02/04/2013 por Pablo Stolze Gagliano (Jornal Carta Forense)
O tempo é o senhor de todas as coisas.
Esse dito popular encerra profunda sabedoria, na
medida em que reconhece, no decurso do tempo, uma força capaz de aliviar
muitas dores ou descortinar a verdade imanente à natureza humana.
Sob o prisma eminentemente jurídico, o decurso do
tempo – e prefiro dizer “decurso” para salientar a sua natureza dinâmica
– é um fato jurídico em sentido estrito ordinário, vale dizer, um
acontecimento natural apto a gerar efeitos na órbita do direito.
E isso não é novidade.
Todavia, se aprofundarmos a investigação científica
do tema, descobriremos que a força do tempo expande-se em diversos
outros espaços do universo jurídico.
Confesso que, muitas vezes, apanho-me, nostálgico,
relembrando bons momentos vividos na década de 80, em minha infância,
época em que, posto não tivéssemos os confortos tecnológicos da
modernidade – internet, tablet, celular – vivíamos com mais intensidade
as 24 horas do nosso dia, mais próximos do calor dos nossos amigos – na
alegre troca de figurinhas (como as dos inesquecíveis álbuns “Stamp
Color” e “Amar é”), em entusiasmadas disputas de “gude”, ou em
divertidas brincadeiras como “picula” ou “esconde-esconde”.
Atualmente, tenho a impressão de que as 24 horas do dia não suprem mais – infelizmente – as nossas necessidades.
E, se por um lado, esta falta de tempo para viver
bem é algo trágico em nossa sociedade – e que merece uma autorreflexão
crítica – por outro, é forçoso convir que as circunstâncias do nosso
cotidiano impõem um aproveitamento adequado do tempo de que dispomos,
sob pena de experimentarmos prejuízos de variada ordem, quer seja nas
próprias relações pessoais, quer seja nos âmbitos profissional e
financeiro.
Vale dizer, uma indevida interferência de terceiro,
que resulte no desperdício intolerável do nosso tempo livre, é situação
geradora de potencial dano, na perspectiva do princípio da função
social.
Não faz muito, um amigo passou por um problema que bem exemplifica isso.
Uma determinada empresa passou a cobrar-lhe,
indevidamente, por um determinado serviço não prestado. Eu, então,
indaguei se ele já havia entrado em contato com a referida companhia.
Respondeu-me, então: “Ainda não. Eu sei que, ao ligar, levarei a tarde
inteira ao telefone. Por isso, estou tentando conseguir uma folga no
trabalho, para tentar resolver isso. E se eu for à filial da empresa é
pior ainda. Terei de acampar lá”.
Esta circunstancia tão corriqueira exige uma reflexão.
É justo que, em nossa atual conjuntura de vida,
determinados prestadores de serviço ou fornecedores de produtos,
imponham-nos um desperdício inaceitável do nosso próprio tempo?
A perda de um turno ou de um dia inteiro de
trabalho – ou até mesmo a privação do convívio com a nossa família – não
ultrapassaria o limiar do mero percalço ou aborrecimento, ingressando
na seara do dano indenizável, na perspectiva da função social?
Em situações de comprovada gravidade, pensamos que
esta tese é perfeitamente possível e atende ao aspecto, não apenas
compensatório, mas também punitivo ou pedagógico da própria
responsabilidade civil.
Nesse sentido, o professor VITOR GUGLINSKI , citando, inclusive, jurisprudência:
“A ocorrência sucessiva e acintosa de mau
atendimento ao consumidor, gerando a perda de tempo útil, tem levado a
jurisprudência a dar seus primeiros passos para solucionar os dissabores
experimentados por milhares de consumidores, passando a admitir a
reparação civil pela perda do tempo livre.
(...)
Dentre os tribunais que mais têm acatado a tese da
perda do tempo útil está o TJRJ, podendo-se encontrar aproximadamente 40
acórdãos sobre o tema no site daquele tribunal, alguns da relatoria do
insigne processualista Alexandre Câmara, o que sinaliza no sentido do
fortalecimento e consequente afirmação da teoria. Confiram-se algumas
ementas:
DES. LUIZ FERNANDO DE CARVALHO - Julgamento:
13/04/2011 - TERCEIRA CAMARA CIVEL.CONSUMIDOR. AÇÃO INDENIZATÓRIA. FALHA
NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO DE TELEFONIA E DE INTERNET, ALÉM DE COBRANÇA
INDEVIDA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. APELAÇÃO DA RÉ. AUSÊNCIA DE
DEMONSTRAÇÃO DA OCORRÊNCIA DE UMA DAS EXCLUDENTES PREVISTAS NO ART. 14,
§3º DO CDC. CARACTERIZAÇÃO DA PERDA DO TEMPO LIVRE. DANOS MORAIS FIXADOS
PELA SENTENÇA DE ACORDO COM OS PARÂMETROS DA RAZOABILIDADE E
PROPORCIONALIDADE. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS IGUALMENTE CORRETOS.
DESPROVIMENTO DO APELO.
DES. ALEXANDRE CAMARA - Julgamento: 03/11/2010 -
SEGUNDA CAMARA CIVEL Agravo Interno. Decisão monocrática em Apelação
Cível que deu parcial provimento ao recurso do agravado. Direito do
Consumidor. Demanda indenizatória. Seguro descontado de conta corrente
sem autorização do correntista. Descontos indevidos. Cancelamento das
cobranças que se impõe. Comprovação de inúmeras tentativas de resolução
do problema, durante mais de três anos, sem que fosse solucionado. Falha
na prestação do serviço. Perda do tempo livre. Dano moral configurado.
Correto o valor da compensação fixado em R$ 2.000,00. Juros moratórios a
contar da citação. Aplicação da multa prevista no § 2º do artigo 557 do
CPC, no percentual de 10% (dez por cento) do valor corrigido da causa.
Recurso desprovido.” (GUGLINSKI, Vitor Vilela. Danos morais pela perda
do tempo útil: uma nova modalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n.
3237, 12 maio 2012 . Disponível em:
<http://jus.com.br/revista/texto/21753>. Acesso em: 25 dez. 2012).
Reforçando a tese da juridicidade deste tipo de
dano, lembremo-nos do esforço preventivo do legislador, ao aprovar
normas, como as que constam no Decreto nº 6523, de 31 de julho de 2008,
que regula a atividade dos “Call Centers”.
Por óbvio, em havendo dano injusto ao consumidor,
pelo respectivo órgão de atendimento, caracterizado pelo comprovado
desperdício do seu tempo livre, em situação inexigível e além do
razoável, impõe-se, por medida de justiça, a consequente reparação
civil.
É o que MARCOS DESSAUNE, em pioneira obra,
caracteriza como responsabilidade por “desvio produtivo do consumidor”
(Desvio Produtivo do Consumidor – O Prejuízo do Tempo Desperdiçado. São
Paulo: RT, 2011).
Nessa mesma linha, preleciona o talentoso LEONARDO GARCIA, citado por GUGLINKSI:
“Muitas situações do cotidiano nos trazem a
sensação de perda de tempo: o tempo em que ficamos ‘presos’ no trânsito;
o tempo para cancelar a contratação que não mais nos interessa; o tempo
para cancelar a cobrança indevida do cartão de crédito; a espera de
atendimento em consultórios médicos etc. A maioria dessas situações,
desde que não cause outros danos, deve ser tolerada, uma vez que faz
parte da vida em sociedade. Ao contrário, a indenização pela perda do
tempo livre trata de situações intoleráveis, em que há desídia e
desrespeito aos consumidores, que muitas vezes se veem compelidos a sair
de sua rotina e perder o tempo livre para soluciona problemas causados
por atos ilícitos ou condutas abusivas dos fornecedores. Tais situações
fogem do que usualmente se aceita como ‘normal’, em se tratando de
espera por parte do consumidor”.
Até porque, como bem lembra o poeta, “o tempo não para”.
E não é justo que um terceiro “pare” indevidamente o nosso, segundo a sua própria conveniência.
Pensem nisso.
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