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sexta-feira, 29 de abril de 2016

STJ estaria refundando um movimento do Direito Livre para o novo CPC?

28 de abril de 2016, 8h00

Por Lenio Luiz Streck

Folheando o texto da Magna Carta de 1215 de João Sem Terra e seus Barões, leio que, na Inglaterra medieval, a partir daquele dia, “só serão nomeados juízes, oficiais de justiça, xerifes ou bailios os que conheçam a lei do reino e se disponham a observá-la fielmente”.

Lendo uma decisão de abril de 2016 (801 anos depois) do Superior Tribunal de Justiça, do combalido país chamado Brasil, da lavra da ministra Maria Isabel Gallotti, tenho a impressão que, por aqui, nem chegamos ao patamar da Magna Carta inglesa (que não é a Constituição da Inglaterra, frise-se).

Vejamos o voto condutor no AgRg no AREsp 827.440/MT (DJe 13/04/2016).

A decisão agravada não merece reforma.
A Corte estadual, analisando o contexto fático-probatório dos autos, concluiu pela ocorrência do dano moral do cliente, em face da demora no reparo do veículo e a revisão do citado entendimento esbarra no óbice da Súmula 7/STJ.
Acerca da necessidade de prova pericial, nos termos do art. 370, caput, e parágrafo único, do Código de Processo Civil/2015, em conformidade com o princípio do livre convencimento, "Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito", indeferindo, fundamentadamente, as diligências que entender inúteis ou protelatórias, entendimento que se coaduna com a jurisprudência adotada nesta Corte. Incidência da Súmula 83/STJ.
Em face do exposto, não havendo o que se reformar, nego provimento ao agravo interno.
É como voto.

Confiram também o inteiro teor do acórdão no site do STJ. Ali se vê, para fins de fundamentação, uma expressa referência ao CPC/2015, como, aliás, deve ser, eis que o julgamento ocorreu após o início de sua vigência. Todavia, eis que, também a título de fundamentação, a decisão ressuscita algo que se imaginava sepulto: o “livre convencimento”. Isso mesmo, aquilo que pode ser chamado de curinga epistêmico, que o novo Código Processo Civil em boa hora expulsou da ordem jurídica brasileira. Sabemos que o STJ editou enunciado estabelecendo que, para os recursos interpostos antes de 16 de abril de 2016, deverá ser aplicado, quanto aos juízos de admissibilidade, o CPC-73. Mas não é disso que aqui se trata.

E, a propósito, já que o tema é fundamentação: será que o parágrafo 1º do artigo 489 foi atendido integralmente? Ou teria o STJ invocado motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão (inciso III)? A decisão dá claros indicativos de ser uma decisão-tipo (padrão). Por outro lado, teria a decisão enfrentado todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador (inciso IV — para isso, não teria sido necessário dizer quais foram os argumentos deduzidos pela parte)? Se essas são apenas perguntas, por outro lado uma coisa parece indubitável: nada indica que o inciso V tenha sido observado, pois ao que consta se limitou a invocar precedente ou enunciado de súmula sem a necessária identificação dos fundamentos determinantes e sem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos.

É preocupante a decisão, porque aponta para um futuro nada promissor no tocante à plena efetivação do CPC. O ponto-chave que não se pode esquecer é o novo CPC apenas tornou expressas exigências materiais que já decorreriam de uma leitura sincera (e “moral”, para falar com Dworkin) dos diversos dispositivos constitucionais consagradores de direitos e garantias especificamente processuais. Então: o novo CPC não exatamente “inova” quando determina aos juízes que, ao decidir, não invoquem motivos que justificariam qualquer outra decisão; ele apenas dá consequência ao dever previsto no artigo 93, IX, da CF, que estabelece o dever fundamental de fundamentar decisões judiciais. O novo CPC também não “inova” quando garante aos interessados o direito de manifestação prévia à decisão, ou quando determina que o juiz leve, enfim, em consideração o produto do debate; ele apenas reconhece que a garantia constitucional do contraditório, em sentido material ou dinâmico, assim determina. Bem assim, o artigo 1º do novo CPC não “instaura” a força normativa da Constituição no aparelho processual; o dispositivo apenas fornece um “reforço normativo” a esta concepção, que está na matriz, aliás, do Constitucionalismo Contemporâneo.

Percebam: o legislador infraconstitucional poderia ter feito diferente? Sim. Mas de nada adiantaria dispor de maneira contrária à Constituição. Há juízes no Brasil e há controle difuso de constitucionalidade. Há, também, o Supremo Tribunal Federal para ser acionado. Cedo ou tarde, dispositivos de “resistência” estariam com os dias contados. Constituição é norma.

E o código do Direito é binário. Lícito ou ilícito. Válido ou inválido. Não há 50 tons de cinza entre uma coisa e outra. Por exemplo: eu posso utilizar prova ilícita, ou eu não posso. E dizer “não” significa dizer “não” até mesmo “para aquele caso em-que-todos-estão-de-acordo-que-a-prova-deva-ser-usada”. Princípio é norma e não é valor. Ou eu tenho direito à ampla defesa e ao contraditório, ou eu não tenho. Se eu tenho, eu o tenho, também, mesmo quando o “juiz-já-está-tão-convencido-da-tese-que-não-importa-o-que-eu-diga”, já que ele não mudará de ideia. Ou bem eu tenho o direito, ou bem eu não o tenho. É o having a right, de que fala Dworkin. Ou seja: ou eu tenho o direito de que os incisos do parágrafo 1º. Do artigo 489 sejam cumpridos ou eu não tenho. Não há 49 tons de cinza.

Claro que, no mais das vezes, será difícil saber, num caso concreto, se eu tenho ou não um direito. Direito é assim mesmo, intrinsecamente controvertido. Mesmo para quem (na verdade, especialmente para quem), como eu, defende que há respostas corretas em Direito. Mas o ponto é: se eu o tiver, nem que chova canivete, o Poder Judiciário deve assegurá-lo. E isso não pode depender da boa (ou má) vontade do juiz.

Pois então, voltemos à decisão. Além dos problemas relacionados ao artigo 489, há algo mais grave ainda. Gravíssimo. Trata-se da “repristinação” de um dispositivo que foi derrogado pelo novo CPC: o livre convencimento. Basta olhar a redação do Código e, se se quiser, a própria motivação do legislador. Foi expungida a palavra livre. Logo, não mais se pode invocar o livre convencimento. Portanto, temos um problema.

A decisão ignorou a redação do artigo 371 do CPC, dando indicativos perigosos de que o Tribunal da Cidadania vai fazer algo contra a Cidadania: descumprir o CPC justamente naquilo que o legislador mais se esforçou, isto é, construir mecanismos para evitar decisões lotéricas, repetitivas, descontextualizadas e com fundamentação pífia.

Lendo o acórdão, o que pude perceber é que o tal "livre convencimento" foi utilizado para afastar a produção probatória. Algo como: se eu, juiz, sou o destinatário da prova, sou eu próprio que também decido sobre o que é necessário para a formação do meu convencimento. Se estou satisfeito com o que já veio para os autos, posso barrar eventual requerimento de produção probatória. Oculto por trás das palavras está o fato de que o juiz já está convencido, não necessita mais de elementos de prova. Agora seu trabalho é “motivar” ... 

Parece que é a síndrome de Jason. Não há o que mate esse tal de “livre convencimento”. [1] Não bastasse toda a luta política empreendida para extirpar esse mal do novo CPC. E a questão aqui é a seguinte: ainda que o novo CPC tivesse mantido hígida a expressão “livre convencimento”; ainda que o novo CPC estabelecesse com todas as letras que “a prova é dirigida ao juiz” e que “é ele quem sabe”; ainda que o novo CPC dissesse que o convencimento judicial é um “trunfo” em relação às disposições legais que tratam do direito probatório; ainda assim... isso de nada valeria. Seria pura e simplesmente inconstitucional. O modelo constitucional é incompatível com “livre convencimento”. E o CPC deixou isso claro. Sem tons de cinza.

Insisto: O processo é um espaço de construção de soluções democráticas, em que se abre um espaço de discussão intersubjetivo a respeito da melhor interpretação do Direito para um caso específico. É por isso que as partes têm direito de falar. É por isso que o juiz tem a obrigação de dialogar e de levar em consideração todos os argumentos. Não se trata de um favor, mas de direitos e deveres. Se é assim, como compatibilizar esta estrutura com o (de resto, insindicável) convencimento livre de alguém?

Por que é tão difícil entender isso? A autoridade para decidir não decorre apenas da investidura dos juízes em seus cargos, mas sim dos argumentos de princípio que estes utilizam para justificar o uso da coerção pública. Quando o juiz expede uma ordem, em nome do Estado, esta ordem é resultado de um processo devido, sem protagonistas, sem buracos negros de legitimidade (a minha consciência, a minha íntima convicção).

A pergunta é: por que isso é assim? Por que o judiciário brasileiro se comporta tão diferente dos demais países civilizados? Ou o nosso país é, mesmo, de quarto ou quinto mundo, em que precisamos de figuras heroicas ou solipsistas, representadas por juízes e ministros que digam para o povo — e a um milhão de advogados cuja maioria baixa a cabeça e é humilhada cotidianamente, além de boa parte sequer ser recebida em gabinete por juízes e promotores — o que é que eles, juízes (e membros do MP) consideram “o melhor” para todos? “— Ah, aqui o legislador errou. Não vou aplicar”. “— Qual é a importância de tirar a palavra livre do antigo artigo 131 e agora constar que o juiz formará o seu convencimento, não mais de forma ‘livre’”? “Ah — nenhuma”. E, por que? “Ah — porque... sim”. Assim caminha a (des)institucionalidade do direito por aqui.

Pergunto, mais uma vez: como é possível que a lei não tenha nenhuma importância? Por que chegamos a esse ponto? A doutrina se acovardou, mesmo? Já sei a resposta. A pergunta foi meramente retórica. Já vi (novos) livros sobre o CPC — e há dezenas — dizendo que o que o legislador disse no artigo 371 nada quer dizer. Tirou a palavra “livre”, mas... os juízes continuam livres para decidir. Bingo. Pior: quem diz isso não são apenas alguns juízes; são advogados. Sim, advogados e professores. Um dos argumentos é que o livre convencimento veio para substituir a prova tarifada. Está bem... Deixemos assim. Isso é tão velho quanto Matusalém. A CF diz que todas as decisões devem ser fundamentadas. Fundamentação não é o mesmo que motivação (ver aqui). Uma inconfidência: Para vermos a gravidade disso: no próprio Comentário ao CPC que coordeno junto com Dierle Nunes, Leonardo Cunha e Alexandre Freire, na revisão final, tive que retirar, de seis lugares (comentários a dispositivos) a repristinação do livre convencimento. Incrível.

Então, diante disso tudo, o que dizer sobre a decisão do STJ? Pensemos, rapidamente e tentemos entender: o século XIX produziu três tipos de positivismo, em países diferentes. O exegetismo francês, a jurisprudência dos conceitos alemã e a jurisprudência analítica inglesa (não vou discutir, aqui, o que é ou o que foi o positivismo e se o pandectismo foi positivismo — já o fiz em outros textos). Para cada um desses “amarramentos” do juiz à uma estrutura (à lei, a uma pandecta ou a um precedente), exsurgiu uma antítese. Aqui me restrinjo às experiências alemãs e francesa: os movimentos de livre investigação e a construção de uma doutrina de direito livre. No cerne, livre de quê? Simples. Livre da lei. Bingo. Porque a lei, então, era “ruim”. Faltava-lhe o fato, a sangria da historia. E essa tarefa de introduzir na interpretação tais elementos foi atribuída ao intérprete-juiz. O juiz boca-da-lei começava a perder espaço.

No Brasil ocorreu, nos anos 70 e 80, algo semelhante com o direito alternativo e outras correntes críticas, ligadas às concepções realistas. Para que? Para exigir do juiz uma postura interventiva. Que ele se libertasse da lei opressora, de um Estado que sequer tinha uma Constituição, porque outorgada por três Generais. Tanto na França, com sua Livre Investigação (François Geni), a Doutrina do Direito Livre, na Alemanha (por todos, Kantorowicz e seu voluntarismo: o direito é a vontade do juiz') e na Inglaterra (e EUA) com o realismo (poderia falar também da Escola de Upsala), tinha-se que liberar o juiz da lei. Lei opressora e “ruim” exige juiz acionalista: eis a questão.

Mas, então, digam-me por qual razão, em plena democracia, um magistrado do STJ quer se livrar da lei? Um novo movimento do Direito Livre brasileiro? Ou um realismo tardio, a la Holmes, tipo judge made law? Ou uma Brasilian Wertungsjurisprudence (jurisprudência dos valores brasileira) para se livrar do formalismo? Estamos nos primeiros dias do novo CPC. Se a doutrina se acomodar e não estabelecer mecanismos de constrangimento epistêmico aos tribunais, já é possível antever um novo/velho jurisprudencialismo brasileiro. O que diz a lei? Não importa. O importante é saber o que dizem os tribunais acerca do que queria ter dito o infeliz do legislador.

Por tudo isso, muito cuidado quando se diz que Hermes era um semideus que fazia a intermediação entre os deuses e os mortais. E que nunca se soube o que os deuses disseram; só se soube o que Hermes disse acerca dos que os deuses disseram. O que falta nisso? O controle sobre Hermes. Hermes solto, dizendo o que quer, é autoritário. Por isso a modernidade, a partir de Danhauer e Schleiermacher, passou a se preocupar com o conspurcamento dos textos. E o resto? Bem, o resto estamos tentando fazer. Aqui é um dos lugares para isso.

Por último: o TST também se esforça para descumprir o novo CPC. O que é isto — a teoria do conglobamento? (ver aqui) É um salto triplo carpado?


[1] Para não haver dúvida entre interpretação da lei e dos fatos, ler: 
http://emporiododireito.com.br/requiem-para-o-livre-convencimento-motivado-por-guilherme-valle-brum-2/

 

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Mediação, um novo olhar sobre o Judiciário brasileiro (Valor Econômico ), abr 25 2016, 10





Mediação, um novo olhar sobre o Judiciário brasileiro

Valor Econômico
abr 25 2016

ALei de Mediação entrou em vigor no final de dezembro de 2015. Neste ano, na segunda quinzena do mês de março, o Novo Código de Processo Civil, que também trata da Mediação, começou a vigorar com toda força. Por serem recentes, ainda não houve...
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terça-feira, 26 de abril de 2016

É possível uma responsabilidade civil sem dano? (II)

Por Em um de seus contos ficcionais mais conhecidos, The Minority Report, Philip K. Dick fala do desenvolvimento de um programa que permitiria a abolição do sistema criminal como nós o conhecemos, quer dizer, por meio de penas que somente são aplicadas após o cometimento do delito. Por meio de mutantes com capacidade extrassensorial para predizer o futuro, engendra-se essa forma distinta de combate à criminalidade. A repressão a posteriori cede lugar à punições baseadas numa espécie de prevenção ex ante, com a prisão do autor do crime momentos antes de seu eventual cometimento. A responsabilidade civil sem danos chega bem próximo disso. Por sinal, impressiona a coincidência entre a fundamentação dada pelo autor do revolucionário projeto naquela obra e aquelas que são usadas pelos fautores desta. São praticamente as mesmas: a falta de eficácia de um sistema que mais se preocupa em sancionar que evitar [1].

Deixando de lado a ficção científica, as primeiras ideais sobre o tema foram feitas na França pelas professoras Mathilde Boutonnet e de Catherine Thibierge. Aparentemente, o primeiro artigo a falar expressamente da necessidade de revisão das bases estruturais da responsabilidade civil foi o de Catherine Thibierge, professora da Faculdade de Direito de Orléans, na Revue Trimestrielle de Droit Civil, sob o título Libre propos sur l'évolution du droit de la responsabilité vers un élargissement de la fonction de la responsabilité[2]. Tomando por base uma acepção jurídica da palavraresponsabilidade, que se considera voltada para a reparação dos danos causados no passado e, por isso mesmo, bastante restrita, postula seu alargamento por meio de uma revisitação filosófica de seus conceitos e fundamentos. Para isso, se serve do pensamento de influentes pensadores da atualidade como Hans Jonas e Paul Ricoeur.

O trabalho utiliza um recurso literário interessante: fantasia uma diálogo com Cândido, de Voltaire. Em dado momento, ressalta-se que aresponsabilidade civil tem sido voltada apenas para a compensação, ou reparação dos danos. É quando ela recebe uma severa reprimenda da personagem imaginária: "Como se deixa que teu direito utilize o termo 'responsabilidade' num sentido tão limitado? Não te desconforta ver assim reduzido um tão belo atributo da condição humana?"[3]. Então, passa-se a propor a divisão que é uma constante nas formulações dos teóricos da responsabilidade sem dano: a cisão da responsabilidade civil em duas: uma preventiva e outra repressiva, ou, como é comum na linguagem dos autores franceses, curativa.

Não há propriamente uma recusa ao modelos tradicional de responsabilidade (curativa) e que concebe sanções retributivas, sejam compensatórias, sejam punitivas, as quais pressupõem, de todo modo, uma efetiva lesão a um bem juridicamente protegido. Nada obstante, ao lado dela, visando fazer frente à gestão dos novos danos (deles tratamos na coluna passada), a professora viria a propor que a responsabilidade civil também fosse um campo aberto à adoção de medidas de antecipação e prevenção aos danos.

Contudo, ao meu sentir, o trabalho mais sistêmico sobre a questão foi o produzido por Cyril Sintez a partir da distinção existente no Direito francês entre danos e prejuízos. O trabalho faz, inicialmente, sutis — mas ao mesmo tempo geniais — distinções vernaculares entre dano, violação factual, prejuízo e consequência jurídica, considerando, porém, que todos esses conceitos estariam sob jungidos pelo regramento da responsabilidade civil. Contudo, como cada qual estaria a necessitar de um adequado enfrentamento pelo Direito, passa a divisar a possibilidade de existirem sanções preventivas a serem adotadas antes mesmo da ocorrência do dano e de consequências materiais[4]. Apoiado nessa premissa, Cyril Sintez, então, constrói a sua tipologia de sanções no âmbito da responsabilidade civil, a saber: a) sanções anteriores ao dano; b) sanções concomitantes ao dano; c) sanções posteriores ao dano. Obviamente, interessam-nos as duas primeiras.

Antes da realização do fato danoso, como evidenciam as situações de ameaça à vida privada, a sanção deve ser dada para antecipar-se à realização mesma do dano, ainda que o risco não seja de todo conhecido considerando-se o chamado estado da arte. Aqui é expressa a referência ao princípio precautório, que outorga o derradeiro fundamento normativo para as conclusões apresentadas por Cyril Sintez. "Assim, antes da realização do fato danoso, as manifestações preventivas da responsabilidade civil se realizam, seja por meio de medidas preventivas de antecipação do risco conhecido, seja por meio de medidas de precaução"[5].

Além disso, no curso da realização do fato danoso também seria possível a existência de sanções sem a existência completa de dano, considerando-se que fato pode produzir turbação com consequências jurídicas mais concretas, sem, contudo, apresentarem características de um fato danoso ressarcível. As sanções, aqui, também se fazem pelos atos materiais e demais providências sub-rogatórias, destinadas à sua cessação. É o caso já conhecido no Direito Civil do uso nocivo da propriedade e sua relação com os demais direitos de vizinhança[6].

A existência de uma ação de responsabilidade civil chega a ser defendida ainda, se bem que de modo menos contundente, por Geneviève Viney e Patrice Jourdain. As prestigiadas autoras ressaltam que, em princípio, a ideia de reparação é que domina o direito da responsabilidade civil. Nada obstante, existiriam certas formas de dano como, por exemplo, as decorrentes do uso nocivo da propriedade, da concorrência desleal, das ameaças aos direitos reais e aos direitos da personalidade, que tornariam insuficientes as "simples" medidas de reparação ao dano[7].

A reparação do dano já não mais constituiria o objeto responsabilidade civil. Ela agora se destinaria também a evitá-lo No entanto, se é verdade que nada não é tão ruim que não possa piorar, houve quem passasse a defender um modelo ainda mais extremado de responsabilidade (sem dano): uma que se basearia na própria conduta, como acontece no Direito Público. Essa reconfiguração ainda mais radical da Responsabilidade Civil e suas desconcertantes proposições, para dizer o mínimo, examinaremos na próxima coluna.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFMG).


[1] "With the aid of our precog mutants, you've boldly and successfully abolished the post-crime punitive system of jails and fines. As we all realize, punishment was never much of a deterrent, and could scarcely affordedcomfort to a victim already dead." (DICK, Philip K. The minority report and other classics stories. New York: Citadel Press Books, 2002, p. 72).
[2] THIBIERGE, Catherine. Libre propos sur l'évolution du droit de la responsabilité vers un élargissement de la fonction de la responsabilité.Revue Trimestrielle de Droit Civil, Paris, nº 3, jul./set. 1999.
[3] "Comment se fait-il que ton droit utilise le terme 'responsabilité' dans un sens si limité ? Cela ne te gêne pas de voir de voir ainsi réduit un si bel attribut de l'humaine condition?" (Idem, p. 562).
[4] SINTEZ, Cyril. La sanction préventive en droit de la responsabilité civile : contribution à la theorie de l'interprétation et de la meise en effet des normes. Paris: Dalloz, 2011.
[5] No original: "Ainsi, avant la réalisation du fait dommageable, les manifestations préventives de la responsabilité civile se soldent soit en mesures préventives d'anticipation du risque connu soit en mesures de precaution." (Idem, p. 451).
[6] Idem, p. 451.
[7] VINEY; Geneviève; JOURDAIN, Patrice. Traité de droit civil: les effets de la responsabilité. 2. ed. Paris: LGDJ, 2001, p. 18.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Law Graduate Gets Her Day in Court, Suing Law School

retirado de http://www.nytimes.com/2016/03/07/business/dealbook/court-to-hear-suit-accusing-law-school-of-inflating-job-data.html

Nearly a decade has passed since an aspiring young lawyer in California, Anna Alaburda, graduated in the top tier of her class, passed the state bar exam and set out to use the law degree she had spent about $150,000 to acquire.

But on Monday, in a San Diego courtroom, she will tell a story that has become all too familiar among law students in the United States: Since graduating from the Thomas Jefferson School of Law in 2008, she has yet to find a full-time salaried job as a lawyer.

From there, though, her story has taken an unusual twist: Ms. Alaburda, 37, is the first former law student whose case against a law school, charging that it inflated the employment data for its graduates as a way to lure students to enroll, will go to trial.

[ Update: Ms. Alaburda lost her case on March 24. A jury voted nine to three to reject her claims. ]

Other disgruntled students have tried to do the same. In the last several years, 15 lawsuits have sought to hold various law schools accountable for publicly listing information critics say was used to pump up alumni job numbers by counting part-time waitress and other similar, full-time jobs as employment. Only one suit besides Ms. Alaburda's remains active.

None of the other cases reached trial because judges in Illinois, Michigan and New York, where several cases were filed, generally concluded that law students had opted for legal education at their own peril, and were sophisticated enough to have known that employment as a lawyer was not guaranteed.

But a California judge let Ms. Alaburda's suit proceed, brushing aside efforts by the law school to derail her claims.

"It has taken five years," said her lawyer, Brian A. Procel of Los Angeles. "But this will be the first time a law school will be on trial to defend its public employment figures."

Continue reading the main story

Ms. Alaburda's day in court will take on added meaning: These will be her first public words after years of silence while she pursued a remedy for a legal education gone wrong.

She now has student debt of $170,000, with loan interest around 8 percent. Her law degree was not a ticket to a stable, well-paying career, but an expensive detour before she went on to work in a series of part-time positions, mostly temporary jobs reviewing documents for law firms.

As her debt mounted and her job prospects faltered, she filed a lawsuit in 2011, arguing that she would not have enrolled at Thomas Jefferson if she had known the law school's statistics were misleading.

Thomas Jefferson's average student indebtedness, then about $137,000 — higher than that at Stanford Law School the same year — was among the highest in the nation. She also pointed to her school's bar passage rate as consistently lower than 50 percent, which was below the average in California.

Thomas Jefferson, like other accused law schools, maintained that it filed only the data that the American Bar Association's accrediting body required.

And judges largely agreed. Students would have to be "wearing blinders" not to see that a "goodly number of law school graduates toil (perhaps part time) in drudgery or have less than hugely successful careers," Justice Melvin L. Schweitzer of New York Supreme Court wrote in 2012, dismissing a lawsuit by nine former students against New York Law School.

The nine had asked for $225 million in damages, on grounds that they had been misled by the school's stated employment figures to believe they had rosier employment prospects than the job market actually offered.

The one lawsuit still pending, other than Ms. Alaburda's, accuses Widener University School of Law, in Delaware, of posting employment data that included "any kind of job, no matter how unrelated to law." A Federal District Court judge denied the case class-action status, and that decision is on appeal.

Judges in California, which has strong consumer protection laws, have offered more solace to the generation of lawyers who lost out in the legal market, allowing Ms. Alaburda and other plaintiffs there to go forward with claims.

However, in two cases — one against Golden Gate University School of Law and the other against the University of San Francisco School of Law — judges did not grant law graduates suing the schools class-action certification, which could have led to higher damages awards. The students later dropped their lawsuits.

In San Diego, Judge Joel M. Pressman restricted Ms. Alaburda's claims to her own situation. But he ruled against the law school's efforts to get her suit tossed out, on grounds that denying transparent and accurate information to students making decisions about their education can be harmful.

Thomas Jefferson, which was fully accredited by the A.B.A. in 2001, says its employment data is accurate and Ms. Alaburda's claims are "meritless." The school has 434 full-time students at its eight-story building in downtown San Diego.

Thomas F. Guernsey, the dean, said he could not comment on continuing litigation but noted in a statement that the school had "a strong track record of producing successful graduates, with 7,000 alumni working nationally and internationally."

In recent years, the A.B.A., prodded by widespread attention to questionable school data, sagging numbers of law school applicants and skyrocketing law school debt, has revamped its reporting requirements so that law schools must reveal more precise information about their graduates.

"Transparency has substantially increased in the last few years. Students can now easily compare law school outcomes," said Brian Z. Tamanaha, a law professor at Washington University in St. Louis and the author of "Failing Law Schools."

Even so, he noted that "it's still a little harder for them to determine that the size of the law firm where graduates are employed also reflects the level of income that they can expect."

Law schools labor to keep their employment data at the highest percentage level because it is a major factor in national law school rankings, which in turn give schools the credibility to charge six figures for a three-year legal education.

Fudging the numbers, as Mr. Procel plans to argue in the case against Thomas Jefferson, entices students to choose an education that can result in lifelong debt that cannot be easily discharged even in bankruptcy.

Even as legal hiring dropped in 2011, according to Mr. Procel, Thomas Jefferson stated that 92.1 percent of its graduates were working at full-time jobs. That was a major increase from the 83 percent graduate employment the school claimed during the prosperous years of 2006 and 2007. But even in 2006, according to testimony expected at trial, a former school employee says she was pressured into inflating graduate employment data.

Thomas Jefferson's lawyers will argue that Ms. Alaburda never incurred any actual injury, because she was offered — and turned down — a law firm job with a $60,000 salary shortly after she graduated.

Ms. Alaburda said, in legal papers, that she received "only one job offer — one which was less favorable than non-law-related jobs that were available" — after she sent her résumé to more than 150 law firms and practicing lawyers. She is asking $125,000 in damages.

Correction: March 6, 2016
An earlier version of this article misstated the amount that Anna Alaburda is seeking in damages in her lawsuit against the Thomas Jefferson School of Law. She is seeking $125,000, not the $50 million she sought when she was pursuing the matter as a class action.
Correction: March 9, 2016

An article on Monday about a lawyer's suit against the law school from which she graduated, accusing it of inflating the employment record of its graduates, misstated the name of an institution sued in a similar case that was dismissed by the New York Supreme Court. It is New York Law School, not New York School of Law.

Income-Based Repayment Plans are a fraud on college students: Reflections on Paul Campos' analysis of IBRs

Don't Go To Law School (Unless), Paul Campos' excellent book on the economics of legal education, was published in 2012, and I am embarrassed to say I did not read it until this week. Campos delivered a devastating critique of American law schools, which have charged insanely high tuition for turning out more lawyers than the nation needs. No one should make a decision to go to law school without reading Campos' book, along with the recent report on law-school admissions standards put out by the public interest group Law School Transparency.

Even people who don't plan to go to law school should read Campos' book, because his indictment of legal education also applies to higher education in general. All over the United States, colleges have jacked up their tuition, forcing their students to borrow more and more money. It is now apparent that millions of students are saddled with unmanageable student-loan debt.

To keep the gravy train rolling, higher education's insiders now back long-term income-based repayment plans (IBRs) that lower borrowers' monthly loan payments but extend the repayment time to as long as 25 years. Policy think tanks like the Brookings Institution, the Obama administration, and the New York Times have all backed IBRs.

Let's look at what Paul Campos had to say about IBRs in Don't Go To Law School (Unless).  (Campos also criticizes public service loan forgiveness plans (PSLFs), but I will not comment on PSLFs in this essay).

"The truth is," Campos wrote, "that people who are likely to end up in IBR . . . if they go to law school should not go at all" (48).  People who participate in these long-term repayment plans will generally be making payments so low that they don't cover accumulated interest, which means that many debtors will never pay off their loans. Moreover, Campos notes, under current IRS regulations, any debt that is forgiven at the end of a long-term repayment plan is considered taxable income.

Campos trenchantly pointed out that IBRs are simply a way to prop up the law schools' broken business model:
When law schools push the supposed benefits of IBR . . . to prospective students, what they're really doing is advertising that they're operating under a business model that doesn't work unless it is subsidized heavily at both ends by the American taxpayer. Law school is subsidized on the front end by federal educational loans, which allow students to borrow money they won't be able to pay back, and by IBR  . . on the back end, which allows graduates to have the "privilege" of being in debt servitude to the U.S. government for ten or, more likely, twenty-five years, with the added bonus of being hit by a huge tax bill at the end of it all. (51)
Indeed, Camps suggests that law schools that push the benefits of IBRs are engaging in unethical behavior. "Given that the American taxpayer will be left holding the bag for all the unpaid debt accrued by law graduates in these programs, there's a good argument to be made that law schools who promote IBR are participating in a fraud on the public" (50) (my emphasis).

Every criticism Campos raised about IBRs as a means of financing legal education applies to higher education in general. Twenty-five year repayment plans (or even the less onerous 20-year repayment plan developed by the Obama administration) force students to pay a percentage of their income to the federal government for the majority of their working lives.

These long-term repayment plans demonstrate the intellectual vacuity of our higher education community. In their desperate effort to maintain the status quo, colleges and universities are throwing their students under the bus.  Rather than change their business model, they raise their tuition rates every year and soothingly assure their students not to worry---they will have 25 years instead of 10 to pay off their student loans.

terça-feira, 19 de abril de 2016

O novo sistema de (in)capacidades e a atuação do MP na curatela


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O novel Estatuto da Pessoa com Deficiência, instituído pela Lei 13.146/15, que entrou em vigor no dia 2 de janeiro de 2016, modificou dispositivos do Código Civil que tratavam da capacidade civil. Seus artigos 114 e 123, inciso II revogaram os incisos do artigo 3º do CC e alteraram seu caput, como também modificaram os incisos II e III do artigo 4º do CC.

Agora, apenas as pessoas menores de 16 anos são absolutamente incapazes, sendo considerados relativamente incapazes as pessoas entre 16 e 18 anos, os pródigos, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos e aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade.

Há os que defendem que tal alteração, ao excluir os deficientes mentais ou intelectuais, que não possuem discernimento para os atos da vida civil, do rol que enumera as pessoas absolutamente incapazes, teve a intenção de considerá-los relativamente incapazes, desde que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade (artigo 4º, III, do CC).

Realmente, como já visto, o artigo 3º do Código Civil, agora com a nova redação, estabelece como absolutamente incapazes os menores de 16 anos, nada esclarecendo sobre aquelas pessoas maiores de 18 e que, por doença ou qualquer distúrbio, não possuem discernimento necessário para a prática dos atos civis. Foram excluídas daquele rol, portanto, as pessoas com enfermidade ou deficiência mental.

Assim, como ficaria a curatela ou a interdição dessas pessoas? Há quem afirme que a interdição restou revogada, subsistindo o instituto somente como curatela, restrito a um novo sistema de limitações ao seu exercício. Permanecem as dúvidas: essas pessoas deixaram de ser consideradas incapazes? Restou extinta a interdição para essas pessoas?

Em primeiro lugar, há que se atentar que o estatuto é voltado para aquelas pessoas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual e sensorial.

Como se pode notar, o artigo 84 do Estatuto da Pessoa com Deficiência deixou de prever expressamente a interdição, submetendo a pessoa com deficiência ao regime da curatela, restrita apenas aos atos de caráter negocial e patrimonial. Com o advento do estatuto, houve, inicialmente, alteração na redação dos artigos 1.768, 1.769, 1.771 e 1.772 do Código Civil, que tiveram o vocábulo "interdição" substituído por "curatela". Posteriormente, houve revogação dos artigos 1.768 a 1.773 do CC com a entrada em vigor do novo CPC, que passou a tratar da matéria nos artigos 747 a 763. Embora o novo CPC ainda faça alusão à "interdição", trata-se de expressão que deve ser abandonada, haja vista a existência de um estatuto todo voltado especificamente para a pessoa com deficiência e que teve o especial cuidado de abolir aquela expressão. Restou também revogada a curatela da pessoa enferma ou com deficiência física, prevista no extinto artigo 1.780 do CC, remanescendo, no entanto, a curatela do nascituro (artigo 1.779).

Analisando a questão sobre a provável extinção da interdição, que seria um instituto mais amplo, percebe-se que o estatuto estabelece a possibilidade de dar-se curatela à pessoa com deficiência que não tenha condições de se autodeterminar (artigo 84, parágrafo 1º), como as pessoas com deficiência mental ou intelectual com dificuldade ou impossibilidade de discernimento. Esse dispositivo deve ser harmonizado com o artigo 4º, III, do CC.

Na realidade, a curatela é o instrumento pelo qual a pessoa que não possui discernimento possa exercer sua capacidade civil em sua plenitude por faltar-lhe a capacidade intelectual de fato.

Procurou-se, portanto, evitar os termos "incapacidade" e interdição", que geravam estigma desnecessário às pessoas com deficiência mental ou intelectual, pois toda pessoa é capaz e suscetível de direitos, podendo ser suprida sua incapacidade intelectual de fato por meio da curatela. A interdição, como medida de proibição do exercício de direitos, não se mostra consentânea com a atual tendência de modernização das normas, que vem buscando a inclusão de todas essas pessoas e a busca da autonomia da vontade por elas. Preferiu-se o termo "curatela", destinado à proteção da pessoa e à prática de determinados atos, que devem se restringir aos patrimoniais e negociais.

É uma mudança de paradigma que tem por finalidade precípua a inclusão da pessoa com deficiência na sociedade, propiciando a ela a prática dos atos da vida, como casamento, sexo, filhos, e de trabalho. Portanto, a curatela somente se dará de forma excepcional e fundamentada e deverá ser proporcional às necessidades e circunstâncias de cada caso, devendo durar o menor tempo possível.

Buscou-se ajustar o sistema à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, do qual o Brasil é signatário, aqui promulgada pelo Decreto 6.949/09, que determina que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal para todos os aspectos da vida, cabendo ao Estado assegurar que essas pessoas não sejam arbitrariamente destituídas de seus bens (artigo 12).

Portanto, a nova lei nada mais fez do que abandonar a presunção inicial de incapacidade civil absoluta das pessoas com deficiência mental ou intelectual, como o fazia dispositivo alterado (artigo 3º do CC), deixando essa incumbência ao alvitre do magistrado, o qual delimitará os atos que poderão ser praticados pela pessoa, além de exercer controle periódico da curatela.

Como novidades, vislumbra-se a possibilidade de compartilhamento da curatela a mais de uma pessoa, assim como se criou o instituto da tomada de decisão apoiada. Este último parece mais apropriado às pessoas com transtorno mental — que em regra possuem a capacidade intelectual adequada, mas apresentam limitações para interagir com seu meio —, possibilitando a criação de uma rede de pessoas de confiança do curatelado para assisti-lo nos atos da vida.

Restaram elencados no novo Código de Processo Civil, como legitimados para a propositura da curatela: a) o cônjuge ou companheiro; b) os parentes ou tutores; c) o representante da entidade em que se encontra abrigado o interditando; d) o Ministério Público (artigo 747).

Por seu turno, o rol das pessoas que poderão ser nomeadas curadoras segue previsto no Código Civil: a) cônjuge ou companheiro, não separado judicialmente ou de fato; b) na falta daqueles, o pai ou a mãe; c) na falta destes, o descendente que se demonstrar mais apto; d) entre os descendentes, os mais próximos precedem aos mais remotos; e) na falta das pessoas mencionadas neste artigo, compete ao juiz a escolha do curador (nos termos do artigo 1.775 do CC).

Há que se distinguir, portanto, entre pessoas legitimadas à propositura da curatela e aquelas que podem ser nomeadas curadoras, embora a pessoa legitimada também possa ser nomeada curadora.

O artigo 748 do novo CPC passou a estabelecer que o Ministério Público só promoverá interdição em caso de doença mental grave: a) se as pessoas designadas nos incisos I, II e III do artigo 747 não existirem ou não promoverem a interdição; e b) se, existindo, forem incapazes as pessoas mencionadas nos incisos I e II do artigo 747.

Restou excluída, a bem do entendimento jurisprudencial predominante, a previsão no CPC revogado de que o Ministério Público representará o interditando no procedimento quando não for o requerente, sendo-lhe dado curador especial, função a ser exercida pela Defensoria Pública (artigo 72, parágrafo único, novo CPC), se o mesmo não constituir advogado.

Quanto aos limites da curatela, sempre se considerou que a interdição poderia ser total ou parcial. Essa era a regra insculpida no artigo 1.772 do CC, em sua redação original, também revogada pelo artigo 1.072, inciso II, do novo CPC. Agora, o juiz concederá a curatela e indicará os atos para os quais a mesma será necessária, não havendo mais que se falar em curatela parcial ou total. Assim, nos termos do artigo 755 do novo CPC, o juiz nomeará curador e fixará expressamente os limites da curatela, não podendo mais declarar genericamente que esta será total ou parcial, até mesmo porque a incapacidade absoluta agora se restringe aos menores de 16 anos.

Em resumo, o tema passou a ser disciplinado tanto no Estatuto da Pessoa com Deficiência como no novo CPC, permanecendo ainda dispositivos no CC. Há uma pitada de Direito Material e de Direito Processual em cada um desses diplomas legais, o que poderá gerar alguma confusão sobre a prevalência de outra legislação. No entanto, houve reconhecidamente avanço no trato da matéria, e somente o tempo poderá sedimentar as questões que venham a se apresentar (por exemplo, se haverá necessidade de revisão das sentenças anteriormente proferidas) e consolidar o melhor entendimento que o tema merece.

É possível uma responsabilidade civil sem dano? (I)

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Dizia-se com absoluta tranquilidade até certo tempo atrás: sem um dano, ninguém é civilmente responsável. De fato, dano e responsabilidade civil sempre foram postos sob uma perspectiva lógica de causa e consequência. Por sinal, tomando de empréstimo a teoria das quatro causas de Aristóteles, pode-se perfeitamente afirmar que o dano é a própria causa material da responsabilidade civil. Alguém ousava discordar? Justamente na França, cujo famoso Code Civil de 1804 foi o primeiro a entabular essa verdadeira regula [1] para o direito moderno, houve quem começasse, sim, a fazê-lo. O mais interessante: a ideia ganhou força, avançando teórica e doutrinariamente em vários rincões da Europa e fora dela. De lá chegou até aqui sob a já conhecida expressão responsabilidade civil sem dano.

Tendo tratado desse assunto, pois a simples contradição de termos que o envolve o converte em desafio, dou inicio hoje às minhas contribuições à coluna Direito Civil Atual, coordenada pela Rede de Direito Civil Contemporâneo, com o objetivo de dividir as considerações que já tenho feito sobre o tema, agora, nesse seleto espaço. Agradeço, portanto, aos ministros Luís Felipe Salomão, Antonio Carlos Ferreira e Humberto Martins, que, ao lado dos professores Ignacio Poveda, Otavio Luiz Rodrigues Junior, José Antonio Peres Gediel, Rodrigo Xavier Leonardo e Rafael Peteffi da Silva, coordenam esta coluna eletrônica.

Vejamos, então, o que realmente propõe essa nova doutrina, que surge na forma de Shiva ao prometer, com seu fogo regenerador, a refundação das próprias bases teóricas da responsabilidade civil para o mundo contemporâneo. Antecipo, contudo, que minha posição é francamente contrária a qualquer forma de responsabilidade civil sem dano. Pretendo, assim, refutar e não defender o argumento.

Há, de todo modo, algo bastante positivo nessa pretendida revisão copernicana da responsabilidade civil: chamar a atenção para a hipertrofia dos danos na atualidade e, com isso, fornecer instrumentos jurídicos aptos a controlar sua expansão. É que a ideia de uma responsabilidade sem dano foi motivada fundamentalmente pelo exponencial crescimento deles nas últimas décadas. A isso deve ser somado o aumento também de sua potencialidade lesiva, tornando a vida humana, em suas várias dimensões, presa dos incontáveis riscos.

Não é de hoje, com efeito, que o alargamento dos danos costuma preocupar os teóricos da responsabilidade civil. A evolução do sistema subjetivo para o objetivo, que teve lugar entre o final do Século XIX e começo do XX, em última análise, decorreu também da percepção de sua ocorrência cada vez mais frequente. Expansão a que se associa ainda o problema dos danos ditos anônimos, ou seja, o fato de que as lesões, desde a Revolução Industrial, passaram a ser produzidas não tanto pelo homem e sim pelas máquinas. [2] Essa situação foi agravada com a Revolução Tecnológica que lhe seguiu. Temos, agora, danos ainda mais complexos e insidiosos, como aqueles inerentes às questões ambientais.[3]

Por sinal, foram eles, os danos contra a natureza, que chamaram a atenção para a debacle das estruturas tradicionais de gestão dos riscos. Diante da evidência de que excedem os níveis de interesse pessoal e local, atingindo na maioria das vezes o coletivo, o transfronteiriço e o intergeracional, logo observou-se que as estruturas jurídicas ditas tradicionais não mais conseguiriam impedir a ocorrência do dano ambiental. Essa perda de compasso com a realidade — mais uma evidência de que os fatos andam sempre à frente do Direito — foi descrita por Ulrich Beck. A sociedade de risco (Risikogesellschaft) teorizada pelo sociólogo alemão recentemente falecido colocava em evidência o fato de que os perigos produzidos pela civilização contemporânea não podiam mais ser definidos no espaço ou no tempo: o risco é inevitável, globalizado, umbilicalmente ligado ao nosso modo atual de vida. De consequência, seu gerenciamento, considerando o modelo atual de causa e efeito passou a ser visto como obsoleto.

Nesse cenário, dois instrumentos passaram a protagonizar a gestão dos "novos danos", a saber, os já bem conhecidos princípios da prevenção e da precaução. Ambos estabelecem mecanismos voltados ao evitar e não ao reparar, mas a ideia de precaução é particularmente mais ampla. A precaução como princípio surge na Alemanha (Vorsorgeprinzip). Vorsorge vem a ser mais do que um simples "dever de cuidado" (sorgfaltspflicht). Ele estabeleceu, assim, um paradigma novo para dar uma proteção ex ante, a interesses de ordem coletiva ou futuros. Um "simples" perigo, ainda que sem provas científicas conclusivas, já estaria a autorizar a adoção de medidas jurídicas para impedir que o próprio dano deixe de acontecer.

Estavam postas, assim, as bases para a criação de um modelo de responsabilidade civil diferente (?). O inédito grau de lesividade, que nos faz vítimas quotidianas de incontáveis fatores de risco, estaria a impor uma radical mudança na noção mesma de responsabilidade (?). A responsabilidade civil não poderia mais ficar limitada à ideia de uma reprimenda a posteriori na forma de reparação civil (?). Sim, foi o que começaram a responder certos autores. Seria imperioso, disseram, que a responsabilidade passasse a disciplinar ex ante os próprios eventos danosos, de forma a preveni-los e não apenas ressarci-los.

Surgia então um modelo de responsabilidade civil diferente, no qual a ameaça de uma dano já permitiria a aplicação de sanções jurídicas que passariam a ser por ela abrangidos. A questão é que tal proposta viria a desconfigura-la, deixando-a irreconhecível. Além de inúmeros inconvenientes práticos, aceita-la significaria na prática refundar ontologicamente essa tradicional disciplina, fazendo incluir nela elementos que histórica e epistemologicamente sempre lhe foram excluídos de maneira reiterada. Uma colchas de retalhos, mais próxima do monstro de Mary Shelley que propriamente desse que é reconhecidamente um dos mais belos e ricos campos do conhecimento jurídico. Disso falaremos melhor na colunas que se seguirão.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFMG).


1 A expressão regula, aqui, é empregada em seu sentido romanista, porém, claro, mais de modo provocativo do que em sentido estrito. Regula, sabemos, era um princípio cardial enunciado nas fontes por meio de uma fórmula curta, mas com força vinculativa inclusive. No conhecido fragmento que Paulo atribui a Sabino (D.50.17.1): "Regula est, quae rem quae est breviter enarrat. Non ex regula ius sumatur, sed ex iure quod est regula fiat." O que quero dizer, sempre de modo provocativo, repito, foi que os arts. 1382 e 1383 do Código francês veicularam esse princípio cardial da responsabilidade civil e que, por lá, costuma-se anunciar, geralmente, em termos de san dommage subi par la victime, il n'y a pas de responsabilité.

2 O sarcasmo de Lawrence Friedman é invencível no ponto: "A Revolução Industrial adicionou um aumento apavorante nessa dimensão. As novas máquinas tinham uma maravilhosa e sem precedente capacidade para esmagar o corpo humano. As fábricas manufaturavam lesões e logo mortes tanto quanto seus produtos ordinários. Os negócios estavam rendendo lucros; isso era um tentador e lógico fundo por meio do qual os mortos e os lesionados, e suas familias, poderiam ser compensados." (FRIEDMAN, Lawrence M. Simon. A history of american law. New York: Simon & Schuster, 2005, p. 350).

3 Anderson et alli v. Pacific Gas & Eletric demonstrou como podem ser lentas e ao mesmo tempo fatais as consequências da exposição a agentes químicos produzidos como refugo ou como insumo para a indústria. No caso específico, a contaminação pelo cromo hexavalente demoraria vinte anos para ser descoberta e ensejar a demanda indenizatória, já havendo muitas das vítimas sucumbido aos seus efeitos. O caso ficou famoso mundialmente após virar filme.

domingo, 17 de abril de 2016

Como se produz um jurista? O modelo neozelandês (parte 42)


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1. A terra da grande nuvem branca
Em uma fria noite, no deserto do Norte da África, o temido general alemão Erwin Rommel enfrentou a derrota definitiva em El Alamein, uma cidade mediterrânea do Egito. As invictas forças alemãs conheceram a derrota em um território no qual haviam feito sua fama. Após a Segunda Batalha de El Alamein, que durou 10 dias entre fins de outubro e início de novembro de 1942, Winston Churchill pronunciou a célebre frase: "Antes de Alamein, nunca tivemos uma vitória, depois de Alamein, nunca tivemos uma derrota".

O clímax da batalha, quando a sorte alemã foi definitivamente quebrada, ocorreu em uma madrugada, quando Montgomery, o comandante britânico, ordenou que os neozelandeses calassem baionetas e dirigissem um ataque suicida contra os tanques alemães. A infantaria da Nova Zelândia, um domínio do Império britânico na distante Oceania, atacou seus oponentes em meio à noite, à areia e ao deserto com a fúria de lobos e o destemor de insanos. Era uma massa de homens, com antiquados capacetes de ferro, que lembravam aqueles usados pelos ingleses na Guerra das Duas Rosas, de bermudas cáqui, que surgiam do nada como fantasmas. Em uma cena que mereceria ter sido escrita por Shakespeare, eles conseguiram o impossível e viraram a maré da batalha, para surpresa dos alemães.

Esse pequeno episódio não deveria causar surpresas. Desde a Guerra dos Bôeres, no final do século XIX, soldados da Nova Zelândia têm sido voluntários na defesa de sua antiga metrópole. Nas trincheiras da frente ocidental ou no massacre de Galípoli, na costa turca, havia neozelandeses a morrer na 1ª Guerra Mundial. No conflito de 1939-1945, a mesma lealdade se revelou.

Na verdade, aqueles neozelandeses eram filhos e netos dos colonizadores britânicos que ocuparam o arquipélago que os aborígenes chamavam poeticamente de "a terra da grande nuvem branca". Os primeiros europeus a chegarem às ilhas foram os holandeses, no ano de 1645. Em honra da província calvinista da Zelândia, a mais ocidental do Reino Unido dos Países Baixos, as ilhas foram batizadas de Zeeland.

Pouco interessantes para os holandeses, que estavam mais animados com o comércio com o Japão e a ocupação da Batávia (atual Indonésia), as ilhas foram mapeadas, no final do século XVIII, pelo britânico James Cook, atraindo a curiosidade de seus compatriotas pelo território. No entanto, somente no século XIX é que a Nova Zelândia seria ocupada por exploradores do Reino Unido, precedidos de missionários anglicanos, caçadores de baleias e marinheiros.

Rapidamente, as ilhas obtiveram autogoverno, que se consolidou no início do século XX com o Estatuto de Westminster, e, após a 2ª Guerra Mundial, a Nova Zelândia consolidou seu status de um membro da Comunidade Britânica de Nações, tendo a rainha Elizabeth II como chefe de Estado e sucessivos governos parlamentares democráticos, que se alternam, à moda da antiga metrópole, entre os partidos conservador e trabalhista.

Com um produto interno bruto de US$ 201.028 bilhões (valores de 2014) e uma população de 4.414.400 habitantes (números de 2011), a Nova Zelândia tem o nono melhor índice de desenvolvimento humano do mundo e a 24ª renda per capita mais elevada do planeta. Sua economia é baseada no extrativismo e na agropecuária, com exportação de lã, derivados bovinos, ouro, vinho e petróleo.

Problemas de identidade com as reivindicações da população aborígene, os maoris, tornaram-se relevantes nos últimos 30 anos. O incremento da imigração asiática também coloca em xeque a antiga consciência de unidade étnica de uma população majoritariamente europeia. Da antiga cooperação militar com a metrópole, os neozelandeses ligaram-se a seus vizinhos australianos e contribuíram com os norte-americanos nas guerras da Coreia, do Vietnã, do Golfo, do Iraque e do Afeganistão.

2. Instituições político-jurídicas
A influência das instituições britânicas, no entanto, faz-se muito forte até hoje na vida política e jurídica do país. A primeira legislatura parlamentar nacional data de 1853. No anos de 1890, ao tempo da 11ª legislatura, o bipartidarismo teve início, com as alternâncias entre liberais e unionistas. Após a crise econômica de 1929 e a grande depressão dos anos 1930, os trabalhistas chegaram ao poder em 1938 e passaram a dividir o espectro político com os nacionalistas (equivalentes aos conservadores britânicos). Hoje, os verdes aparecem como terceira força política, retirando parte dos votos do eleitorado trabalhista.

A monarquia permanece no cotidiano neozelandês por intermédio da figura do governador-geral, o lugar-tenente da rainha britânica, que atua em nome da monarca na chefia de Estado. Por uma dessas características britânicas tão peculiares, o atual ocupante do cargo é o general sir Jeremiah Mateparae, um neozelandês de origem maori. Um "rei" maori é o governador-geral da maioria europeia.

O governador-geral reúne-se com o primeiro-ministro no Conselho Executivo, do qual é o presidente e onde deve aconselhar o chefe de governo em sua atuação. O governador-geral pode convocar e dissolver o Parlamento, além de participar da cerimônia de abertura do ano legislativo, com a leitura da Fala do Trono, em substituição à rainha. Ele deve nomear e exonerar ministros, após sugestão do primeiro-ministro, e tem a função de acreditar os membros do corpo diplomático. Há duas décadas o movimento republicano luta para alterar as regras e permitir a eleição do governador-geral, como um primeiro passo para aclimatar a ideia de república entre os neozelandeses.

O gabinete é presidido pelo primeiro-ministro, cujos poderes constitucionais são definidos pelo costume, e não por regras escritas. A mais alta autoridade judicial do país é o ministro da Justiça, a quem compete definir as grandes linhas políticas do setor e a administração da atividade judiciária. Existe, ainda, um procurador-geral da Nova Zelândia, cujas funções se mesclam entre um advogado-geral e um procurador-geral, na linguagem do Direito brasileiro. Em muitos gabinetes, os dois cargos são acumulados por um só ministro.

Nominalmente independente, o Poder Judiciário da Nova Zelândia é muito próximo de seu congênere do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, com sua divisão em cortes regionais, locais e, após 2004, uma Suprema Corte. Os magistrados ainda usam as perucas e vestes talares encontráveis no Reino Unido, em alguns tipos de jurisdição.

Até 2004, a última instância recursal neozelandesa era o Comitê Judicial do Conselho Privado, em Londres. Após uma reforma constitucional ocorrida em 2003, o país criou sua Suprema Corte, no que se ajustou à reforma do Poder Judiciário ocorrida no Reino Unido, sob a administração trabalhista de Tony Blair.

3. Primeiras impressões sobre a formação jurídica neozelandesa  
A Nova Zelândia é, porventura, o país que melhor conservou as tradições metropolitanas em termos de instituições jurídico-políticas. Pode-se afirmar que muitos desses elementos já desaparecidos em Londres permanecem intactos em Auckland.

Em termos comparativos, a realidade neozelandesa é muito diferente da encontrada no Brasil. Há apenas seis faculdades de Direito em todo o país, a saber, as escolas vinculadas às universidades de Auckland, Waikato, Wellington, Canterbury e de Otago, além de um curso jurídico vinculado à Universidade Tecnológica de Auckland. 

Do século XIX até 1930, a formação dos juristas neozelandeses subordinava-se ao Poder Judiciário. Com o passar do tempo, a universidade assumiu paulatinamente essa função, o que terminou por se consolidar na instituição de um Conselho de Educação Jurídica, no ano de 1930, o qual era formado originalmente por dois juízes do Supremo Tribunal, dois representantes da Law Society neozelandesa e dois professores de Direito da antiga Universidade da Nova Zelândia[1].

No ano de 1961, as faculdades de Direito foram descentralizadas e, com isso, deu-se uma reformulação do Conselho de Educação Jurídica, que ganhou autonomia administrativa e nova composição: a) magistrados, representando o Poder Judiciário; b) advogados, representando a Law Society; e c) professores, representando as faculdades de Direito. Em 1982, incluiu-se um juiz de primeiro grau e um estudante de Direito. No ano de 1990, acresceu-se um leigo em Direito, indicado pelo Ministério da Justiça, como forma de exercer algum tipo de controle externo não corporativo.

Para além de funções regulatórias, que serão examinadas nas próximas colunas, o Conselho de Educação Jurídica define as diretrizes curriculares nacionais mínimas, o que foge do padrão europeu e aproxima-se do modelo brasileiro.

As profissões jurídicas não sofreram com oferta excessiva de vagas, e não se identificou uma degradação da imagem e da representação social de seus exercentes. O magistério superior jurídico é respeitado, mas não possui o mesmo prestígio de um magistrado ou de um grande advogado. Dá-se algo semelhante ao que ocorre no modelo inglês, que é centrado na figura do lord justice.  

***

Nas próximas colunas, seguiremos no exame dessa jovem e peculiar nação da Oceania. Tão distante e tão diferente da realidade brasileira — e, por isso, de interesse para estudos comparatísticos.


[1] Disponível em: http://www.austlii.edu.au/au/journals/ALRS/2011/5.html. Acesso em 12/4/2016.

sábado, 16 de abril de 2016

Como se produz um jurista? O modelo sul-africano (parte 41)




Por 

1. A docência na África do Sul: etnia e gênero
A carreira docente universitária na África do Sul tem passado por enormes transformações nos últimos 20 anos. A política de cotas está na base desse processo. Em muitas universidades, após a aposentadoria, um docente de origem africâner não será substituído por outro dessa etnia, e sim por um africano nativo ou por um colega de origem indiana. A representatividade étnica é hoje um fator preponderante na seleção de professores universitários.

Em termos estatísticos, essas mudanças ficam bem evidentes. Segundo dados de 2012, dentre os professores do sexo masculino, no último nível da carreira docente, têm-se 10% de africanos, 2,8% de mestiços, 3,9% de indianos e 57,6% de brancos. No nível de entrada da carreira, os números se invertem de modo sensível: 24,2% de africanos, 4,1% de mestiços, 0,6% de indianos e 13,3% de brancos[1].

Comparando-se os professores quanto ao gênero, no nível final da carreira, há 76% de homens e 24% de mulheres, ao passo em que, no nível inicial, são 56% do sexo masculino e 44% do sexo feminino[2].

Esses números podem ser lidos de duas formas. A primeira está em que há (ainda) um predomínio branco e masculino no ápice da carreira, o que revelaria uma preponderância desse grupo na escala de ascensão funcional. No entanto, dada a alteração radical nos níveis de ingresso, é também possível afirmar que esse cenário mudou na entrada para a docência e, a se permanecer assim, ao menos em termos vegetativos, nos próximos 20 anos, os postos de elite da universidade sul-africana serão ocupados por mais negros e mais mulheres. A reforçar essa segunda observação, está a já anotada definição de critérios que privilegiam os não brancos e as mulheres no processo de ascensão funcional.

2. A estrutura e remuneração da carreira docente
Na África do Sul, a carreira docente estrutura-se, do nível mais baixo para o nível mais alto, de junior lecturerlecturersenior lecturerassociated professor e professor. A correspondência com o Brasil não é tão simples. Oprofessor corresponde ao professor titular. O associated professor, a um professor associado, com mais tempo de carreira. O senior lecturer, a um professor associado sem tenure, algo que não tem correspondência exata no Brasil. O lecturer, a um professor doutor (ou professor adjunto, nas universidades federais). O junior lecturer seria um professor assistente.

O recrutamento dos professores é bem diferente do que se dá no Brasil. Publicam-se editais de chamada para inscrições (Academic Application) em formulário-padrão. Além de preencher o formulário, o candidato deve apresentar um currículo e uma carta de intenções. No edital, são especificadas a titulação mínima (doutorado para lecturer e cargos superiores) e as condições de trabalho (remuneração, existência de fundo de previdência e de seguro-saúde. No processo, há uma pré-seleção dos inscritos, com base na documentação apresentada. Em seguida, um membro externo à universidade emite um parecer, que será analisado pelo comitê designado para a seleção, uma espécie de banca examinadora. Reunidos os membros, após a análise do parecer sobre cada um dos candidatos, estes últimos são chamados a fazer uma apresentação de 20 minutos à banca, na qual se deverão apresentar, revelar suas linhas de pesquisa e quais seus objetivos futuros. Os examinadores podem questionar os candidatos. Após isso, far-se-á uma entrevista individual com os candidatos. A fase seguinte é uma investigação sobre a vida profissional e a produção do candidato, analisando-se seus dados funcionais e suas publicações. Finalmente, o comitê emite um parecer com a recomendação de contratação do candidato. Para professor, em algumas universidades, exige-se a publicação de um livro ou a comprovação de uma produção excepcional, o que é comprovado pela qualidade dos periódicos nos quais ele estampou seus trabalhos. 

A remuneração dos docentes é muito variável, conforme a instituição a qual estejam vinculados. Existe também uma política remuneratória que conjuga valores-base, bônus, valores de incentivo, benefícios indiretos (planos de saúde, telefone, seguros), o que torna o quadro bem mais complexo do que de outros países, embora mais próximo do que se encontra nos Estados Unidos ou no Reino Unido.

No ano de 2012, a remuneração média mensal dos professores nas universidades sul-africanas, de acordo com o nível de carreira, era a seguinte: a) professor – 64.299 rands (US$ 4.264,22; R$ 15.598,94); b)associated professor – 51.710 rands (US$ 3.429,33; R$ 12.544,85); c) senior lecturer – 43.797 rands (US$ 2.904,55; R$ 10.625,15); d) lecturer – 35.202 rands (US$ 2.334,55; R$ 8.540,01); e) junior lecturer – 25.529 rands (US$ 1.693,05; R$ 6.193,34)[3].

Na África do Sul, considerando-se todos os níveis de carreira, segundo dados de 2012, há 748 professores de Direito. A categoria com maior número de docentes universitários é formada pelo grupo Economia, Administração e Comércio (2.490), seguida por Medicina e outras áreas de saúde (1.482), educação (1.196) e engenharia (1.185). Os cursos com menor número de professores estão nas áreas de Ecologia Familiar e Ciências do Consumo (106), Arquitetura (268), Administração Pública (269) e Filosofia e Teologia (284)[4].

3. Representação social do docente jurídico
A docência jurídica ainda é muito respeitada na África do Sul. Os padrões remuneratórios são relativamente bons, e o número de professores, em termos comparativos com outras carreiras, é menor, o que garante a oferta de condições de trabalho melhores. A clivagem entre os níveis iniciais e finais da carreira, à semelhança do que se dá na Europa, é também nítida. É um quadro bem diferente do que se observa no Brasil, onde as hierarquias acadêmicas, com raras exceções, como é o caso da Universidade de São Paulo, ainda conservam forte caráter real e simbólico.

A participação dos juristas no processo de extinção do apartheid e o desenvolvimento de uma teoria "nacional" de direitos humanos, aliado ao papel desempenhado pela Corte Constitucional na história recente do país, são fatores que reforçam essa visão positiva da sociedade sobre os docentes jurídicos. A integração desses professores com centros de pesquisa mais avançados, especialmente Alemanha, Reino Unido e América do Norte, tem ajudado a manter a África do Sul como uma referência no Direito.

No entanto, esse quadro tem se transformado lentamente e é absolutamente necessário que essas constatações sejam consideradas em uma perspectiva de médio prazo, ao fim do qual, não é certo que elas se mantenham. A transformação da educação superior sul-africana, especialmente na área do Direito, precisa de uma avaliação em termos de série histórica mais prospectiva e ainda não é possível fazê-lo de modo seguro e com a oferta de elementos que imprimam no observador a convicção de que essa análise possa ser universalizada.

4. Conclusão
A educação jurídica sul-africana é a melhor do continente, seja em termos de percepção internacional, seja em termos de rankings acadêmicos. Não se pode negar, contudo, que esse modelo baseia-se em uma estrutura complexa, herdada dos colonizadores britânicos e do apartheid. Não é sem razão que hoje os movimentos estudantis contestem esse legado, por meio da retirada de estátuas e de nomes dos fundadores dessas instituições, muitas das quais nunca existiriam sem o aporte de generosos recursos desses homens, como Cecil Rhodes. Esse conflito entre o passado colonial e discriminatório e uma universidade que até hoje apresenta resultados positivos está longe de se resolver.

Outra peculiaridade sul-africana está no hibridismo de um modelo que conjuga traços de common law e de civil law, seja no Direito material, seja na formação curricular e na estrutura dos cursos. Essa assimetria torna muito complexo qualquer exercício comparatístico com o Brasil. Em uma mesma universidade, convivem cursos jurídicos que formam graduados em Direito, quanto os que dão uma formação pós-graduada a quem já possui umbachelor em outras áreas. No entanto, essa diversidade permite extrair algumas conclusões interessantes: a) não há ampla liberdade de escolha de disciplinas ou uma preponderância de matérias não jurídicas nas faculdades; b) os cursos que fugiram da formação preponderantemente jurídica ou que apostaram no modelo de pós-graduação têm recebido severas críticas por não conseguirem dotar seus egressos de conhecimentos técnicos suficientes para o exercício profissional.

Questão igualmente digna de observação é o modelo de financiamento das universidades, públicas ou privadas, que se baseia na cooperação de agentes privado, na busca por doações de ex-alunos ou de magnatas e que, no caso das públicas, caminha celeremente para o fim da cobrança de taxas, em razão das pressões estudantis.

As carreiras jurídicas passam por grandes transformações. O Direito assumiu um papel de relevo na sociedade sul-africana, com o desenvolvimento de um forte constitucionalismo ativista em questões sociais. Corrupção e falta de credibilidade dos órgãos da Justiça minam a percepção social sobre o Estado e o modo como ele lida com os conflitos. A carreira docente ainda é muito respeitada e sua remuneração não é tão baixa quanto em outros países.

Essa é a realidade do ensino jurídico na África do Sul, tão semelhante e tão diferente do Brasil.

***

Com esta coluna, encerra-se a análise das experiências de formação em Direito no continente africano. 


[1] HESA – HIGHER EDUCATION SOUTH AFRICA. Remuneration of academic staff at South African universities: A summary report of the HESA Statistical Study of Academic Remuneration. Pretoria: HESA, 2014. p.10.
[2] HESA – HIGHER EDUCATION SOUTH AFRICA. Op. cit. p.11.
[3] HESA – HIGHER EDUCATION SOUTH AFRICA. Op. cit. p.23-24.
[4] HESA – HIGHER EDUCATION SOUTH AFRICA. Op. cit. p.29.

Codificação do Direito Civil no século XXI: de volta para o futuro? (parte II)


Por 


Em nosso último escrito publicado no Direito Civil Atual, coluna da Rede de Pesquisas de Direito Civil Contemporâneo na ConJur, propusemos uma reflexão acerca da atualidade da profecia da "era da descodificação", desafiada pelo advento, na América Latina e na Europa, de novos códigos de Direito Civil.

Ao final, deixamos a promessa de tecer algumas linhas acerca do Code Napoleón, recentemente alterado pela Ordonnance 2016-131, aprovada na recentíssima data de 10 de fevereiro de 2016, que encaminhou uma ampla reforma nas matérias do Direito dos Contratos, do regime geral e da prova das obrigações.

Naquela oportunidade, para facilitar a compreensão da magnitude da transformação no Code, reportamos que a Ordonnance 2016-131, entre renumerações, abrogações, modificações e a criação de novos artigos de lei, promoverá aproximadamente 512 alterações no seio daquele que, desde o século XIX, foi o código mais influente na Europa e na América Latina.

Essas reformas do Código Civil, por sua vez, projetaram mudanças em pelo menos 85 outras leis francesas (em especial no Código Comercial e no Código do Consumo).

Tudo isso ocorreu no Code, que ostenta um simbolismo que não se pode menosprezar, afinal de contas, trata-se do código que melhor preenche de significado a "ideia código", fruto do esforço, centrado no príncipe, de ruptura com o ancién regime para a criação de um novo Direito no amanhecer da modernidade jurídica.

Foi no Code Civil que se verificou "a presunção do primeiro autêntico codificador da história jurídica europeia — de romper com o passado por aquilo que o passado representava sob o aspecto da visão do 'jurídico' e da posição do 'jurídico' no 'social' e no 'político'. Sob esse perfil, o 'código' expressa a forte mentalidade forjada no grande laboratório iluminista e se encontra – enquanto tal — em áspera polêmica com o passado"[1].

Após mais de 200 anos de vigência, o Direito Civil francês já não era propriamente uma projeção do texto do Code, em especial em matéria de obrigações e contratos.

Alguns autores, como Larroumet, chegaram a escrever que as alterações feitas pelos tribunais ao longo desses dois séculos foram tão severas que, de fato, não seria mais possível compreender o Direito das Obrigações e dos Contratos pela leitura dos artigos do Code: a jurisprudência francesa já teria se tornado, nessas disciplinas, a fonte principal[2].

Outros países europeus já haviam modificado codificações mais recentes que a francesa, e os esforços teóricos e políticos para uma reflexão acerca de um Direito europeu dos contratos impulsionavam mudanças.

O que fazer? Pulverizar a legislação em microssistemas? Seccionar o Direito das Obrigações e dos Contratos do Code? A opção francesa foi a de reafirmação do Code, mediante uma ampla reforma.

Esse é o contexto do advento da Ordonnance 2016-131, que entrará em vigor a partir de 1º de outubro de 2016.

Em uma rápida passagem pelas alterações em tema de Direito dos Contratos, pedimos permissão para sublinhar ao leitor algumas das novidades: a) regras específicas a respeito dos contratos concluídos por via eletrônica (artigos 1.125 a 1.127-6 e 1.174 a 1.177); b) alterações no regime de invalidades (artigo 1.178 a 1.185); c) disposições acerca de circunstâncias imprevisíveis supervenientes (artigo 1.195); d) modificações a respeito da denúncia e da resilição nos contratos (artigos 1.210 a 1.215); e) ampla revisão na disciplina da inexecução dos contratos (artigos 1.219 a 1.231-7), entre outros.

Os lindes deste escrito naturalmente são estreitos para uma análise minudente dessa reforma do Code Napoleón. No bojo de tantas sensíveis alterações, pedimos permissão para sublinhar a modificação dos quatros artigos que, originalmente, inseriram no Code a "causa" como um requisito de validade das convenções.

Fizemos essa escolha por diversas razões, dentre elas o fato da "teoria da causa", nas obrigações e contratos, espelhar muito da cultura francesa, do moralismo no Direito das Obrigações e dos Contratos. Uma revisão da teoria da causa, portanto, além do aspecto técnico, ostenta uma relevância ideológica.

Eis o texto dos artigos 1.108, 1.131, 1.132 e 1.133 do Código Napoleão, adiante reproduzidos em vernáculo, em sua redação original:

"Art. 1.108. Quatro condições são essenciais para a validade de uma convenção: o consentimento da parte que se obriga; a sua capacidade de contratar; um objeto certo que forma a matéria do compromisso; uma causa lícita na obrigação".

"Art. 1.131. A obrigação sem causa, ou com uma falsa causa, ou com uma causa ilícita, não pode ter qualquer efeito".

"Art. 1.132. A convenção não deixa de ser válida embora a causa não seja expressa".

"Art. 1.133. A causa é ilícita quando for proibida por Lei, quando for contrária aos bons costumes ou à ordem pública".

Esses trechos do Código Napoleão, desde as suas origens, foram objeto de acirradas polêmicas.

Em rápida síntese (e, por isso, perigosa), destacamos a teorização predecessora ao código, encontrada em Domat e Pothier, passando pelas explicações subjetivas do texto legislado (por vezes confundindo a causa com os motivos), encontrando graves obstáculos no movimento anticausalista (sobretudo em M. Planiol), até a estabilização encontrada na ideia de "propósito específico", de Henri Capitant, para, no ano de 2006, que está tão próximo a nós, alcançarmos a seminal tese de J. Ghestin[3].

A recente obra de Ghestin, inclusive, procurou influenciar diretamente os projetos de reforma do Code Napoleón para rever a teoria da causa no Direito Civil francês contemporâneo[4].

O Direito Civil brasileiro, em sua história, não ficou imune a esse intenso movimento teórico, sobretudo em virtude de autores que, animados pela literatura francesa, procuraram transpor as teorias francesas para o solo nacional.

A esse respeito, Pontes de Miranda, com olhos no Código Civil brasileiro de 1916, advertiu que "os livros franceses que expõem o artigo 1.131 do Código Civil francês, sem o criticar, são perigosos para quem lhes busca elementos para a interpretação do Direito brasileiro, ou de outro sistema jurídico que não tenha sido cópia do francês. Não no temos; nem fomos vítima do grave equívoco histórico que foi, para o Direito francês, o artigo 1.131. O que se chama teoria da causa não é a afirmação de que existe causa, ou de que existem negócios jurídicos causais, e sim que se teceu, com os artigos 1.031, 1.108 e 1.133 do Código Civil francês, uma das mais absurdas teorias de que jamais o Direito sofreu as consequências"[5].

Clóvis Beviláqua, autor do anteprojeto do Código Civil brasileiro de 1916, foi além. Mais que sustentar o equívoco do legislador francês, chegou a sustentar que uma das origens do imbróglio, que os brasileiros deveriam se distanciar, estaria em um atropelo terminológico entre chose (coisa) ecausae (causa): "A causa dos contratos, não declarada como razão ou condição deles, deixou de ser considerada pelo Código Civil. A doutrina já fez justiça a esse requisito, que parece ter entrado no Código Civil francês por um equívoco (...) Aludi ao que se refere Huc, em seu Commentaire, sobre a expressão sans cose de Beaumanoir, que supuseram  equivaler a sans cause, quando o velho jurista pretendia apenas dizer sans chose, sem objeto. E apreciei o apoio que Domat, o criador da teoria da causa, pretendeu encontrar no Direito Romano. Certamente nas fontes romanas se fala emcausa (...) Mas o ponto de vista dos romanos era muito diferente. Desses mesmos textos se vê que os romanos concebiam obrigações sem causaqui promist sine causa... qui sine causa obligantur. O pensamento, que nesses fragmentos sobressai é o do enriquecimento ilegítimo. Neles não se cogita da formação do contrato. Como bem diz Planiol, a noção de causa é perfeitamente inútil para a teoria dos atos jurídicos"[6].

Pois bem. A partir de 1º de outubro de 2016, nenhum desses artigos do Código dos Franceses — objeto das severas restrições de Beviláqua e Pontes de Miranda —, permanecerá em vigor. A causa, como requisito de validade das convenções, foi extirpada do Code[7].

O legislador francês, ao abandonar o original regramento acerca da causa, buscou reforçar os vínculos contratuais e a segurança jurídica nas operações econômicas.

Com isso, estaria findo o problema da causa nos contratos? Provavelmente, não.

A questão da causa, antes de uma opção de técnica legislativa, é um problema filosófico. Em Teoria do Direito, conforme explicava o professor Antônio Junqueira de Azevedo, o termo enseja pelo menos cinco significados diferentes, com maior ou menor impacto, no plano da validade ou no plano da eficácia. Esses impactos evidentemente serão diferentes diante de um regramento explícito no Código Civil[8]. O silêncio dos códigos, todavia, não afasta o problema da causa.

A opção de Beviláqua de negar à causa a qualidade de requisito explícito de validade dos contratos no Código Civil de 1916, reafirmada e sofisticada no Código Civil de 2002 (por exemplo, pelo artigo 166, III, em substituição ao artigo 90 do Código revogado), nunca afastou o problema da causa do Direito Civil brasileiro.

Basta memorar que alguns dos principais civilistas do século XX dedicaram estudos específicos acerca do tema. Sublinhamos, sem prejuízo de outros, Torquato Castro (da causa no contrato)[9], Couto e Silva (Teoria da Causa no Direito Privado)[10], além das já citadas obras de Junqueira de Azevedo[11](que, por sua vez, no século XXI, deram frutos em duas teses de doutorado por ele orientadas que, hoje, em Direito nacional, correspondem aos dois livros contemporâneos mais importantes acerca do tema. Em ordem cronológica, citamos a reciprocidade e contrato, de Luiz Renato Ferreira da Silva[12], e a doação com encargo e causa contratual, de autoria de Luciano de Camargo Penteado[13].

A reforma do Código Civil dos franceses faz com que os privatistas novamente voltem os seus olhos para aquela nação europeia que, mais uma vez, presenteia a cultura jurídica mundial com o resultado de um labor sofisticado. Nada de reformas de afogadilho. Certamente, a partir de 1º de outubro de 2016, o Code será menos Napoléon. Mais de dois séculos se passaram... Continuará a ser o código do cidadão francês, agora no século XXI.

Muito dessa reforma no Code se deve a uma atualização a partir da relevante criação jurisprudencial em tema de obrigações e contratos.

Em tema de "teoria da causa", todavia, podemos encontrar algo além.

No ano de 2012, Denis Mazeaud, ao prefaciar uma nova edição do clássico francês De la cause des obligations, de autoria de Henri Capitant, forneceu algumas pistas para melhor compreender o significado de uma alteração legislativa no tema da causa no Direito dos Contratos e das Obrigações[14].

Segundo Mazeaud — que atualmente preside a Association Henri Capitant des amis de la culture juridique française —, na reforma do Code Civil, duas vertentes decidiriam o futuro da "teoria da causa" na França contemporânea.

De um lado, as correntes adeptas do liberalismo contratual, que sustentavam a suficiência da teoria dos defeitos no consentimento para a proteção dos interesses privados dos contratantes. Para os casos envolvendo vulneráveis, outros meios reconhecidos pela Corte de Cassação seriam mais eficazes. O mesmo poder-se-ia dizer a respeito dos contratos com disposições contrárias à ordem pública e aos bons costumes, nos quais a "causa", como requisito de validade, seria supérflua.

Por outro lado, as correntes que defendiam a tradição do Direito francês e, também, uma concepção moralista do contrato, continuaram a defender a manutenção da teoria da causa no regramento das obrigações e contratos, ainda que com modificações em relação à redação original no Code.

No que diz respeito à teoria da causa, no embate entre as duas correntes retratadas por Mazoud, percebe-se que a vertente liberal prevaleceu. Retornamos à questão: estaria o problema da causa superado em França? Provavelmente não. A Justiça e a moralidade nos contratos, que a teoria da causa francesa pretendia enfrentar, não desaparecem com a supressão de uma palavra. O problema é reformulado.

Pede-se permissão ao leitor, por fim, para fazer uma singela homenagem. O autor gostaria de dedicar este escrito ao professor Luciano de Camargo Penteado, dileto amigo que guardou uma significativa parte de sua vida ao estudo da Teoria da Causa e nos deixou, ainda muito jovem, no ano de 2015.  

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT)..


[1] GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis : Boiteux, 2004, p. 106-107.
[2] LARROUMET, Christian. Droit Civil: Les obligations, le contrat. Paris : Economica, 2007, p. 14.
[3] GHESTIN, Jacques. Cause de l`engagement et validité du contrat. Paris:L.G.F.J, 2006.
[4] Mencionamos, neste sentido, as propostas de alterações legislativas apresentadas por GHESTIN, Jacques. Cause de l'engagement et validité du contrat. Paris : L.G.F.J, 2006, p. 903 e seguintes.
[5] PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t.3. Atualizado por Marcos Bernardes de Mello e Marcos Ehrhardt. São Paulo: RT, 2012, p. 141.
[6] BEVILÁQUA, Clóvis. Comentários ao Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro : Francisco Alves , 1959, p.271.
[7] Corresponderá ao artigo 1.108, o artigo 1.128:  "Sont nécessaires à la validité d'un contrat: 1° Le consentement des parties; 2° Leur capacité de contracter; 3° Un contenu licite et certain". O sentido dos artigos 1.131, 1.132 e 1.133 foi completamente alterado e, na mesma posição, encontram-se regras a respeito dos vícios de consentimento, sem qualquer menção à causa.
[8] JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Negócio jurídico e declaração negocial, 1986, p. 121 e seguintes e JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. 2ª ed. São Paulo : Saraiva, 2002, p.152.
[9] CASTRO, Torquato. Da causa no contrato. Recife: Imprensa Universitária, 1966.
[10] COUTO E SILVA, Clóvis. Teoria da causa no Direito Privado. In: FRADERA, Véra. O direito privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 57.
[11] JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Negócio jurídico e declaração negocial, 1986, p. 121 e seguintes e JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 152.
[12] FERREIRA DA SILVA, Luis Renato. Reciprocidade e contrato. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
[13] PENTEADO, Luciano de Camargo. Doação com encargo e causa contratual. 2ª ed. São Paulo: RT, 2012.
[14] MAZEAUD, Denis. Avant-propos. In: CAPITANT, Henri. De la cause des obligations. Paris : Éditions La Mémoire du Droit, 2012, p.II-III.