A consulta aos manuais brasileiros de Direito Civil
é um excelente indicativo de quais obras alemãs influenciaram ou têm
influenciado os juristas nacionais. É bem nítida a divisão desses autores em
três camadas cronológicas.
A primeira diz respeito a doutrinadores clássicos
do século XIX, cuja importância transcende suas épocas e, até por uma questão
histórica, eles permanecem como elementos de conexão com a cultura jurídica
universal. São exemplos dessa camada os nomes de Friedrich Carl Freiherr
(barão) von Savigny (1779-1861), Rudolf von Ihering (1818-1892) e Bernhard
Joseph Hubert Windscheid (1817-1892). Integrantes ou fundadores de escolas
jurídicas (jurisprudência dos conceitos; jurisprudência dos interesses;
pandectismo), esses juristas estão associados, até hoje, às teorias da posse,
das obrigações e do negócio jurídico. Suas principais obras chegaram ao país
por meio de traduções espanholas e italianas, quando não por versões de segunda
mão em português.[1]
Na segunda camada estão os nascidos entre meados do
século XIX e início do século XX. Ela divide-se em dois grupos. No primeiro,
estão autores como Karl Martin Ludwig Enneccerus (1843-1928), Theodor Kipp
(1896-1963), Hans Carl Nipperdey (1895-1968), Martins Wolff (1872-1953), Justus
Wilhelm Hedemann (1878-1963) e Andreas von Tuhr (1864-1925), cujas obras mais
importantes foram publicadas nos anos 1900-1930. Von Tuhr, um jurista
teuto-russo, é muito citado nos manuais brasileiros, graças à tradução
espanhola de Wenceslao Roces de seu clássico Der Allgemeine Teil des
deutschen bürgerlichen Rechts (Parte Geral do Direito Civil alemão)
(1910-1918). O Tratado de Direito Civil alemão de Enneccerus-Kipp-Wolff é
obrigatoriamente citado na maior parte das obras didáticas brasileiras.
No segundo grupo da segunda camada, figuram
juristas que escreveram (ou publicaram) seus principais textos nos anos
1950-1960. Franz Wieacker (1908-1994) é permanentemente lembrado por sua História
do direito privado moderno, excelentemente traduzida para o português por
António M. Botelho Hespanha, publicada em Lisboa pela Fundação Calouste
Gulbenkian. Karl Larenz (1903-1993) é onipresente nos livros brasileiros sobre
Parte Geral e Direito das Obrigações. Sua Metodologia da Ciência do Direito
foi (muito bem) traduzida por José Lamego e publicada em Coimbra, graças à
prestigiosa Fundação Calouste Gulbenkian. Seus livros Parte Geral do Direito
Civil e Direito das Obrigações receberam traduções espanholas, respectivamente,
nos anos de 1978 e 1958-1959, ambas publicadas em Madri, pela editora Revista
de Derecho Privado, as quais tomaram por base edições alemãs dos anos 1970 e
1950.
A terceira camada é composta por doutrinadores mais
“recentes”, como é o caso de Dieter Medicus (1929-) e Claus-Wilhelm Canaris
(1937-). O livro de Medicus sobre Direito das Obrigações, traduzido como Tratado
de las relaciones obligacionales, foi estampado em Barcelona, pela editora
Bosch, no ano de 1995. Canaris é bastante conhecido no Brasil graças a duas
obras: Direitos Fundamentais e Direito Privado, tradução de Ingo
Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto, publicada em Coimbra, pela Almedina, no ano
de 2003, e Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do
Direito, vertida para o português por António Menezes Cordeiro e estampada
em Lisboa, no ano de 1989, sob o patrocínio da Fundação Calouste Gulbenkian.
Direitos fundamentais e Direito Privado é
a tradução de Grundrechte und Privatrecht, publicado em Berlim e Nova
York, no ano de 1999, pela editora Walter de Gruyter. Esse livro teve enorme
impacto no estudo das relações entre o Direito Privado e o Direito
Constitucional, especialmente no que toca ao problema da eficácia dos direitos
fundamentais em face dos particulares. Infelizmente, esse estudo foi pouco lido
ou, o que é pior, pouco compreendido pelos que o leram e o têm citado para
defender a eficácia direta dos direitos fundamentais, o que não é sustentado
por Claus-Wilhelm Canaris.
Canaris e Medicus ainda possuem uma invejável
produção literária.[2]
No entanto, seus livros mais marcantes para a cultura jurídica nacional datam
dos anos 1970-1990. Se regredirmos para autores da “segunda camada”,
especificamente de seu segundo grupo, os livros de maior relevo ou que chegaram
até ao público brasileiro por traduções portuguesas ou espanholas foram
publicados nos anos 1950-1960. Até hoje, citam-se copiosamente esses escritos,
mesmo tendo Karl Larenz, por exemplo, reformulado profundamente sua Parte
Geral do Direito Civil no ano de 1997, quando publicou sua sétima edição.
Manfred Wolf tornou-se coautor desse livro desde a oitava edição, de 2004.
No Direito Público, o cenário é diverso. Nessa
área, com honrosas exceções, ocorreu um saudável aggiornamento dos
marcos teóricos, com a utilização de obras dos anos 1980-1990, como as de
Robert Alexy ou Bernhard Schlink, cujas traduções começaram a chegar ao Brasil
no final da década de 1990 e ao longo dos anos 2000.[3]
É notório que há cada vez mais brasileiros
estudando na Alemanha ou que dominam o idioma de Goethe, o que permite a
consulta aos originais de obras jurídicas mais modernas. Isso, porém, não se traduziu
(com o perdão do trocadilho infame) em uma alteração sensível para a grande
massa de manuais, cursos e coleções didáticas de Direito Civil, que
permaneceram reproduzindo lições que não mais se observam em seu país de origem
e que, na prática, oferecem ao leitor um conhecimento fossilizado e pouco útil
em termos de comparação de sistemas jurídicos.
É óbvio que muitos elementos contidos em textos de
Enneccerus, Larenz ou Hedemann são extremamente úteis como fontes de consulta
para fins dogmáticos. Outras passagens desses livros assumiram conotação
puramente histórica, dada a alteração legislativa ou o surgimento de novas
escolas, tendências jurisprudenciais ou doutrinárias. Os “clássicos” sempre
terão seu espaço preservado, ainda que hajam perdido o viço da atualidade. No
entanto, o emprego de constructos teóricos ou de certos conceitos com forte
vínculo legislativo em obras didáticas brasileiras há de ser extremamente
cuidadoso. N’alguns casos, é um risco para a seriedade do manual ou do
livro-texto fazer certas afirmações sobre um instituto jurídico que não mais
existe ou que não tem mais sentido para um estudante do século XXI. Exemplos
não faltam de teorias arruinadas na Alemanha, como a das relações contratuais
de fato ou a “teoria das esferas”, que são recitadas no Brasil como grandes
novidades.
Com a profunda reforma no Código Civil, em vigor
desde 2002, por efeito da Lei de Modernização do Direito das Obrigações[4],
não se pode mais estudar institutos como a boa-fé objetiva, a violação positiva
do contrato, a alteração da base do negócio, a prescrição, as relações de
consumo, responsabilidade pós e pré-contratual com exclusivo suporte em
obras dos anos 1950-1960 ou mesmo de 1980-1990.
Para além desse problema, que por si só é muito
relevante, há ainda a necessidade de se dialogar com autores mais
“contemporâneos” da privatística alemã e que têm oferecido leituras
absolutamente originais, quando não diferenciadas, sobre consensos teóricos há
tempos arraigados no Brasil, graças a essa recepção assincrônica da doutrina
germânica.
Joachim Rückert (1945-), Rolf Sturner (1943-) e
Reinhard Zimmermann (1952-) este último mais conhecido em razão de seus livros
escritos em inglês[5],
são exemplos desses “novos” autores, que produziram escritos de grande
qualidade e com influência na dogmática alemã nos anos 1990-2000, com projeções
até aos dias de hoje. Esses juristas, quase todos nascidos nos anos 1940-1950,
são relativamente pouco citados nos manuais brasileiros, a despeito de suas
inegáveis qualidades técnico-jurídicas.[6]
Em termos comparativos, vejam-se os seguintes
resultados quanto às citações de alguns privatistas alemães em um grupo de
revistas jurídicas brasileiras, no período de 1973-2012:[7]
a) Karl Larenz: 685; b) Karl Martin Ludwig Enneccerus: 180; c) Claus-Wilhelm
Canaris: 270; d) Dieter Medicus: 52; e) Reinhard Zimmermann: 12; f) Rolf
Sturner: 8; g) Joachim Rückert: 1.[8]
O Direito Privado brasileiro, que sempre teve
preeminência no avanço dos institutos jurídicos nacionais. Para manter essa
privilegiada posição no ordenamento, é imperativa a retomada de estudos
comparados, mas sem os danosos efeitos de uma recepção de categorias ou figuras
jurídicas fossilizadas ou sem adequação ao Direito interno. Como bem advertiu
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, “deve-se tomar cuidado, no entanto, com
o problema das transposições normativas, quando se impõe a determinada cultura
uma instância litúrgica, dogmática ou jurídica de outra. É por isso que no
Brasil o amigo da Corte da tradição norte-americana pode ser o mero amiga da
parte, bem como a medida provisória do parlamentarismo italiano jamais
encontraria campo propício para sua implementação, no contexto do
presidencialismo brasileiro”.[9]
Na próxima semana, encerrar-se-á esta série de
colunas com um interessante debate sobre alguns consensos em torno do Código
Civil alemão, muitos dos quais transpostos acriticamente para o Direito Civil
brasileiro.
[1] WINDSCHEID, Bernhard. Diritto delle
pandette. Note e riferimenti al diritto civile italiano
iniziate dai professori Carlo Fadda e Paolo Emilio Bensa e continuate da Pietro
Bonfante; coadiuvato dall’Avv. Fulvio Maroi. Nuova ristampa stereotipa. Torino
: Torinese, 1926; SAVIGNY, Friedrich Karl von. Metodologia jurídica
Friedrich Karl (sic) von Savigny . Traduccion J.J. Santa-Pinter. Buenos Aires:
Depalma, 1994; JHERING, Rudolf von. A luta pelo direito.Tradução
de Vicente Sabino Júnior. São Paulo : J. Bushatsky, 1978.
[2] Claus-Wilhelm Canaris é muito respeitado e
admirado no Brasil, com quem possui antigos vínculos acadêmicos. Em 2012, por
indicação da Faculdade de Direito, a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul outorgou-lhe o merecido título de doutor honoris causa.
[3] É o caso de citar: PIEROTH, Bodo; SCHLINK,
Bernhard. Direitos fundamentais. Tradução de António Francisco de Souza
e António Franco. São Paulo: Saraiva, 2012; ALEXY, Robert. Teoria dos
direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo :
Malheiros, 2008.
[4] Gesetz zur Modernisierung des Schuldrechts,
de 26/11/2001.
[5] Podem-se citar como obras de Zimmermann com
relativa difusão no Brasil: ZIMMERMANN, Reinhard. The new German law of obligations : historical and comparative perspectives,
2005 e ZIMMERMANN, Reinhard. The law of obligations : roman foundations
of the civilian tradition.Oxford : Oxford Univ. Press, 1999.
[6] Na atualização do tomo 5 do Tratado de
Direito Privado, de Pontes de Miranda, feita por Otavio Luiz Rodrigues Junior,
Tilman Quarch e Jefferson Carús, publicada no ano de 2012, em São Paulo, com o
selo da Revista dos Tribunais, há copiosas referências a livros de Reinhard
Zimmermann e Rolf Sturner.
[7] São periódicos editados pela Revista dos
Tribunais, que foram selecionados por sua aderência ao Direito Privado: a)
Revista dos Tribunais; b) Direito do Consumidor; c) Direito Privado; d)
Arbitragem e Mediação; e) Direito Bancário e do Mercado de Capitais; f) Direito
Imobiliário; g) Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo; h) Direito do
Trabalho.
[8] A solitária referência merece indicação de
sua autoria: Débora Gozzo, uma das grandes estudiosas do Direito Privado alemão
no Brasil, no artigo “Assentimento de terceiro e negócio jurídico: análise
comparativa entre os direitos brasileiro e alemão”, publicado na Revista do
Instituto dos Advogados de São Paulo, v. 20, p. 66, jul. 2007.
[9] GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Não há esperanto jurídico ou língua universal perfeita.
Acesso em 15/7/2013.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da
União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios
pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo).
Revista Consultor Jurídico, 17 de julho de
2013
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