Na última coluna, iniciou-se
uma série sobre a influência do Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch
— BGB) sobre o Direito Privado brasileiro e sobre a qualificação histórica
desse código como a última floração do liberalismo do século XIX. É bastante
curioso que, em relação ao Código Civil de 1916, se formou idêntico consenso
entre os juristas nacionais.
A recepção do Direito Civil germânico no Brasil,
como já assinalado, foi anterior ao BGB e remonta ao período colonial,
ainda que de modo indireto, pelos costumes visigóticos. Esse fenômeno, que se
verifica em diversas áreas do Direito e em face de outros países, não é
desacompanhado de problemas, como se descreveu na coluna Problemas na importação de conceitos
jurídicos. Independentemente das incoerências e dos equívocos,
esse processo existe e merece atenção.
Note-se que, em Portugal, a “germanização” do
Direito Civil também ocorreu e de modo muito mais intenso que no Brasil, no
final do século XIX e início do século XX. Em larga medida, essa viragem
histórica deveu-se aos ofícios de um professor da Universidade Coimbra,
Guilherme Alves Moreira (1861-1922), catedrático de Direito Civil, líder
republicano e ministro de Estado da Justiça (1915). Ele introduziu em Portugal
os ensinamentos do movimento pandectista e o conceitualismo de Savigny. Seu magnum
opus denominou-se Instituições de Direito Civil Português, de 1907.
A estrutura do livro é tipicamente alemã: dividida em parte geral e parte
especial; fracionada em seções (§§); com as referências bibliográficas no
início de cada capítulo; precedida da exposição das categorias gerais do
Direito, açambarcando conceitos de Direito Público e de Direito Privado e com
forte caráter “sistemático”. A definição de “código” é bem expressiva dessa
filiação epistemológica das Instituições de Guilherme Moreira:
“Os códigos são compilações sistemáticas de todas
as normas jurídicas respeitantes a um determinado ramo de direito feitas pelo
poder legislativo ou pelo executivo no exercício da função legislativa. Os
códigos, que constituem atualmente a fonte mais importante do direito em quase
todos os países civilizados, são aprovados por meio de leis ou decretos, de que
ficam fazendo parte integrante”.[1]
A obra de Guilherme Alves Moreira e, mais que isso,
sua docência universitária foram determinantes para a ruptura do Direito Civil
português com a influência então preeminente do Code Napoleon de 1804. O
Código do Visconde de Seabra[2], em vigor de 1867 até 1865, era notoriamente
obsequioso ao modelo francês. Guilherme Alves Moreira, ao publicar as Instituições,
de modo deliberado, estruturou a matéria em conformidade com o modelo
pandectista (sujeito, bens e relações jurídicas) e procedeu à elegante crítica
da legislação em vigor. A modificação operada, graças a Alves Moreira, foi de
tal profundidade que as novas gerações de civilistas portugueses seguiram seus
passos e abandonaram tanto o método quanto os padrões da Escola Francesa. O
culminar desse processo deu-se em 1966, com a edição do novo Código Civil
português, em vigor desde 1967, conhecido como Código Vaz Serra[3] ou, como preferem outros, Código Antunes
Varela[4], em homenagem a seus principais elaboradores.
A vigente codificação lusitana possui uma parte
geral e livros sobre o Direito das Obrigações, os Direitos Reais, o Direito da
Família e o Direito das Sucessões. Adotou-se o chamado “sistema dos cinco
livros”, que, à semelhança do BGB, se pretende educativo e didático.[5]
Os grandes privatistas portugueses contemporâneos
permanecem fiéis ao projeto de Guilherme Alves Moreira, o que indiretamente
afeta o Direito brasileiro. José de Oliveira Ascensão, catedrático da
Universidade de Lisboa, mas que lecionou em instituições brasileiras nos anos
1970 e 1980, é um dos grandes responsáveis por essa recepção indireta do
Direito alemão no país.[6] Nas obras de António Pinto Monteiro[7], da Universidade de Coimbra, e de António
Menezes Cordeiro[8], de Lisboa, há ampla divulgação de
constructos teóricos alemães e, graças a sua leitura no país, terminam por
dilatar a presença do Direito alemão nos estudos civilísticos nacionais.
No caso brasileiro, como já salientado, a recepção
do Direito Civil alemão ocorreu nas duas codificações, diferentemente do
ocorrido em Portugal. No século XX, apesar da influência germânica na
codificação de 1916 e no então Projeto Reale (da década de 1970, que se
converteria no atual Código), a força da Escola Francesa manteve-se muito
nítida, de modo especial na Universidade de São Paulo. Nomes como Jorge
Americano, Silvio Rodrigues, Washington de Barros Monteiro, Carlos Alberto
Bittar e Antonio Junqueira de Azevedo são exemplos dessa ligação com o modelo
francês, embora não exclusivamente, pois em suas obras também se percebe a
presença de traços da dogmática italiana e alemã. Caio Mário da Silva Pereira e
Álvaro Villaça Azevedo também seguiram uma linha autônoma, mais influenciada
pelo Direito Romano e pelos Direitos francês e italiano. José Carlos Moreira
Alves, o último professor a ostentar formalmente o título de catedrático de
Direito Civil da USP[9], combinava o Direito alemão e o Direito
Romano.
O Direito Civil alemão, por sua vez, sempre se
mostrou prevalente nas faculdades de Direito do norte e nordeste do país, ao
exemplo de autores como Clóvis Beviláqua, Eduardo Espínola, José Martins
Rodrigues[10], Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda[11], Orlando Gomes[12] e Torquato Castro.
No Rio de Janeiro, foram seguidores da Escola alemã
nomes como Francisco Clementino San Tiago Dantas e José Carlos Matos Peixoto[13], respectivamente catedráticos de Direito
Civil e Direito Romano da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do
Brasil[14]. O Curso de Direito Civil do
desembargador Miguel Maria de Serpa Lopes, do antigo Tribunal de Justiça do
Distrito Federal (Rio de Janeiro), é também de ser citado como seguidor do
Direito Privado germânico. Em Minas Gerais, não se pode esquecer de João
Baptista Villela, titular de Direito Civil da UFMG.
Clovis Verissimo do Couto e Silva, da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, foi magistral ao combinar (e equilibrar) as
lições francesas e alemãs.[15] Em seu clássico A obrigação como processo,
Couto e Silva apresentou aos leitores brasileiros o que havia de melhor na
literatura jurídica alemã em seu tempo.[16] Nesse livro, é bem perceptível a utilização
dos contributos de Josef Esser e de Karl Larenz. Sua repercussão nos meios
jurídicos nacionais foi enormemente amplificada graças aos ofícios de seu
discípulo Ruy Rosado de Aguiar Júnior, seja nos acórdãos por ele prolatados no
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, seja quando ele se tornou ministro do
Superior Tribunal de Justiça. Em muito se deve a seus julgados a popularização
de conceitos relacionados à boa-fé objetiva[17], à responsabilidade pré-contratual[18] e à pós-contratual[19], ao venire contra factum proprium[20], ao adimplemento substancial[21] e às relações contratuais de fato.[22]
Evidentemente que a exposição desses nomes é
incompleta e tem o objetivo de ser uma simples exemplificação do quanto foi
marcante o diálogo jurídico Brasil-Alemanha no século XX. E, por uma questão de
elegância, deixa-se de citar doutrinadores mais recentes, salvo os que já
referidos e que assim o foram em razão das conexões de suas obras com o período
pré-Código Civil de 2002.
Nas últimas três décadas, essa ligação tornou-se
ainda mais sensível, o que se nota pelo número cada vez maior de civilistas com
formação germanófila. Nesse aspecto, o Direito Constitucional, o Direito Penal,
o Direito Processual e a Sociologia do Direito revelam-se como províncias
jurídicas tão ou mais marcadas pela produção intelectual alemã do que o próprio
Direito Civil. E essa não é uma novidade: Francisco Campos, Nelson Hungria,
Heleno Fragoso e Haroldo Valadão, em cada uma de suas áreas de estudo, bem
representam esse vínculo intelectual com a Alemanha.
Essa continuidade histórica das relações
teuto-brasileiras foi interrompida em alguns momentos, especialmente durante as
guerras mundiais e suas décadas imediatamente posteriores. Com o tráfego
internacional obstruído, em face das restrições ditadas pela ruptura de
relações diplomáticas, ou com a destruição das universidades, tanto física
quanto humana, o acesso às fontes bibliográficas e a presença nessas
instituições tornaram-se impossíveis por longos períodos. É até surpreendente
que se haja conservado tal nível de interação acadêmica até aos dias atuais.
Especificamente no que se refere ao BGB,
esse código apresenta-se como centro orgânico da recepção dos institutos
jurídico-privatísticos alemães. A título de exemplo, nos 20 periódicos editados
pela Revista dos Tribunais, compreensivos do período de 1976 a 2012, há nada
menos que 1.008 artigos (expressão genérica que compreende também pareceres,
notas, resenhas e ensaios) que citam dispositivos do BGB, com maior ou
menor relevo nas conclusões apresentadas. Ao passo que há 673 artigos com
menções ao Code Civil (França) e 464 ao Codice Civile (Itália).[23]
Na próxima coluna, retomar-se-á o problema do
caráter liberal do Código Civil alemão, como anunciado na semana anterior, e a
importância desse debate para a qualificação de nosso Código Civil.
[1] MOREIRA, Guilherme Alves. Instituições do
direito civil português: Parte Geral. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1907.
v. 1. p.18-19.
[2] António Luís de Seabra (1798-1895), 1º
Visconde de Seabra, reitor da Universidade de Coimbra e ministro de Estado da
Justiça (1852).
[3] Adriano Pais da Silva Vaz Serra (1903-1989)
foi professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e
ministro de Estado da Justiça (1940).
[4] João de Matos Antunes Varela (1919-2005) foi
professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e
ministro de Estado da Justiça. Com a queda do presidente do Conselho de
Ministros de Portugal, o professor Marcelo Caetano, Antunes Varela exilou-se no
Brasil, aonde chegou a ocupar cátedra na Universidade Federal da Bahia. Seu
livro “Das obrigações em geral”, editado pela Almedina, em Coimbra, com dois
volumes, é muito conhecido no Brasil.
[5] EICHLER, Hermann. Codificação do Direito
Civil e teoria dos sistemas de Direito. Revista de Direito Civil v.2, p.36,
out.-dez./1982.
[6] Sugere-se a leitura de um recente texto de
José de Oliveira Ascensão, intitulado “Panorama e perspectivas do Direito Civil
na União Europeia”, publicado nos anais da V Jornada de Direito Civil,
organizados por Ruy Rosado de Aguiar Jr., editado em Brasília pelo CJF,
p.21-37. Disponível em: http://www.jf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-jornada-de-direito-civil/jornadas-cej/v-jornada-direito-civil/VJornadadireitocivil2012.pdf.
Acesso aos 2-7-2013.
[7] Pinto Monteiro é autor da tese Cláusula
penal e indemnização, editada pela Almedina, de Coimbra, 1999, que se
constitui na obra de referência em língua portuguesa sobre o tema.
[8] Sua obra mais difundida no Brasil é a tese Da
boa-fé no Direito Civil, de 1984, que se encontra na quarta reimpressão, de
2011, editada pela Almedina, de Coimbra.
[9] José Carlos Moreira Alves aposentou-se no
cargo de “professor catedrático”, embora, com a Reforma Universitária dos anos
1970, esse cargo haja mudado de nome para “professor titular”.
[10] José Martins Rodrigus (1901-1976) foi
deputado federal e catedrático de Direito Civil da Faculdade de Direito do
Ceará (atualmente unidade da Universidade Federal do Ceará), autor da primeira
obra monográfica no Brasil sobre os efeitos jurídicos do silêncio. Sua obra,
cujo título é Elementos geradores do vínculo obrigacional e efeitos
jurídicos do silêncio, foi reeditada em 2012, por Malheiros Editores, em
São Paulo.
[11] Sobre a presença de Pontes de Miranda na
Alemanha, sugere-se a leitura da coluna Ernst Rabel é pai do moderno Direito
Comparado alemão
(http://www.conjur.com.br/2012-nov-07/ernst-rabel-pai-moderno-direito-comparado-alemanha).
[12] Com acesso às traduções em espanhol.
[13] Sobre esse jurista, que não é muito
conhecido, mas que exerceu enorme influência na formação de grandes nomes do
Direito no século XX, como José Carlos Moreira Alves e Diogo de Figueiredo
Moreira Neto, sugere-se a leitura de sua pequena biografia na Wikipedia:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Carlos_de_Matos_Peixoto.
[14] Atual Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
[15] A influência francesa no pensamento de Couto
e Silva é também muito importante, a título de exemplo, cite-se: COUTO E SILVA,
Clóvis V. do. Les principes fondamentaux de la responsabilité civile en
droit brésilien et comparé (datilografado). Porto Alegre, 1988.
[16] A obrigação como processo
corresponde à tese de cátedra apresentada por Clovis Verissimo do Couto e Silva
à Universidade do Rio Grande do Sul e foi publicado, em primeira edição, em
Porto Alegre, pela editora Emma, no ano de 1964. Sua segunda edição – a mais
difundida no País – é de 1976, publicada em São Paulo pelo editor J. Bushatsky.
Em 2006, a FGV, com edição própria, no Rio de Janeiro, lançou uma nova
impressão desse livro.
[17] STJ. AgRg no Ag 47.901/SP, Rel. Ministro
Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 12/09/1994, DJ 31/10/1994, p.
29505)
[18] TJRS. AC n. 591028295, Relator: Ruy Rosado
de Aguiar Júnior, RJTJRS,v-154/378, data de julgamento: 6/6/1991
[19] TJRS. AC n. 588042580, Relator: Ruy Rosado
de Aguiar Júnior, RJTJRS,v-133/401, data de julgamento: 16/8/1988.
[20] STJ. REsp 95.539/SP, Rel. Ministro Ruy
Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 03/09/1996, DJ 14/10/1996, p. 39015;
TJRS. AC n. 589073956, Relator Ruy Rosado de Aguiar Júnior, RJTJRS,v-145/320,
data de julgamento: 19/12/1989.
[21] STJ. REsp 76.362/MT, Rel. Ministro Ruy
Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 11/12/1995, DJ 01/04/1996, p. 9917.
[22] STJ. AgRg no Ag 47.901/SP, Rel. Min.
Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 12/09/1994, DJ 31/10/1994, p.
29505.
[23] Nesse levantamento foram considerados também
artigos estrangeiros publicados nesses periódicos, o que pode comprometer a
absoluta fidelidade desses números. No entanto, a quantidade desses artigos é
pouco significativa e, mesmo com margem de erro, não há comprometimento da
elevadíssima diferença entre as remissões ou referências ao Código Civil alemão
e os Códigos de França e Itália.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da
União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios
pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo).
Revista Consultor Jurídico, 3 de julho de
2013
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