O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
divulgou, no mês passado, que 14,1% das famílias estão superendividadas. Já o
Ipea afirma que 92,9% dessas mesmas famílias não planejam tomar crédito e 31,6%
das contas estão em atraso. Dados alarmantes como esses fizeram com que o economista
Roberto Luis Troster afirmasse em artigo no Valor (30/5, p. A12) que o crédito
no Brasil está "no banco dos réus" e que distorções no sistema de
intermediação que coloquem em risco a oferta saudável de crédito podem gerar
atraso ao crescimento nacional.
O tema do superendividamento é ainda mais relevante em razão
da proposta de reforma do Código de Defesa do Consumidor (CDC) elaborada por
uma comissão de juristas do Senado Federal e que, de forma minudente, trata do
tema. Primeiro, é importante ressaltar que o CDC, ainda que, como afirmou o
Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2591,
tenha seu "valor constitucionalmente fixado, como cláusula pétrea,
garantido como direito fundamental pelo Art. 5º, XXXII da Constituição Federal
de 1988", causou profundas mudanças no ordenamento jurídico (e econômico)
brasileiro, ampliando direitos (e o contencioso) de consumidores e fornecedores.
Nessa mesma toada, é inegável que o CDC adotou o princípio
da "vulnerabilidade do consumidor" (art. 4º), reforçando a ideia de
assimetria informacional entre consumidor e bancos ofertantes de crédito, e
protegeu os hipossuficientes, compreendidos como a parte fraca da relação de
consumo, desinformados e alvos do poder econômico dos bancos.
É ainda imperioso que exista o fortalecimento do contrato e
das obrigações que foram ali assumidas. O citado projeto da comissão de
juristas estabelece algumas vertentes sobre o superendividamento que valem o
debate. Destacam-se os seguintes temas ali estabelecidos: "1) Proibição de
promover publicidade de crédito com referência a "crédito gratuito",
"sem juros", "sem acréscimo", com taxa zero ou expressão de
sentido ou entendimento semelhante; 2) Para a prevenção do superendividamento,
impõe a concessão responsável de crédito, em que o fornecedor, além de informar,
deve aconselhar o consumidor e avaliar de forma leal as condições deste repagar
suas dívidas, sob pena de redução dos juros; 3) Criação da figura do assédio de
consumo, definido como pressão ao consumidor, em especial se idoso, analfabeto,
doente ou em estado de vulnerabilidade agravada, para contratar o fornecimento
de produto, serviço ou crédito, em especial se a distância, por meio eletrônico
ou por telefone, ou se envolver prêmios; 4) Criação de procedimento intitulado "da
conciliação em caso de superendividamento", de forma a estimular a
repactuação das dívidas em audiências conciliatórias com todos os credores,
onde se elabora plano de pagamento de até cinco anos para quitar as dívidas,
preservado o mínimo existencial".
Enquanto a teoria da responsabilidade do banqueiro pela
concessão de empréstimo é antiga na Europa, só agora está se sedimentando no
Brasil (vide, por exemplo, Clarissa Costa de Lima, "Empréstimo
responsável: os deveres de informação nos contratos de crédito e a proteção do consumidor
contra o superendividamento" (dissertação de mestrado em Direito,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006) e constitui um tema espinhoso.
Por exemplo, o que seria ideal como "aconselhamento" de forma
"leal" ao consumidor, ou será que se pode definir "assédio"
ao consumidor como o esforço mercadológico de vendas? Em outras palavras, até
onde vai a liberdade de iniciativa e a livre concorrência, valores tão caros à
democracia e ao desenvolvimento e à legítima proteção ao consumidor?
Além disso, o grande risco de proteção ao superendividamento
é literalmente acabar com o acesso ao crédito a quem mais precisa dele. Bancos,
como quaisquer agentes econômicos, operam com o objetivo de lucro. Se a
expectativa de oferta de crédito acabar na inadimplência, o crédito seca. Por maior
que seja a necessidade de ofertar informação e responsabilidade que se pretenda
outorgar ao banqueiro, é ainda imperioso que exista o fortalecimento do
contrato e das obrigações ali assumidas.
Como afirma Enzo Roppo, deveria
haver "responsabilidade pelos compromissos assumidos, configurados como um
vínculo tão forte e inderrogável que poderia equiparar-se à lei: os ontratos legalmente firmados têm força de lei
para aqueles que os celebraram" (Enzo Roppo, o contrato (Trad. Ana Coimbra e M. Januário C.
Gomes. Coimbra: Almedina, 1988, p. 34-35). O que se pode perceber
pelo horizonte vislumbrado é que o debate sobre o assunto está apenas
começando.
Jairo Saddi, pós-doutor pela Universidade de Oxford,
professor de Direito do Insper, escreve mensalmente às segundas-feiras.
Data: 25/06/2012 Fonte: Valor Econômico - A15
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