Como regra geral, se houver descumprimento
de obrigação contratual, “a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a
resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento,
cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos”,
conforme dispõe o artigo 475 do Código Civil (CC). Entretanto, a
doutrina e a jurisprudência têm admitido o reconhecimento do
adimplemento substancial, com o fim de preservar o vínculo contratual.
Segundo
a teoria do adimplemento substancial, o credor fica impedido de
rescindir o contrato, caso haja cumprimento de parte essencial da
obrigação assumida pelo devedor; porém, não perde o direito de obter o
restante do crédito, podendo ajuizar ação de cobrança para tanto.
Origem
A substancial performance
teve origem no direito inglês, no século XVIII. De acordo com o
ministro Paulo de Tarso Sanseverino, da Terceira Turma do Superior
Tribunal de Justiça (STJ), o instituto foi desenvolvido “para superar os
exageros do formalismo exacerbado na execução dos contratos em geral”.
Embora
não seja expressamente prevista no CC, a teoria tem sido aplicada em
muitos casos, inclusive pelo STJ, tendo como base, além do princípio da
boa-fé, a função social dos contratos, a vedação ao abuso de direito e
ao enriquecimento sem causa.
De acordo com o ministro Luis
Felipe Salomão, da Quarta Turma do STJ, “a insuficiência obrigacional
poderá ser relativizada com vistas à preservação da relevância social do
contrato e da boa-fé, desde que a resolução do pacto não responda
satisfatoriamente a esses princípios”. Para ele, essa é a essência da
doutrina do adimplemento substancial.
Boa-fé
O
princípio da boa-fé, que exige das partes comportamento ético, baseado
na confiança e na lealdade, deve nortear qualquer relação jurídica. De
acordo com o artigo 422 do CC, “os contratantes são obrigados a guardar,
assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de
probidade e boa-fé”.
Segundo Paulo de Tarso Sanseverino, “no
plano do direito das obrigações, a boa-fé objetiva apresenta-se,
especialmente, como um modelo ideal de conduta, que se exige de todos
integrantes da relação obrigacional (devedor e credor) na busca do
correto adimplemento da obrigação, que é a sua finalidade última”.
No
julgamento do Recurso Especial (REsp) 1.202.514, a ministra Nancy
Andrighi, da Terceira Turma do STJ, afirmou que uma das funções do
princípio é limitar o exercício de direitos subjetivos. E a essa função
aplica-se a teoria do adimplemento substancial das obrigações, “como
meio de rever a amplitude e o alcance dos deveres contratuais”.
No
caso objeto do recurso, Indústrias Micheletto e Danilevicz Advogados
Associados firmaram contrato de serviços jurídicos, que previa o
pagamento de prestações mensais, reajustáveis a cada 12 meses.
Durante
os seis anos de vigência contratual, não houve nenhuma correção no
valor das parcelas. A contratada optou por renunciar ao reajuste,
visando assegurar a manutenção do contrato. Entretanto, no momento da
rescisão, exigiu o pagamento retroativo da verba.
Nancy Andrighi
explicou que nada impede que o beneficiado abra mão do reajuste mensal,
como forma de persuadir a parte contrária a manter o vínculo
contratual.
Nessa hipótese, haverá redução da obrigação pela
inércia de uma das partes, ao longo da execução do contrato, em exercer
direito, “criando para a outra a sensação válida e plausível de ter
havido a renúncia àquela prerrogativa”, disse.
Por isso, o
princípio da boa-fé tornou inviável a pretensão da firma de advocacia de
exigir valores a título de correção monetária, pois frustraria uma
expectativa legítima, construída e mantida ao longo de toda a relação
contratual, explicou Andrighi.
Função social Para
o ministro Luis Felipe Salomão, o contrato deixou de servir somente
para circulação de riquezas: “Além disso – e principalmente –, é forma
de adequação e realização social da pessoa humana e meio de acesso a
bens e serviços que lhe dão dignidade.”
“Diante da crescente
publicização do direito privado, o contrato deixou de ser a máxima
expressão da autonomia da vontade para se tornar prática social de
especial importância, prática essa que o estado não pode simplesmente
relegar à esfera das deliberações particulares”, disse o ministro, no
julgamento do REsp 1.051.270.
BBV Leasing Brasil ajuizou ação de
reintegração de posse contra um cliente, em razão da falta de pagamento
de cinco das 36 parcelas devidas em contrato para aquisição de
automóvel. Como não obteve sucesso nas instâncias ordinárias, a empresa
recorreu ao STJ.
Salomão entendeu que a teoria do adimplemento
substancial deveria ser aplicada ao caso, visto que o cliente teria
pagado 86% da obrigação total, além de R$10.500 de valor residual
garantido (VRG).
De acordo com o relator, a parcela da dívida
não paga não desaparecerá, “o que seria um convite a toda sorte de
fraudes”, porém o meio de realização do crédito escolhido pela
instituição financeira deverá ser adequado e proporcional à extensão do
inadimplemento – “como, por exemplo, a execução do título”, sugeriu.
Ele
explicou que a faculdade que o credor tem de rescindir o contrato,
diante do inadimplemento do devedor, deve ser reconhecida com cautela,
principalmente quando houver desequilíbrio financeiro entre as partes
contratantes, como no recurso julgado.
Carretas
Caso
semelhante foi analisado também pela Terceira Turma, em junho deste
ano. Inconformada com o débito de seis parcelas, do total de 36,
correspondentes a contrato cujo objeto eram 135 carretas, a empresa
Equatorial Transportes da Amazônia ajuizou ação de reintegração de posse
contra Costeira Transportes e Serviços.
No REsp 1.200.105, a
Equatorial pediu a extinção do contrato, sustentando que o fato de
faltar apenas um quinto do valor a ser quitado não servia de
justificativa para o inadimplemento da outra contratante.
O
ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator do recurso especial, deu
razão à Costeira e aplicou a teoria do adimplemento substancial. “Tendo
ocorrido um adimplemento parcial da dívida muito próximo do resultado
final, limita-se esse direito do credor, pois a resolução direta do
contrato mostrar-se-ia um exagero, uma iniquidade”, disse.
Ele
afirmou que, atualmente, o fundamento para aplicação da teoria é o
artigo 187 do CC. De acordo com o dispositivo, o titular de um direito
que o exerce de forma a exceder os limites impostos pelo seu fim
econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes, comete ato
ilícito.
Na hipótese, Sanseverino explicou que o credor poderá exigir seu crédito e até indenização, mas não a extinção do contrato.
Imóvel rural Em
agosto deste ano, a Terceira Turma reconheceu o adimplemento
substancial de um contrato de compra e venda, cujo objeto era um imóvel
rural. Do valor da dívida, R$ 268.261, o comprador deixou de pagar, à
época do vencimento, apenas três parcelas anuais, que totalizavam R$
26.640. Esse valor foi quitado posteriormente.
“Se o saldo
devedor for considerado extremamente reduzido em relação à obrigação
total, é perfeitamente aplicável a teoria do adimplemento substancial,
impedindo a resolução por parte do credor, em favor da preservação do
contrato”, afirmou o ministro Massami Uyeda (AREsp 155.885).
Enriquecimento ilícito Quando
o comprador, após ter pagado parte substancial da dívida, torna-se
inadimplente em razão da incapacidade de arcar com o restante das
prestações devidas, tem a possibilidade de promover a extinção do
contrato e de receber de volta parte do que pagou, sem deixar de
indenizar o vendedor pelo rompimento. Esse foi o entendimento da Quarta
Turma, ao julgar o REsp 761.944.
Planec Planejamento Educacional
firmou contrato de compra e venda com a Companhia Imobiliária de
Brasília (Terracap) para aquisição de um imóvel, localizado em Águas
Claras (DF). A cláusula relativa ao pagamento previa que 30% do valor do
imóvel deveriam ser pagos a título de sinal.
O tribunal
estadual considerou que o comprador, por ter dado causa à rescisão
contratual, não tinha direito ao ressarcimento de parte substancial do
valor pago ao vendedor. Entretanto, o ministro João Otávio de Noronha,
relator do recurso especial, entendeu que o acórdão deveria ser
reformado.
Para o ministro, o pagamento inicial do valor devido
deixa de ser caracterizado como sinal quando representa adimplemento de
parte substancial da dívida. “Assim sendo, é incabível a retenção de
tais valores no desfazimento do negócio, sob pena de enriquecimento
ilícito do vendedor”, disse.
Ele citou precedente, segundo o
qual, “o promissário comprador que se torna inadimplente em razão da
insuportabilidade do contrato assim como pretendido executar pela
promitente vendedora tem o direito de promover a extinção da avença e de
receber a restituição de parte substancial do que pagou, retendo a
construtora uma parcela a título de indenização pelo rompimento do
contrato” (REsp 476.775).
Exceção do contrato não cumprido No
julgamento do REsp 883.990, a Quarta Turma analisou um caso em que a
teoria do adimplemento substancial foi afastada. Um casal ajuizou ação
ordinária, visando a reintegração de posse de um imóvel, situado na
Barra da Tijuca (RJ), e a consequente rescisão do contrato milionário.
O
casal de compradores havia deixado de pagar mais da metade do valor do
imóvel, aproximadamente R$ 1 milhão, em razão de os vendedores não terem
quitado parcela do IPTU, de R$ 37 mil.
Para suspender o
pagamento das prestações devidas, o casal invocou a norma disposta no
artigo 470 do CC – exceção do contrato não cumprido –, argumentando que a
responsabilidade pela quitação dos débitos fiscais incidentes sobre o
bem era dos vendedores.
De acordo com o relator do recurso
especial, ministro Fernando Gonçalves (hoje aposentado), há uma
flagrante desproporcionalidade entre o descumprimento parcial dos
vendedores com a quitação dos débitos fiscais e a retenção das parcelas
devidas pela compra do imóvel.
Ele entendeu que a falta de
pagamento do IPTU não acarretou diminuição patrimonial para os
compradores, o que serviria de justificativa para que estes deixassem de
cumprir sua obrigação. Mencionou que o valor das prestações supera em
muito o quantitativo referente ao imposto, que, inclusive, poderia ser
abatido do valor devido.
Para o ministro, a exceção do contrato
não cumprido favoreceu os vendedores. “Há flagrante mora dos recorridos
[compradores], porque, por uma escassa importância, suspenderam o
pagamento de aproximadamente R$ 1 milhão, já na posse do imóvel até hoje
mantida”, concluiu.
Contrato de previdência “Para
a resolução do contrato, inclusive pela via judicial, há de se
considerar não só a inadimplência em si, mas também o adimplemento da
avença durante a normalidade contratual”, disse o ministro Luis Felipe
Salomão, no julgamento do REsp 877.965
Após a morte do cônjuge,
uma beneficiária de contrato de previdência privada, firmado com o
Bradesco Vida e Previdência, foi informada de que o acordo havia sido
cancelado administrativamente, devido à inadimplência de três parcelas.
Conforme acordado, a beneficiária deveria receber pecúlio em razão de
morte, no valor de R$ 42 mil.
Entretanto, seis dias após o
cancelamento pela instituição financeira, antes de ter ocorrido a morte
do cônjuge, as três mensalidades devidas foram pagas. Em razão do
cancelamento, a empresa devolveu o valor pago em atraso. Diante disso, a
beneficiária ajuizou ação de cobrança.
No recurso especial, ela
alegou nulidade da cláusula contratual que autorizou o cancelamento do
contrato de seguro devido ao inadimplemento de parcelas, sem que tenha
ocorrido a interpelação judicial ou extrajudicial para alertar o devedor
a respeito do cancelamento ou rescisão do contrato.
Para o
ministro Salomão, a conduta da beneficiária “está inequivocamente
revestida de boa-fé, a mora – que não foi causada exclusivamente pelo
consumidor – é de pequena importância, e a resolução do contrato não era
absolutamente necessária, mostrando-se também interessante a ambas as
partes a manutenção do pacto”.
Segundo o ministro, o
inadimplemento é “relativamente desimportante em face do substancial
adimplemento verificado durante todo o período anterior”, além disso,
“decorreu essencialmente do arbítrio injustificável da recorrida –
entidade de previdência e seguros – em não receber as parcelas em
atraso, antes mesmo da ocorrência do sinistro, não agindo assim com a
boa-fé e cooperação recíproca, essenciais à harmonização das relações
civis”.
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