Dando continuidade a esta discussão iniciada na coluna anterior, sobre o "Paraíso dos Conceitos Jurídicos", é preciso fazer as referências e citar as fontes consultadas (como deve ocorrer nas garrafas de água mineral) com finalidade de adensamento das reflexões. É igualmente necessário situar o referido texto de Jhering em um momento histórico anterior ao "giro lingüístico-ontológico", também para fazermos coro às constantes críticas sobre importantes e atuais problemas do direito pátrio:
"uma hermenêutica jurídica que se pretenda crítica, hoje, fundamentada nesse giro linguístico-ontológico, deve procurar corrigir o equívoco das diversas teorias da interpretação, que, embora reconheçam que o direito se caracteriza por um processo de aplicação a casos particulares (concretude), permanecem reféns da metafísica, ao elaborarem um processo de subsunção a partir de conceitualizações (veja-se o paradigmático caso das súmulas vinculantes no Brasil), que se transformam em "significantesprimordiais-fundantes" ou "universais jurídicos" , "acopláveis" a um determinado 'caso jurídico'".[1]
O caminho sinuoso percorrido pelo nosso ordenamento jurídico, entre tantas rupturas político-institucionais e projetos particularistas ao longo dos séculos XX (e primeiro quarto do século XXI), tornam relevantes e atuais, para nós outros, tanto as reflexões de Jhering contra certo fetiche conceitualista, como também aquilo que Ortega y Gasset refletiu quando discorreu sobre uma "Espanha Invertebrada"[2], que na imagem atual poderia nos levar a falar sobre uma espécie de "direito invertebrado", potencializador dos problemas denunciados por juristas críticos.
Ao mencionar a expressão "giro palingenésico"[3], com a qual finalizamos o texto anterior, Pierluigi Chiassoni, jusfilósofo do Instituto Tarello para a Filosofia do Direito (Università Degli Studi di Genova) discorre sobre as dificuldades de se tratar do positivismo jurídico em razão de uma alegada "renovação interior", pela qual alguns dos positivistas contemporâneos viriam atribuindo uma novidadeira – mas ao mesmo tempo, em sua opinião, equivocada - jurisprudência essencialista. Ao fim e ao cabo, simplificações resolutivas "(re)nascem" no coração do mesmo tipo de giro, se com isso estiver em jogo a aplicação do direito.
Aliás, convém recordar que Chiassoni[4] ressalta o fato de que a teoria dos conceitos de Hart é caracterizada por três ideias que constituem sua espinha dorsal, dentre elas, a propósito, uma notável influência a partir dos escritos de Jhering. Primeiro, os conceitos seriam tanto uma questão de convenção, quanto de estipulação, não havendo, em sua percepção, nenhum conceito verdadeiro fora do reino dos usos ordinários das palavras. Para ele não teríamos conceitos verdadeiros em alguma "dimensão rarefeita de essências reais", tal qual asseveraram conceitualistas jurídicos como o primeiro Jhering (embora o segundo Jhering seja um crítico mordaz desta concepção). Em segundo lugar, os conceitos estipulativos não seriam nem verdadeiros, nem falsos, mas apenas sujeitos à justificação pragmática, e seu valor, se houvesse algum, dependeria da(s) finalidade(s) a que ele(s) deveriam servir, e de como eles foram elaborados em vista desses objetivos (mais próximo do segundo Jhering, e de suas observações no "Paraíso dos Conceitos Jurídicos"). Terceiro, os conceitos teóricos, como os elaborados pela teoria jurídica, seriam conceitos estipulados, informados por um objetivo explicativo geral.
A pretensão de que os conceitos jurídicos resolvessem (ou resolvam) todos os problemas, como observamos na crítica realizada "no Paraíso de Jhering", é similar (em algum sentido, e guardadas peculiaridades) ao fenômeno do panprincipiologismo (matrixprincipiologismo[5]). É possível apostar que se Jhering estivesse refletindo hodiernamente sobre os temas e problemas atuais, ele possivelmente discorreria sobre um "Paraíso dos Princípios Jurídicos", nos levando a rememorar as críticas realizadas por Lenio Luiz Streck, Nelson Nery Jr., Georges Abboud, Otavio Luiz Rodrigues Junior, e alguns outros (destacando-se, ainda, a entrevista relativamente recente dos professores Reinhard Zimmermann e Jan Peter Schmidt[6], que também tocam no tema do abuso dos princípios). Cada jurista luta a batalha de seu próprio tempo, e a pólvora é comum ao uso das antigas balas de canhão e aos modernos rifles de assalto.
E isto porque uma vasta gama de "princípios", "nanoprincípios", "superprincípios", "hiperprincípios", "megaprincípios", "macroprincípios", "microprincípios", "metaprincípios", "lumpemprincípios", "teleprincípios", "rádioprincípios", "endoprincípios", "exoprincípios", "intraprincípios", "extraprincípios", são criados, urdidos e utilizados com as características da ubiquidade e da "absoluta relatividade" a bel prazer do "interpretativista pan-matrix-principiológico", além de conceituados de maneira "ad hoc", sendo patente o elo conectivo com as críticas de Jhering.
Também por isso são atuais as construções críticas e sarcásticas que Jhering elaborou sobre a "essencialidade dos conceitos", bem como sua narrativa sobre as máquinas e engrenagens que recaem sobre eles nas descrições sobre "o pau de sebo dos problemas jurídicos", a "máquina de partir cabelos", a "máquina da ficção", a "máquina de construir", a "máquina de conciliar passagens contraditórias", a "furadeira dialética", e o "muro da vertigem". Tais aparatos da tecnologia jurídica dos conceitos (re)caem como uma luva nas viragens "pan-e-matrix-principiológicas" de nossos dias, e desvelam a caixa de ferramentas forjada com um cerne comum, partilhando com elas o DNA de sua medula óssea, embora o pragmatismo levado ao limite seja um dos problemas centrais (e o outro lado da moeda).
Renovadamente, influenciados por Jhering, falaríamos então sobre "o pau de sebo dos princípios jurídicos", a "máquina de partir princípios", a "máquina da 'principiologização'", a "máquina de construir princípios", a "máquina de conciliar princípios contraditórios", a "furadeira dialético-principiológica", e o "muro principiológico da vertigem". Falemos sobre seus ancestrais, mas de olho em sua evolução para os novos modelos da "tecnologia" jurídica, sob as luz, sombras e pegadas presentes no "Paraíso dos Conceitos Jurídicos". Retornemos, pois, para a descrição do Paraíso de Jhering.
Continuidade "n'O Paraíso"
Logo após receber uma explicação sobre a essencialidade dos conceitos, e ser informado sobre a clivagem celestial entre "o céu dos teóricos" e o "céu dos práticos", e depois de ter tido o seu tíquete de ingresso conferido, e as pertinentes explicações sobre eles, o visitante do paraíso é conduzido a um local chamado palaestra (um ginásio de exercícios para os espíritos caídos que crescem cansados de olhar para os conceitos, devendo ir ao ginásio para uma devida e necessária recreação).
Lá chegando, o visitante se depara com uma curiosa engenhoca, chamada de "máquina de partir cabelos", e sua finalidade seria servir para a realização um dos testes de ingresso no "paraíso dos teóricos". Lá o candidato deverá partir um fio de cabelo em 999.999 partes, exatamente iguais. Explica-se ao candidato que inicialmente ele receberá um cabelo que pode ser visto a olho nu, mas os cabelos vão se tornando cada vez mais finos até que o candidato necessite de um par de óculos especiais para poder vê-los, mas o candidato se acostumaria a fazer a prática sem eles.
Informam-lhe que existem pessoas no local que conseguem partir uma daquelas pequenas partes em outras 999.999 partes exatamente iguais, e que aquele que se sair melhor receberá uma coroa como forma de premiação: um tipo de láurea de grinaldas feita de cabelos partidos, e o vencedor manterá a coroa até que alguém o supere, mas a tarefa seria inglória, uma vez que também é informado de que por lá eles não param de ter cabelos partidos.
Próximo de lá também se vislumbra outra "engenhoca", chamada de "pau de sebo de problemas jurídicos difíceis", uma estrutura ereta, extremamente escorregadia. Os candidatos possuem 3 tentativas para chegar ao topo, e se não conseguirem, terão falhado no teste. A descrição nos dá conta de que a barra possui 3 topos, e que durante o exame, o candidato precisará subir o primeiro deles para alcançar um dos problemas, e então terá de descer. Os outros dois topos podem apenas ser alcançados por aqueles que tenham completado a subida. É algo crescente, e os problemas só fazem aumentar em cada um deles, e apenas uma pessoa teria conseguido alcançar o topo mais alto, mas esse candidato encontrou muitas dificuldades para levar o problema de volta ao topo. Tal informação deixa o visitante estupefato, pois ele logo quis saber por qual motivo no mundo alguém, em sã consciência e depois de tantas dificuldades para trazer os problemas para baixo, os colocaria novamente no mesmo lugar.
Então o visitante é censurado: "que pergunta mais tola", dizem a ele. E isto porque toda a diversão iria acabar se não houvesse problemas a serem alcançados, pois os problemas só estão lá em cima para mero estímulo da subida, e não para serem resolvidos, vale dizer, se não houvesse mais problemas, seria difícil estimular as pessoas a se sentirem tentadas a subir no "pau de sebo dos problemas jurídicos", razão pela qual todos os problemas deveriam ser recolocados lá no topo novamente.
O visitante se recorda de algo familiar. Ele explica ao interlocutor que os problemas do "pau de sebo dos problemas jurídicos" seriam similares à anedota sobre as "três lebres", com as quais era familiarizado quando era professor na terra. As três lebres eram as únicas no clube de caçadas na região, e eram conhecidas individualmente por aqueles que adoravam caçar, e por isso existia um acordo tácito entre os caçadores, consistente em atirar e caçá-las, mas sem as atingirem, pois os caçadores pretendiam preservar a diversão. Mas aconteceu de certa vez um deles atingir uma das lebres, tendo que se desculpar veementemente, alegando que havia acertado por engano. Entretanto, o fato provocou indignação geral, eis que as lebres só estavam lá para serem caçadas, mas não para serem atingidas.
Eis duas das máquinas presentes no "Paraíso dos Conceitos Jurídicos". A maneira caricatural pela qual tais imagens são retratadas, a partir da pena de Jhering, precisam ser profunda (e renovadamente) refletidas em nossos dias, e a moeda da reflexão é também, e a um só tempo, o troco que pegamos pela breve recordação, mas que não pagam nem o valor e nem das demais máquinas a (re)construção e a diversão. Retomaremos as demais máquinas na próxima parte da série de colunas. Continua.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).
[1] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e Possibilidades Críticas do Direito: Ensaio Sobre a Cegueira Positivista. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 52, p. 127-162, jan./jun. 2008, p. 137.
[2] ORTEGA Y GASSET, José. España Invertebrada: Bosquejo de algunos pensamientos históricos. Madrid: Calpe, 1922.
[3] CHIASSONI, Pierluigi. El discreto placer del positivismo jurídico. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2016, p. 47.
[4] CHIASSONI, Pierluigi. The Simple and Sweet Virtues of Analysis. A Plea for Hart's Metaphilosophy of Law. Anuário de Filosofia y Teoria del Derecho, v. 5, 2011, p. 63.[5] STRECK, Lenio Luiz. Senso Incomum: Juiz brasileiro é do tipo "prefiro não fazer"? Eu não acredito! Conjur de 29 de maio de 2014, disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-mai-29/juiz-brasileiro-tipo-prefiro-nao-eu-nao-acredito>, acesso em 08.02.2017.
[6] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; RODAS, Sergio. Entrevista com Reinhard Zimmermann e Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. N. 2. v. 4. p. 379-413. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2015.
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