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terça-feira, 14 de março de 2017

O paraíso dos conceitos jurídicos de Rudolf von Jhering (parte 5)



Ao chegar à Academia de História do Direito, nosso pretendente ao "Paraíso dos Teóricos" recebe a informação de que quem não compreende a fundamental importância do período de reconstrução das fórmulas romanas não pode ser admitido na academia. Informam-lhe, a propósito, que a academia é dividida em duas classes: a primeira, para a "restauração dos textos", e a segunda, para a "reconstrução das fórmulas", e que apenas os membros da primeira classe são considerados "membros completos", enquanto os membros da segunda seriam considerados "pseudoacadêmicos".

Recebe também a informação de que pode até entrar na "academia" para observar, mas deveria permanecer calado, eis que ele não seria membro. Uma vez lá dentro, observa um "tabuleiro" que lhe chama a atenção. Era o denominado Tabuleiro de Ensaios, no qual seriam anotados fragmentos de textos romanos que apresentassem lacunas e que, portanto, precisavam ser reconstruídos. A dinâmica é tamanha que, todos os meses, o tabuleiro era alterado. Em muitos espaços, só se podiam ler algumas letras. Em outros espaços, nem mesmo existiam letras reconhecíveis. No momento da visita, se pôde ler/ver o seguinte:

______________

UN...................

..............FRUC

................HTB

ARE...............

SP.................I

ELE................

RE.................

I............EN...

______________

O espírito-guia provoca o pretendente ao Paraíso dos Teóricos, incitando-o a "comple(men)tar" o fragmento. Hesitante, ele menciona que não se animaria a fazê-lo, pois nunca tentara isso antes, mas que interpretaria que as letras SP (Senatus Populus) teriam perdido as letras QR (que Romanus), e que o texto poderia dizer: Senatus Populus (que Romanus). Dizem-lhe, então, que absolutamente todos os acadêmicos reconheceram esse fragmento, mas infelizmente esse seria, também, o único ponto sobre o qual suas interpretações convergiam, uma vez que em todos os demais as interpretações realizadas seriam completamente divergentes. Até então, nenhum "intérprete" teria surgido com a "resposta correta", e quem acertasse este se transformaria no presidente da Academia, até que algum outro acadêmico o suplantasse através da mesma via. Contudo, até então ninguém teria conseguido o cargo.

Tentando explicar o prazer do ofício, o espírito-guia passa a mencionar que todos os "intérpretes" estariam absolutamente convencidos de terem decifrado um "enigma", trazendo-lhes muita satisfação, e qualquer um que tenha tomado gosto por tal "passatempo científico" não encontraria outro prazer mais excelso, pois isso lhes daria a incomensurável sensação de ter resgatado (e desenterrado) uma peça perdida da antiguidade clássica, fazendo-se achar uma espécie de Schliemann das fontes jurídicas romanas. A explicação é evidente: qualquer pessoa normal poderia "ler" as fontes, mas "fazê-las" (criá-las?), isso sim seria a essência do prazer da arte.

Advertem-lhe: e isto porque todos os tipos de expressões antigas permaneceriam em ruínas, decaídas, junto com Festus e Varro, como farrapos velhos para qualquer um que não soubesse devidamente apreciá-las e valorá-las, mas a pessoa certa surge e, com seu auxílio, oferece uma nova regra das XII Tábuas. No local, encontram um espírito que está a laborar na obra de Gaius, pretensamente colmatando suas lacunas, expressamente dizendo que estaria "corrigindo o texto".

O referido espírito estava convencido de que Gaius teria cometido inúmeros "erros" e "imprecisões", como por exemplo, ao reproduzir a fórmula de testamento romano (II, 104), omitindo-se de colocar o fragmento "ex iure Quiritium meam esse aio", que ele então, generosamente, acabara de inserir no texto. O pretendente ao Paraíso dos Teóricos tenta intervir, mas logo recebe uma advertência para que ficasse calado, e quaisquer observações que quisesse fazer deveria ser através do espírito-guia, soprando-lhe a observação ao ouvido.

A partir da advertência, o candidato observa que a pretensão do "(re)construtor" não teria "nem pé nem cabeça", pois o fragmento The familiae emptor, que ele pretendia destacar, e da qual a fórmula supostamente tratava, apenas servia para enfatizar que ele não se transforma em proprietário, mas que unicamente para se referir a uma expressão jurídica alemã, salman, sobre o fiduciário que fosse administrar a herança (familia pecúnia que tua endo mandatela(m) custodela(m) que mea(m)... est emta). Esta expressão "ex jure Quiritium meam esse ajo" iria significar, justamente, o contrário do que se pretendia na "(re)construção", pois se o "familiae emptor" houvesse chegado a ser "dominus ex jure quiritium", então ele poderia alienar todos os bens da herança, deixando os herdeiros e legatários a ver navios. Por isso, lhe era conferida apenas a "mandatela custodelaque" da herança.

O espírito-guia declara que essa também seria a sua opinião, mas observa que o "(re)construtor" não teria parado por ai na sua invectiva (re)construtiva, pois, para ele, "ex jure Quiritium meum esse" soaria exatamente como "meum esse", e à falta desse complemento, ele trataria de inseri-lo. No momento seguinte, o "(re)construtor" passa a se ocupar da "correção" da obra de Paulus, para uma adequação da fórmula da "interdictio bonorum" (S. R. III 4a, 7), convertendo o fragmento "ea re", da passagem final: "ob eam rem, tibi ea re commercioque interdicto' em um 'lare'.", fazendo com que o candidato perguntasse o motivo disso, obtendo como resposta, neste sentido, que provavelmente porque "lar" remeteria a um culto doméstico, e se assim fosse, o pródigo não teria sido apenas afastado da administração dos seus bens, mas também da participação do culto familiar.

A observação choca o candidato, que faz observar que, tendo relação com atividade do praetor, em Roma, ele não tinha nada que ver com questões religiosas, e que essas questões eram deixadas para a autoridade dos pontífices, e que o candidato nunca ouvira falar que um praetor houvesse infringido essa competência de autoridade. No momento em que faz a observação, o candidato debocha do espírito guia, dizendo-lhe que em seu céu se aprendem coisas das quais jamais se suspeitaria na terra, como por exemplo, ser o praetor uma autoridade suprema em matérias religiosas! E prossegue no deboche: E por que não? Na Alemanha, o presidente do Superior Tribunal Regional teria sido nomeado também presidente do Oberkonstitorium. O fundamento da "correção" das fórmulas do Direito Romano teria como ponto culminante a "pouca confiança gramatical", algo que "disfarçaria" a pretensão de "correção".

Surge dessa discussão, dentre tantas possibilidades, não apenas o "engodo" que pode representar a "(re)construção" de fórmulas antigas (prévias, precedentes), através da problemática relação entre "direito" e "história", mas também a "discricionariedade" com que age o "(re)construtor" para "corrigir" as fontes do direito.

"Escolher" entre uma letra e outra (de uma fórmula), é similar a permitir que um julgador (ou tribunal) realize a correção moral do direito, "escolhendo" se aplica determinada norma ou se deixa de aplicá-la de maneira amplamente baseada no "livre convencimento motivado", que em boa hora foi extirpado do ordenamento jurídico, mas não das práticas jurídicas e institucionais, se o pano de fundo estiver permeado pela discricionariedade judicial. Sobre esse tema, consulte-se Streck[i], Dworkin[ii] e Carbonell Bellolio[iii] para a discussão sobre as variantes e implicações aliadas à "tese da única resposta correta" (TURC) e à "tese da inexistência de respostas corretas" (TIRC).

Dentro da tradição jurídica dos Estados Unidos (e também no Brasil atual)[iv], a "desconfiança" no Parlamento é um dos elementos chaves para a atuação alegadamente "proativa" (ativista??) da Suprema Corte, quando fez inserir a famosa "nota de rodapé nº 4" (the footnotefootnote four), no caso "Caroline Products". São importantes alguns aspectos inerentes à famosa nota de rodapé nº 4, do caso "United States v. Carolene Products Company", julgado pela Suprema Corte Americana em 1938, naquela que é considerada a nota de rodapé mais famosa do direito constitucional.

No caso "Carolene Products", a questão decidida envolvia saber se era compatível com a Constituição um ato normativo do Congresso Americano (o "Filled Milk Act' of Congress of 1923"), que proibia o comércio interestadual de leite desnatado, composto por qualquer tipo de gordura ou óleo que não fosse propriamente a gordura do leite, pois os aditivos substitutivos do leite puro seriam danosos à saúde, além de facilitadores da burla e da fraude ao público consumidor, e a Suprema Corte, em acórdão cuja elaboração ficou à cargo do Justice Harlan Stone, entendeu que a proibição legislativa era presumivelmente compatível com à Constituição, de acordo com a discricionariedade legislativa, pois havia substancial evidência probante sobre os riscos à saúde pública, estando a famosa nota de rodapé nº 4, fundada em:

"O prejuízo contra as minorias discretas e insulares pode ser uma condição especial, que tende a limitar seriamente o funcionamento daqueles processos políticos nos quais podemos confiar regularmente para a proteção das minorias, e que podem, em consequência, necessitar de uma maior supervisão judicial" (tradução livre, sem os destaques no original).

Os efeitos práticos dessa decisão para a história da Suprema Corte americana, sobretudo a partir da famosa nota de rodapé nº 4, são os de que muito embora o governo seja democrático, num regime no qual, em regra, as maiorias devem legislar e regular as situações da vida cotidiana, existiriam certos grupos minoritários aos quais não se concederia participação efetiva no processo político, e que, portanto em alguns casos excepcionais o processo político tradicional não asseguraria à proteção aos interesses desses grupos. Com base nessas premissas, a Suprema Corte passaria a possuir duas missões especiais: primeira, afastar impedimentos de participação política, assegurando que grupos minoritários pudessem participar da maneira mais igualitária possível no processo político, e, segunda, rever com escrutínio mais estrito de constitucionalidade a legislação que interfira na esfera de proteção de minorias (discretas e insulares) que não sejam capazes de participar mais ativamente do processo legislativo[v].

No entanto, a desconfiança também pode ser invertida, e passar do parlamento para a Suprema Corte, "local institucional" que possui credenciais democráticas muito mais débeis que o parlamento, e, tanto pior se estiver permeada por reconstruções historicamente orientadas a partir dos problemas apontados por Jhering. Uma nota de rodapé, em uma decisão judicial, pode fazer às vezes de uma Emenda à Constituição? "Ponderar" "valores", por mais nobres que sejam, é similar a "mastigar" e dilacerar o potencial de normatividade do Estado Constitucional de Direito? Realizar o exercício de "trashing", inerente aos integrantes do "CLS", herdeiros de um específico realismo jurídico, pode possuir muitas similaridades, e é por este motivo que a próxima coluna tratará da reposta de McCorcmick sobre tais aspectos, mas com os olhos voltados para Jhering. Continua.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


[i] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2015; STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 4 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013.
[ii] DWORKIN, Ronald. Judicial Discretion. The Journal of Philosophy, vol. 60, n. 21, 1963.
[iii] CARBONELL BELLOLIO, Flavia. La idea de corrección en el derecho. Junio de 2013. 553f. Tese (Doutorado) - Departamento de Derecho Internacional, Eclesiástico y Filosofia del Derecho da Universidad Carlos III de Madrid, Getafe: 2013.
[iv] O mesmo notara Francisco Campos sobre o Parlamento brasileiro na década de 1940 e argumentava: "Se o órgão incumbido de legislar se demitira da sua função, cumpria urgentemente substitui-lo por outro processo" de criação de leis". CAMPOS. Francisco. Directrizes do Estado Nacional, O Estado Nacional: sua estructura, seu conteúdo ideológico (Vicios do Poder Legislativo), p. 43.
[v] POWELL JR., Lewis F. Carolene Products Revisited. Colorado Law Review, vol. 82, 1982.

terça-feira, 7 de março de 2017

O paraíso dos conceitos jurídicos do jurista alemão Rudolf von Jhering (parte 4)



A relação entre direito e história é algo potencialmente tormentoso. Adailton Pires Costa observou que certa herança da tradição bacharelesca teria alguma influência na inserção de fragmentos de história do direito ("breve escorço histórico") em cada monografia, TCC, dissertação e tese de direito, como legitimadora de uma "história oficial" e acrítica, "como eterno resgate às origens da fundação de Roma". O autor propõe reflexão e prática que considerem o pensamento de Edward Palmer Thompson (capítulo 7 de seu livro "A Miséria da Teoria"), de modo a se realizar uma "história crítica do direito"[1].

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy chamou a relação (direito/história) de "equivocada", e, a partir de António Hespanha, observou que o direito se serve da historia para a urdidura de um discurso legitimador com conteúdo apologético, mas o jurista realizaria tal tarefa de maneira aparentemente disfarçada, a pretexto de que a história do direito oxigenaria a cultura geral do profissional do direito, com alargamento de horizontes, fomentando suposta compreensão do tempo presente, cuja função seria explicitar a realidade da experiência jurídica, revelando mistérios com a "previsão" de tempos futuros[2], tal qual uma cartomante, que "lê as mãos do ordenamento" e fornece previsões sobre uma "cartografia jurídica".

Contudo, o jurista não pode (e nem deve) ser cronofóbico e nem factumfóbico, como ressalta Lenio Streck[3], pois não se pode esquecer que direito é história, é tempo, e é faticidade, e que, neste sentido, cada caso possui a sua singularidade, vale dizer, pensando na prática do direito, buscar o aprisionamento dos fatos em verbetes equivaleria a "sequestrar o tempo", assim como não se pode oferecer respostas antes mesmo das perguntas, sempre historicamente contextualizadas.

O "resgate" histórico no direito permite uma miríade de possibilidades, nem todas ingênuas ou despretensiosas. Serve para a Suprema Corte americana (a bem dizer, quaisquer tribunais) realizar a reconstrução de sua "cadeia de decisões", como na "presunção de inocência", iniciada no caso Coffin vs. U.S, (1894), até o recente caso Nelson v. Colorado (2016-2017), sem esquecermos a crítica realizada sobre a suposta confusão e equívoco na gênese de tudo isso, conforme Kenneth Pennington[4].

Fornece ainda mecanismos para buscar alguma ressignificação das relações sociais, a propósito, com elementos de estruturação cultural, quando permite análises como uma espécie de "De volta para o futuro jurídico", p.ex., se ingressarmos nas disposições do Título XXV, do Livro V, das Ordenações Filipinas (de 1595), para tentar compreender as exceções ali presentes, que admitiam o direito de vida e de morte para o caso daquele que dormisse com mulher casada, exceto se o marido fosse peão e o adúltero fosse nobre, para tentar compreender a necessidade, muitos anos depois, de um instrumento normativo como a Lei Maria da Penha:

"Mandamos que o homem, que dormir com mulher casada, e que em fama de casada tiver, morra por isso. Porém, se o adúltero for de maior condição que o marido dela, assim como, se o tal adúltero fosse fidalgo, e o marido Cavaleiro, ou Escudeiro, ou o adúltero Cavaleiro ou Escudeiro e  marido peão, não farão as justiças nele execução, até nos fazerem saber, e verem sobre isso nosso mandado. E toda mulher, que fizer adultério a seu marido, morra por isso (...)."[5]

Além do mais, a relação direito/história também permite evidenciar, a partir de Mark Tushnet, alguma sombra no contexto Norte-Americano, marcado por certo "originalismo jurídico", que pretende fazer valer as disposições de "intenção original dos pais fundadores" mais de 200 anos depois do nascimento do documento constitucional, em uma realidade na qual muitos juízes da Suprema Corte seriam relapsos no uso da história (maus historiadores) para justificar suas decisões, que utilizariam a história de maneira equivocada, por não empregarem os métodos e mecanismos desenvolvidos por "historiadores treinados", mas há duas ressalvas importantes:

"Historiadores enfrentam duas dificuldades que os juristas e os cientistas políticos podem ignorar. Para investigações sobre a 'intenção original', de modo a torná-la útil no direito constitucional, eles precisam produzir respostas relativamente firmes: os juízes querem saber "os pais fundadores queriam dizer isto, ou aquilo". Mas o treinamento e a orientação disciplinada dos historiadores os conduziriam a uma sintonização com as complexidades de qualquer evento histórico real ou grupos de intenções, tornando suas conclusões menos úteis aos juízes. Em segundo lugar, e talvez mais importante: historiadores são treinados para uma maior sensibilidade sobre o contexto dos eventos e das intenções. Particularmente importante, para meu ponto de vista aqui, são as lições que os historiadores aprenderam sobre a história intelectual de Quentin Skinner e J. G. A. Pocock. Um contexto da linguagem constitucional é a retórica geral do discurso político. Skinner e Pocock mostraram que nós não podemos reconstruir o sentido de termos como "estabelecimento da religião" sem antes reconstruir o inteiro universo intelectual a partir do qual estes termos foram cunhados." (Tradução Livre)[6]

Reconstruir pode significar reajuste, invenção, inovação, destruição e remodelação, e não apenas construção historicamente orientada. A relação do binômio história/direito, a par de suas potencialidades e complexidades, é elemento central na crítica de Jhering. Na última coluna observamos que depois de visitar as intrigantes máquinas presentes no "Paraíso dos Conceitos Jurídicos" (Máquina de Partir Cabelos, o Pau de Sebo dos Problemas JurídicosMáquina de Construir, a Máquina da Ficção, a Furadeira Dialética, a Máquina de Conciliar Passagens Contraditórias, e o Muro da Vertigem) o espírito guia pretendia conduzir o candidato ao "céu dos teóricos" até a "Academia de História do Direito". A narrativa de Jhering deixa bem claro que não se trata de uma academia de história do direito em geral, mas uma academia de história do direito romano, em particular, e mesmo neste aspecto não se referia a todo o direito romano, mas apenas parte dele, qual seja, aquela que transcenderia todo o restante em razão de seu especial valor científico, o período de reconstrução das fórmulas romanas, na mordaz crítica que apresenta.

Há certa sutileza histórica, amalgamada ao ato que ridiculariza de forma impiedosa (conforme Franz Wieacker) os juristas no "Paraíso dos Conceitos Jurídicos", local que teria estado esvaziado em favor do "Paraíso dos Juristas Normais" até que Puchta apareceu por lá, ocasionando o aumento do número de integrantes, e mesmo Savigny teve muitas dificuldades de ingresso, mas a "graça" deste comentário residiria no fato da morte de Puchta, em 1846 (professor de Jhering), ter ocorrido antes da de Savigny (1861), além da alusão ao fato de que Puchta, junto com muitos outros discípulos, teriam tornado Savigny um jurista "conceitualista"[7].

Observe-se que Puchta é o fundador da jurisprudência clássica dos conceitos do século XIX, e as suas Pandectas (Pandekten) e o seu Curso de Instituições (Cursus der Institutionen) teriam feito desta herança jusracionalista um princípio metodológico inerente à própria pandectística, influenciador do "System" de Savigny, e, tendo em vista que Puchta teria renunciado às relações jurídicas orgânicas e às "instituições" de Savigny, a chamada "pirâmide conceitual" (leia-se: hierarquia dos conceitos), a partir dos axiomas, passa a ser construída de maneira contínua e pretensamente sem lacunas, além da dedução das normas jurídicas isoladas e das decisões jurídicas concretas pressupor a existência possível exclusivamente através de estrito rigor lógico. Além do mais, convém recordar, foi o próprio Puchta quem mencionou uma "genealogia dos conceitos", segundo a qual o jurista deveria seguir de cima para baixo a descendência de cada conceito através de todos os elementos que tomam parte na sua formação: "tornar-se consciente da 'proveniência' de cada direito até chegar ao puro conceito de direito e, deste conceito supremo, poder voltar novamente e 'descer' até cada um dos direitos subjetivos isolados"[8].

Esta "mecânica" introduziu o processo de dedução da norma e da decisão jurídica a partir do conceito, ao invés do contrário, vale dizer, produzir o sistema e os conceitos através de indução a partir das normas jurídicas, das decisões judiciais e das valorações sociais, algo "elogiado e mais tarde ridicularizado por Jhering como 'jurisprudência construtiva', censurado pela jurisprudência dos interesses como 'método da inversão"[9].

Como veremos na sequência, Jhering (o segundo) buscou denunciar certo abuso relacionado à utilização da história, algo que também faz de seu texto sobre os conceitos jurídicos uma das mais importantes narrativas críticas sobre o direito. Aliás, através da colossal obra de Franz Wieacker ("História Do Direito Privado Moderno", traduzida para o idioma português por António Hespanha), percebemos a importância da crítica traçada por Jhering, em fragmento valioso para a repensarmos alguns aspectos inerentes à teoria do direito:

"Através do despertar da reflexão sobre a historicidade da própria existência foi aberto na ciência jurídica um processo que ainda hoje não chegou ao seu termo. Ele significa nada menos que o fato de que a relacionação do dever ser com o histórico, da norma jurídica com a realidade social, penetrou pela primeira vez na sensibilidade da ciência jurídica – o que a autoridade do Corpus Iuris e o racionalismo bi-dimensional do direito natural tinham impedido até aqui. Quase todas as fórmulas polêmicas e as proposições do séc. XIX podem ser aferidas a este processo e incluir-se num processo global de desenvolvimento da consciência social dos juristas alemães. O espírito do povo de Savigny, o direito dos juristas de Puchta, o direito popular de Beseler, a finalidade no direito de Jhering, o direito social e comunitário de Gierke, todos eles são (tal como a alienação do homem na sociedade de mercadorias, segundo a concepção de Karl Marx), tentativas de reaquisição da identidade da consciência jurídica e jurídico-científica com o caráter histórico e, portanto, social – agora descoberto – da existência (nacional ou social). Este foi o último e mais duradouro contributo do historicismo para o pensamento jurídico do século XIX"[10].

É dentro deste contexto fático, teórico e histórico que iremos abordar, na próxima coluna, aspectos relevantes da crítica tecida por Jhering sobre o engodo que pode representar a reconstrução de antigas fórmulas do direito romano, mais destinadas a "inovação" do que propriamente à reconstrução, e de como esse exercício ainda está presente em nossa realidade, tornando imprescindível (e atual) a reflexão sobre a crítica realizada no final do século XIX pelo jurista alemão,  sobretudo se pensarmos na resposta crítica que Neil MacCormick ofereceu aos juristas integrantes "Critical Legal Studies"[11]. Continua.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT)


[1] COSTA, Adailton Pires. Cinco pontos para uma história crítica do direito a partir da obra de E. P. Thompson. Em: FONSECA, Ricardo Marcelo; LOPES PEREIRA, Luís Fernando; FURMANN, Ivan (orgs.). Anais do V Congresso Brasileiro de História do Direito: as formas do direito, ordem, razão, decisão: experiências jurídicas antes e depois da modernidade. Curitiba: IBHD, 2013.
[2] GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e História: Uma Relação Equivocada. Londrina: Editora Humanidades, 2004.
[3] STRECK, Lenio Luiz. A Ficção da Verdade Real e os Sintomas da Falta de Compreensão Filosófica da Ciência Processual. Revista do Ministério Público do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 p. 212.
[4] PENNINGTON, Kenneth. Innocent Until Proven Guilty: The Origins of a Legal Maxim. The Jurist, n. 63, 2003.
[5] A linguagem foi propositalmente atualizada. Cfr. ORDENAÇÕES Filipinas. Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm>, acesso em 1º.03.2017.
[6] TUSHNET, Mark. Toward a Revisionist History of the Supreme Court. Cleveland State Law Review, vol. 36, 1988.
[7] WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Trad. António Hespanha. 2ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1967, p. 456, nota de rodapé nº 77.
[8] WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Trad. António Hespanha. 2ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1967, p. 456.
[9] WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Trad. António Hespanha. 2ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1967, p. 457.
[10] WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Trad. António Hespanha. 2ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1967, p. 409.
[11] MACCORMICK, Neil. Reconstruction after Deconstruction: A Response to CLS. Oxford Journal of Legal Studies, v. 10, 1990.

quarta-feira, 1 de março de 2017

O paraíso dos conceitos jurídicos do jurista alemão Rudolf von Jhering (parte 3)

Em um manicômio qualquer, imagine-se, nos perderíamos nas curvas da dúvida sobre a clausura de um sábio que sonhou em ser uma borboleta, ou de uma borboleta que sonhou ser um sábio chinêsi. Veríamos luzes, ouviríamos passos, tocaríamos a própria pele, sulcada pelos inafastáveis efeitos do tempo. Um sonho dentro de um sonho, que traria menos conforto espiritual que angústias existenciais. O sonho de Jhering sobre o Paraíso dos Conceitos Jurídicos deve provocar as mesmas angústias e desconfortos 133 anos depois de sua publicação (1884-2017), numa espécie de déjà vu.

Tanto assim que, ao prefaciar a tradução inglesa de O Paraíso dos Conceitos Jurídicos (In The Heaven for Legal Concepts: A Fantasyii), em 1985, Jonh Lindsey não apenas recordou o fato de Hart ter chamado de tragédia intelectual a reduzida quantidade de traduções dos "montanhosos" trabalhos de Jhering, como também fez questão de registrar (a partir de Hart) que a similaridade entre o americano Holmes e o alemão Jhering, residia em que ambos atacavam o "erro intelectual fundamental sobre a natureza do direito e dos conceitos jurídicos", que consistiria "na crença de que os conceitos jurídicos são fixados ou fechados no sentido de que seria possível defini-los de maneira exaustiva, relativamente ao grupo de condições necessárias e suficientes", quase como se a palavra água molhasse, a expressão fogo ardesse, e a menção à ilusão causasse vertigem, ou a exaustiva definição de contrato fosse uma algema que vinculasse as partes.

Ao mencionar a Máquina de Partir Cabelos, Jhering ridiculariza o trabalho do jurista, reduzido a um mero manipulador de parcelas e partículas de conceitos, mas um manipulador qualificado: é um jurista teórico, aprovado em refinados testes de admissão para ingresso na ilustre confraria. Cita, ainda, uma atividade ersatz, consistente em fingir que resolveriam problemas, subindo no Pau de Sebo dos Problemas Jurídicos para que, como os caçadores das lebres, apenas se divertissem como num clube de caça, e a recolocação dos problemas novamente no topo do pau de sebo é crítica indigesta, mas importante. É como imaginar os ministros do Supremo Tribunal Federal subindo no pau de sebo para buscar a solução do problema sobre a constitucionalidade da disputa entre galos combatentes, mas recolocando novamente lá no topo o conceito agregado da "dignidade da pessoa humana".

Isso decorre da reflexão sobre a acusação de que as dificuldades dos problemas filosóficos, enfrentados por alguns juristas, não residiriam em problemas práticos, vale dizer, não possuiriam qualquer significado para a vida. Aliás, nada no "Paraíso dos Juristas Teóricos" poderia ser chamado de "prático", e a simples referência a tal expressão acarretaria a imediata expulsão do candidato, pois não haveria nenhuma espécie de vida no repouso celestial dos teóricos. Antes, seria o lugar da "ciência pura", da "lógica jurídica", destinado aos seres cientificamente saudáveis — ou possuidores de formas logicamente corretas e conceitualmente puras — que são o seleto grupo daqueles (espíritos e conceitos) que podem viver no paraíso. Lá os conceitos não precisam ter qualquer tipo de utilidade.

Pois bem, após visitar a Máquina de Partir Cabelos e o Pau de Sebo dos Problemas Jurídicos, o candidato ao paraíso é apresentado a algumas "máquinas de filosofia" (como a "máquina de construir", a "máquina da ficção", a "furadeira dialética" e a "máquina de conciliar passagens contraditórias"), que possuiriam um grande valor para finalidades jurídicas. Jhering descreve um espírito que trabalha na "máquina de construir", no exato momento em que ele está "construindo" um contrato.

Menciona-se que "a arte da construção" remontaria aos mais interessantes objetivos compensatórios da simplicidade das coisas, e que qualquer pessoa poderia entender a simplicidade da afirmação, embora o entendimento viesse depois. No entanto, os chamados "expertos" deveriam saber que o fenômeno jurídico mais simples envolve as maiores dificuldades, e, a respeito do contrato, que parece tão simples pra o candidato, é esclarecido que se está prestes a declarar o instituto "contrato" como sendo uma "impossibilidade lógica".

E a questão é colocada nos seguintes termos: quanto mais complicadas as condições, mais fácil sua construção; quanto mais fácil, mais difícil (relembrando a inversão de sentidos no universo de Lewis Carrol). Além dos contratos, as únicas coisas que estimulam o "construtor", que explica ao candidato a lógica das coisas, são as obrigações e a representação direta. O candidato então pergunta a seu interlocutor sobre a qual conclusão ele chegou sobre eles, obtendo como resposta que "como obrigações, que se referem a um direito inerente aos atos do devedor". O candidato não concorda com a explicitação, objetando que "se o ato não foi praticado, portanto, não é possível direito sobre ele".

O interlocutor então desdenha do candidato: "Existir? Logo se nota que você não é um dos nossos". No céu dos teóricos, tudo que é pensado, existe. De acordo com o pensamento do candidato (chamado de limitado), e que parece não ter superado ainda a categoria do tempo, os atos do devedor só existiriam no futuro, mas explica-se a ele que isso seria simplesmente uma questão de "aqui e agora", pois ele não está familiarizado com as fronteiras que obstaculizam o pensamento. Basta que se pense para que a coisa exista, pois pensamento e existência seria uma mesma e única coisa no paraíso dos teóricos.

Indagado sobre qual seria a conclusão do "construtor do contrato" sobre a representação direta, menciona-se que ela seria simplesmente impossível! E isso porque seria absolutamente inconcebível que o ato de "A" viesse a ser considerado como o ato de "B", uma vez que seria necessário que os atos do primeiro recaíssem no último, da mesma maneira que uma pessoa não poderia tomar um remédio por outrem, tampouco uma pessoa poderia executar um ato no lugar de outro.

Explica-se: o primeiro seria uma impossibilidade física, enquanto o segundo residiria em uma impossibilidade lógica, eis que o efeito somente poderia ser produzido na pessoa na qual se produziu a causa. Se o direito positivo dispõe que de um contrato celebrado por mandato alheio, e em nome alheio, somente derivariam direitos e obrigações para o mandante, mas não para o mandatário, procede com caprichosa arbitrariedade, que viola todas as leis do pensamento jurídico.

Fundamenta-se tal raciocínio com o resgate do Direito Romano, já que os romanos, sozinhos, teriam entendido isso adequadamente, uma vez que eles primeiro teriam admitido a substituição de uma pessoa, permitindo-lhe então suportar as consequências através da representação. Eles, a propósito, teriam permitido o mesmo tipo de representação direta na aquisição da posse e na aquisição da propriedade diretamente na pessoa do representado, mas isso teria sido muito grave, algo decorrente do período de declínio do pensamento jurídico romano, motivo pelo qual se aconselha ao candidato não ingressar em nenhum tipo de discussão com alguém no paraíso, pois ele não teria alcançado (ainda) a necessária estatura do refinamento do pensamento conceitual (numa clara demonstração de que também no paraíso dos teóricos prevaleceria a utilização de argumentos de autoridade).

Momentos depois o candidato é apresentado a outra máquina bastante interessante, chamada de "prensa-hidráulica-dialética de interpretação", através da qual se extrai qualquer passagem de um texto. A descrição de sua constituição é importante para compreender a crítica de Jhering. Nela são observadas duas bombas perto do cilindro principal. A primeira contém o "aparato dialético de infiltração", que é o injetor através do qual se introduzem pensamentos, pressupostos e ressalvas que eram completamente desconhecidos do autor da passagem interpretada. Ela seria uma descoberta dos teólogos, e que os juristas simplesmente teriam copiado, ainda que a cópia não resistisse à comparação. A engrenagem dos juristas teóricos teria a capacidade de render apenas a décima parte do que rendeu aos teólogos, que fazem penetrar sistemas inteiros em uma só palavra, mas isso seria perfeitamente suficiente para as finalidades jurídicas. A segunda bomba da máquina seria o "aparato de eliminação", engrenagem permissiva da remoção de expressões potencialmente problemáticas da passagem do texto interpretado. Explica-se ao candidato: através do uso devido, a máquina permitiria conciliar passagens contraditórias.

Atrás desta máquina havia uma outra, denominada de "furadeira dialética", que seria utilizada para se chegar ao centro das questões chamadas de difíceis (antecipando-se, em muito, aquilo que hodiernamente alguns juristas realizam na clivagem entre easy cases e hard cases). A "furadeira dialética" conteria a realização mecânica dos problemas de profundidade científica, e seu manejo requereria grande destreza por parte dos juristas teóricos, e qualquer escorregadela causaria a perfuração até o outro lado do objeto, o que seria um grande problema para os habitantes do paraíso dos conceitos jurídicos (ditos espíritos abençoados).

Depois das explicações devidas, o candidato é conduzido até a presença de outra engenhoca, chamada de "muro da vertigem", ou "a passagem secreta", que encerra o local. Trata-se de algo tão gigantesco que o candidato menciona que seus olhos mal conseguem ver onde termina. O espírito guia pede ao candidato para que ele aperte seus olhos, indagando-lhe se ele conseguiria vislumbrar algo se movendo lá em cima. O candidato então menciona que conseguiu enxergar um dos espíritos se movendo acima do "muro da vertigem", mas o que ele estaria fazendo lá?

Em resposta, explica-se que ele estaria em treinamento de "adestramento" contra fraudes ilusórias. O muro sobe intermitentemente, e na parte mais baixa, há uma passagem do tamanho do pé de um dos espíritos; conforme se prossegue nela, ela vai se tornando mais estreita, até que finalmente se tampe num ponto da dimensão de uma navalha. Chamada de "passagem da dedução dialética", o menor deslize na caminhada faz com que a razão cai no abismo do absurdo (non sense), e muitos foram os que caíram da parte mais alta.

O candidato então fica espantado com tantas máquinas e testes a que terá que se submeter para poder ingressar no "paraíso dos teóricos", quando resolve dizer em alto e bom som que provavelmente não comparecerá ao teste, por receio de falhar, ouvindo do espírito guia que isso seria problema dele, mas de qualquer sorte ele seria conduzido agora até a "a academia de história do direito", referência sobre qual continuaremos na próxima parte da série de colunas, para observarmos os usos e abusos que se realiza através da relação entre direito e história, um incesto que Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy chamou de "relação equivocada"iii. Continua.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


i A referência, evidentemente, é a Raul Seixas e seu Conto do Sábio Chinês.
ii R. VON JHERING. In The Heaven for Legal Concepts: A Fantasy. Trad. Charlotte L. Levy, Temple Law Quarterly, vol. 58, 1985.
iii GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e História: Uma Relação Equivocada. Londrina: Editora Humanidades, 2004.