferece e do detalhamento da Constituição de 1988, que com seus mais de 200 artigos e 80 emendas permite que quase qualquer assunto possa ser levado ao STF. Na semana passada, o tribunal responsável por julgar os políticos envolvidos na Lava Jato decidiu sobre o habeas corpus a uma mulher presa por tentar furtar desodorantes e chicletes em 2011. "Ninguém dá conta de analisar 10.000 ações em um ano. O que acontece? Você faz um modelo de decisão para determinado tema. Depois, a sua equipe de analistas reúne os casos análogos e aplica o seu entendimento", desabafou o então presidente do Supremo Cezar Peluso a VEJA em 2010. Mesmo assim, o STF tem se destacado nos últimos anos pelo julgamento de grandes temas – mensalão, casamento gay, aborto de anencéfalos etc – e por ter a palavra final nos impasses entre os outros Poderes.
MANDATO: até os 75 anos
Estados Unidos
Suprema Corte dos Estados Unidos
Mais tradicional corte do mundo, o Supremo americano tem uma carga de trabalho de dar inveja aos magistrados brasileiros. Dos mais de 5.000 casos que recebem anualmente, os juízes se debruçam sobre menos de cem, escolhidos a dedo. A enxuta Constituição do país, com sete artigos e 27 emendas, explica o baixo número de processos, mas a existência de "supremas cortes" estaduais também ajuda a filtrar as ações que chegam ao mais alto tribunal. Outra grande diferença em relação ao Brasil: os juízes americanos raramente se manifestam fora dos autos e são avessos aos holofotes. Dividida entre progressistas (indicados por democratas) e conservadores (por republicanos), a Suprema Corte tinha, antes da morte de Scalia, um delicado equilíbrio ideológico: quatro juízes à esquerda, quatro à direita e um centrista – o fiel da balança Anthony Kennedy.
MANDATO: Vitalício
Alemanha
Tribunal Constitucional Federal da Alemanha
Símbolo da Alemanha no pós-guerra, o Tribunal Constitucional Federal está localizado na cidade de Karlsruhe, a mais de 700 quilômetros de Berlim. A distância física visa isolar a corte das disputas políticas da capital, garantindo assim sua neutralidade. Responsável por julgar a constitucionalidade das leis e assegurar uma Alemanha livre e democrática, o tribunal é dividido em duas turmas de mesma hierarquia compostas por oito ministros cada. As indicações são feitas pelas duas Casas Legislativas: o Bundestag (Câmara) elege uma metade da corte e o Bundesrat (Senado), a outra. A nomeação garante ao magistrado um mandato de doze anos – com direito a traje vermelho e chapéu cerimonial.
MANDATO: 12 anos
França
Conselho Constitucional da França
Encarregado exclusivamente de resolver questões relativas à Constituição e supervisionar os processos eleitorais – o que explica o baixo número de decisões anuais –, o Conselho Constitucional da França tem os seus membros nomeados alternadamente pelos presidentes da República, do Senado e da Câmara. Um terço da corte formada por nove juízes é renovado a cada três anos, e os escolhidos exercem um mandato fixo de nove anos. Essa fórmula garante uma renovação gradual, mas constante, do tribunal. Em uma particularidade da corte francesa, os ex-presidentes também tem um assento assegurado assim que deixam o Palácio do Eliseu. Mas com uma condição: que não participem mais do debate político. Poucos são os que optam por exercer o direito.
MANDATO: 9 anos
Israel
Suprema Corte de Israel
Situada em um impressionante complexo arquitetônico em Jerusalém, a mais alta corte do país muitas vezes tem a última palavra em temas delicados envolvendo a tensa relação entre israelenses e palestinos. No passado recente, o tribunal já ordenou que o governo alterasse a rota do muro erguido na Cisjordânia por considerar que o traçado separava aldeias palestinas de suas terras produtivas. Em breve, deve se manifestar sobre os novos assentamentos judaicos em território ocupado. Como forma de reduzir pressões políticas e garantir a independência do tribunal, os magistrados são nomeados por um colegiado formado por três juízes do Supremo, dois ministros do governo (um deles o da Justiça), dois deputados e dois representantes da ordem dos advogados.
MANDATO: até os 70 anos
Índia
Supremo Tribunal da Índia
Com seus 31 assentos e dezenas de milhares de ações, o Supremo indiano reflete o gigantismo do país. A corte não chega a ser um STF em matéria de volume de processos, mas também sofre com o acúmulo de casos aguardando julgamento. O modo de seleção dos magistrados é incomum. Apesar de a Constituição dizer que o presidente deve indicar os ministros, o Supremo decidiu há mais de vinte anos que um collegium formado pelo presidente da corte e pelos quatro juízes mais antigos é que escolheria os novos membros. Tudo para garantir a independência do tribunal. De lá para cá tem sido assim, mas nos últimos anos o Legislativo e o Executivo se esforçaram para mudar a fórmula de juízes nomeando juízes. Uma proposta de um colegiado mais plural chegou a ser aprovada no Parlamento em 2014, mas foi derrubada um ano depois no próprio Supremo. Voto vencido na disputa, o juiz Jasti Chelameswar criticou a falta de transparência dos colegas e disse que o sistema atual promove a mediocridade. O atrito entre o Judiciário e o governo tem atrasado as novas indicações e, atualmente, o Supremo da Índia tem oito vagas a serem preenchidas.
MANDATO: até os 65 anos
Itália
Corte Constitucional da Itália
Um dos raros casos de modelo com as nomeações divididas igualmente entre os três Poderes, a Corte italiana tem um terço de seus quinze integrantes indicado pelo presidente, um terço pelo Parlamento e um terço pelas cortes superiores. Os juízes permanecem no tribunal por um período de nove anos. A Corte deve zelar pela correta interpretação da Constituição, resolver conflitos entre os Poderes e julgar acusações contra o presidente.
MANDATO: 9 anos
A importância da sabatina
Tanta variedade de modelos indica que não existe consenso sobre qual a melhor forma de nomeação. Uma das principais críticas ao modelo brasileiro é o poder excessivo do presidente na escolha, algo que poderia prejudicar a independência do Supremo. A falta de um mandato com tempo pré-estabelecido também é questionada. No STF, um ministro deixa a corte ao completar 75 anos – antes disso, apenas em caso de morte ou se decidir se aposentar precocemente. O assento quase vitalício torna a renovação do tribunal inconstante e causa discrepâncias no número de indicações a que cada presidente tem direito. Um exemplo: em seus oito anos de governo, Lula nomeou oito ministros para o Supremo. No mesmo período, Fernando Henrique escolheu apenas três.
Uma das vantagens do modelo, o rigoroso escrutínio do Senado, não funciona na prática no Brasil. Por aqui, a confirmação do candidato é quase uma formalidade e, não raro, a sabatina se dá em um inadequado clima de camaradagem. Uma exceção auspiciosa foi a audiência com Edson Fachin, que se estendeu por 12 horas e questionou o magistrado de forma exemplar. Ainda assim, o nome do hoje relator da Lava Jato no STF foi aprovado com folga no plenário: 52 votos a 27. Ou seja, Alexandre de Moraes, criticado pela oposição por exercer cargo no governo e por sua filiação ao PSDB, pode até esperar uma sabatina dura, mas não deve se preocupar com a votação no Senado. Em tempo: a última vez que os senadores rejeitaram um nome para o STF foi há mais de cem anos, no governo de Floriano Peixoto.
Nos EUA, é diferente. Os indicados passam por sabatinas que podem durar dias e precisam provar sua competência técnica. A maioria acaba sendo confirmada pelo Senado, mas o processo não é meramente protocolar. Nos últimos cinquenta anos, três nomes foram rejeitados, o último deles no governo Reagan. Outros quatro viram suas indicações naufragarem antes mesmo das sabatinas. Dois casos emblemáticos são os de Douglas Ginsburg, em 1987, e de Harriet Miers, em 2005. O primeiro foi derrubado pela revelação de que havia fumado maconha na vida adulta, enquanto a segunda foi considerada – por democratas e republicanos – despreparada para o cargo. Em 1991, o juiz Clarence Thomas enfrentou até acusações de assédio sexual e passou raspando: 52 votos a 48. No ano passado, após a morte de Scalia, Barack Obama nomeou em seu último ano de mandato o juiz Merrick Garland para a vaga. O Senado controlado pelos republicanos, porém, se recusou a sabatinar o magistrado, argumentando que a escolha deveria caber ao próximo presidente dos EUA. Os democratas acusaram os adversários de "roubar" uma indicação e prometem jogo duro contra o candidato de Trump para o tribunal.
Atualmente, tramitam no Congresso 23 propostas para mudar o modelo de escolha dos ministros do STF. Uma sabatina séria que preparasse bem os candidatos a um lugar na corte que zela pela Constituição já seria um ótimo começo.
Supremo Tribunal Criminal
Entre as competências do STF, está a de julgar políticos com foro privilegiado. A quantidade exorbitante de autoridades envolvidas nos dois megaescândalos de corrupção desvelados nos últimos anos no Brasil – o mensalão e o petrolão – transformou o Supremo em uma espécie de vara de 1ª instância superlotada, deixando de abordar outras questões que são de sua exclusividade. Apesar de ter sobrecarregado os ministros, o alto número de processos criminais contra políticos não foi, em tudo, um desperdício. "Não tenho dúvida que julgamentos como o da ação penal 470 [mensalão], por exemplo, deram coragem para essa quantidade de juízes de primeira instância tomando decisões fortes contra atos de corrupção", diz o advogado Daniel Falcão, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
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