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quarta-feira, 18 de abril de 2018

Inversão da cláusula penal em favor do consumidor: uma análise da categoria jurídica sob a ótica da autonomia privada. Parte 2 - José Simão


02/04/2018 por José Fernando Simão

 

Na nossa última coluna da Carta Forense iniciamos as reflexões a respeito da cláusula penal em contratos de imobiliários. A questão que se coloca, então, é saber se o sistema jurídico permite ou não a inversão da cláusula penal imposta ao consumidor (2% pelo atraso no pagamento da prestação), que passaria a ser aplicada também à construtora.

 

III – Contrato como ato de vontade. A velha autonomia privada.

 

A resposta negativa se impõe por algumas razões. Talvez a mais óbvia seja a que decorre da própria noção de contrato.

 

O contrato, como negócio jurídico, é a autorregulamentação da vontade das partes, é a vontade que está presente na formação e nos efeitos. O negócio jurídico é o instituto em que há menor intervenção judicial.

 

Um exemplo ajuda a entender a questão. João e José firmam um contrato de venda e compra, livre de vícios, pelo qual João vende seu carro que vale R$ 30.000,00 por R$ 29.000,00. Após alguma reflexão, João resolve pedir judicialmente um complemento do preço. Qual o motivo? Isso é irrelevante.

 

Poderia o Juiz "aumentar" para R$ 30.000,00 o valor carro? A resposta para qualquer estudante de Direito é obviamente negativa, pois a compra e venda nasce da vontade das partes e o juiz não é parte contratante. Não tem os ônus, nem bônus do contrato. É um terceiro imune aos efeitos do contrato. Se o Juiz aumentar o preço do carro, estará contratando pelas partes o que fere de morte a lógica contratual que é a lógica dos próprios negócios jurídicos.

 

A vontade de se fixar uma cláusula penal ou  multa[1] em desfavor do consumidor não permite que se crie uma mesma multa, por decisão judicial, contra a construtora.

 

A própria noção de autonomia privada ajuda a compreender a questão. O princípio se particulariza, ensina Orlando Gomes, na liberdade de contratar. Esse conceito abrange os poderes de autorregência de interesses, de livre discussão das condições contratuais, e do tipo de contrato conveniente à atuação da vontade[2].

 

Em análise técnica, quando o juiz cria uma multa em desfavor da construtora que o contrato não previa (a então denominada inversão), por faltar a vontade das partes, temos uma situação de inexistência da cláusula penal. É o que explica Antonio Junqueira de Azevedo de maneira cristalina:

 

"no momento em que a declaração se faz, isto é no momento em que a manifestação, dotada de forma e conteúdo, se caracteriza como declaração de vontade (isto é, encerra em si não só uma forma e um conteúdo, como qualquer manifestação, mas também circunstâncias negociais, que fazem com que aquele ato seja visto socialmente como destinado a produzir efeitos jurídicos, o testamento (negócio jurídico) entra no plano da existência; ele existe" [3]

 

Inexistente a vontade de se fixar a cláusula penal contra a construtora, o Poder Judiciário usurpa a liberdade contratual e contrata pelas partes. Inversão é um eufemismo. Na realidade o juiz cria cláusula contratual contra o construtor.

 

As orientações dos Tribunais ao admitir tal solução esbarram nas claras lições de Marcos Bernardes de Mello: "a liberdade de autorregulamentação dos interesses somente pode existir nos sistemas jurídicos em que os interesses privados são reconhecidos" [4].

 

Mas alguns podem argumentar: a vontade do consumidor em contrato de adesão é inexistente, logo a cláusula penal imposta pela construtora pode ser abusiva...

 

IV – Contrato por adesão e controle da cláusula penal.

 

O controle da cláusula penal quando abusiva, quer seja o contrato paritário ou por adesão, segue regras específicas previstas no Código Civil. De maneira sucinta são elas:

a)    Art. 412. O valor da cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal. Cabe ao juiz reduzir o excesso quando requerido pela parte prejudicada. Temos ineficácia parcial.

b)    Art. 413. A redução por equidade em caso de obrigação cumprida em parte ou se a penalidade for manifestamente excessiva. Novamente, caberá ao juiz reduzir o montante quando, respeitado o limite do art. 412, uma das hipóteses do art. 413 ocorrerem.

c)     Art. 52, §1º do CDC. As multas de mora decorrentes do inadimplemento de obrigações no seu termo não poderão ser superiores a 2% do valor da prestação.

 

Note-se que, acaso de abusividade, a regra do sistema é: retirar a validade ou retirar eficácia, total ou parcial, da cláusula penal. A "inversão" não se justifica, pois não é efeito da eventual abusividade.

 

V – Cláusula penal como prefixação de perdas e danos.

 

A lógica da cláusula penal é da fixação prévia das perdas e danos. Há desnecessidade, pelo credor, de se provar ou quantificar o valor do dano sofrido (art. 416 do CC). O dano é presumido de maneira absoluta (presunção iuris et de iure).

 

Se a cláusula penal, seja moratória ou compensatória, traz uma indenização previamente acordada pelas partes, também obviamente essa indenização varia de acordo com a prestação inadimplida (compensatória caso haja inadimplemento absoluto) ou moratória se houver descumprimento de apenas uma cláusula específica ou em caso de mora.

 

Assim, se a prestação é de dar dinheiro mensalmente (preço pago pelo comprador do imóvel ao construtor), quando o CDC permite a cláusula penal moratória de 2%, há uma lógica: limitam-se as perdas e danos na obrigação de dar dinheiro.

 

Quando o Poder Judiciário determina que o construtor que atrasou a obra pague os mesmos 2% revela um problema ínsito: sobre o que esse percentual de 2% incidirá? Sobre o valor total do contrato, ou seja, o preço final da obra? Ou sobre o saldo devedor a ser pago pelo adquirente? Nenhuma solução se conforma ao direito civil, pois a multa de 2% não foi avençada para essa hipótese.

 

Com a simplicidade do exemplo a falta de lógica exsurge. O locador e locatário avençam uma cláusula penal moratória de 10% pelo atraso no pagamento do aluguel. Há uma prestação por parte do locador de entregar ao inquilino as plantas do imóvel em certa data. O locador não as entrega. Poderia o juiz criar uma multa de 10% pela mora na entrega da planta? O valor da multa se calcularia sobre que montante?

 

Curioso notar que, nas demais relações contratuais (sem a presença do consumidor), sequer se cogita em soluções mágicas e sem base teórica.



[1] Quando utilizarmos a palavra multa estamos a nos referir à cláusula penal.

[2] Contratos, Forense, 1994, p. 22.

[3] Negócio jurídico, Existência, Validade e Eficácia, Saraiva, 2002, p. 24.

[4] Teoria do Fato Jurídico, Plano da Existência, Saraiva, 2007, p. 183


Inversão da cláusula penal em favor do consumidor: uma análise da categoria jurídica sob a ótica da autonomia privada. Parte I - José Simão

05/03/2018 por José Fernando Simão

 I – Introdução

 

Foi com alguma surpresa que tive ciência de um debate que está ocorrendo no STJ a respeito da cláusula penal. Trata-se do tema 971 que definirá "acerca da possibilidade ou não de inversão, em desfavor da construtora (fornecedor), da cláusula penal estipulada exclusivamente para o adquirente (consumidor), nos casos de inadimplemento da construtora em virtude de atraso na entrega de imóvel em construção objeto de contrato ou de promessa de compra e venda."

 

Assim, a segunda Seção do STJ determinou a suspensão de todos os processos individuais ou coletivos que discutem a inversão da cláusula penal em desfavor da construtora.[1]

 

O tema que se debate pode ser resumido com a seguinte pergunta: a multa contratual prevista para as hipóteses de descumprimento do contrato pelo consumidor deve ser aplicada à construtora quando esta inadimplir suas obrigações?

 

Em decisões recentes, o STJ decidiu que

 

 "prevendo o contrato a incidência de multa moratória para o caso de descumprimento contratual por parte do consumidor, a mesma multa deverá incidir, em reprimenda do fornecedor, caso seja deste a mora ou o inadimplemento. Assim, mantém-se a condenação do fornecedor - construtor de imóveis – em restituir integralmente as parcelas pagas pelo consumidor, acrescidas de multa de 2% (art. 52, § 1º, CDC), abatidos os aluguéis devidos, em vista de ter sido aquele, o fornecedor, quem deu causa à rescisão do contrato de compra e venda de imóvel.

 

Descabe, porém, estender em benefício do consumidor a cláusula que previa, em prol do fornecedor, a retenção de valores a título de comissão de corretagem e taxa de serviço, uma vez que os mencionados valores não possuem natureza de cláusula penal moratória, mas indenizatória"[2].

 

II – Da cláusula penal e suas modalidades.

 

Segundo Washington de Barros Monteiro, a cláusula penal é um pacto secundário e acessório pelo qual se estipula pena ou multa para a parte que subtrair o cumprimento da obrigação[3], a que se obrigara, ou apenas retardá-lo.[4]

 

A chamada multa contratual tem o nome técnico de cláusula penal. Duas questões relevam e ambas são óbvias.

 

O termo "penal" deriva de pena e não tem qualquer relação com direito criminal. É chamada de pena convencional. Pena, do latim poena, é o que se faz padecer a alguém por alguma coisa julgada repreensível ou culposa, castigo, punição.[5]

 

Nas fontes romanas surgem os termos poenae stipulatio e stipulationis poenae[6].

 

Realmente, a cláusula penal não tem conteúdo punitivo, mas sim ressarcitório. Trata-se de pré-fixação das perdas e danos. Essa é a decorrência lógica da leitura dos artigos 412 e 416 do Código Civil. Em que pesem opiniões em sentido diverso, a leitura do instituto se faz à luz da legislação brasileira. A importação de regras de outros países esbarra em um óbice instransponível: o texto de lei.

 

A segunda questão diz respeito ao vocábulo multa. Rubens Limongi França ensina que em linguagem rigorosamente técnica a palavra 'multa' não deve utilizada para designar cláusula penal.[7]

 

Multa, é pena pecuniária[8], logo pode se referir à pena em razão de um ilícito administrativo (multa de trânsito, multa por danos ambientais), em razão de um abuso de direito (a litigância de má-fé impõe uma pena) ou mesmo de o descumprimento de uma obrigação de fazer e não fazer (multa cominatória ou astreinte).

 

Efetivamente a palavra multa se refere a mais de um instituto em termos jurídicos. Assim, não faremos com alguns[9]e seguiremos a nomenclatura tecnicamente correta e juridicamente inequívoca.

 

As duas modalidades que o Código Civil prevê de cláusula penal são: compensatória e moratória.

 

O artigo 410 dispõe que:

 

"Art. 410. Quando se estipular a cláusula penal para o caso de total inadimplemento da obrigação, esta converter-se-á em alternativa a benefício do credor".

 

Trata-se de cláusula penal compensatória em que o credor escolhe exigir a prestação devida (se possível for ainda seu cumprimento) ou o valor da cláusula penal. A escolha por uma exclui a possibilidade de se exigir a outra sob pena de enriquecimento injustificado[10].

 

Ela corresponde à fixação antecipada de eventuais prejuízos. Como ensina Washington de Barros Monteiro sua utilidade prática repousa na predeterminação das perdas e danos[11]. O credor se isenta de provar o valor do dano.

 

A cláusula penal moratória está prevista no art. 411:

 

"Art. 411. Quando se estipular a cláusula penal para o caso de mora, ou em segurança especial de outra cláusula determinada, terá o credor o arbítrio de exigir a satisfação da pena cominada, juntamente com o desempenho da obrigação principal.'

 

Nessa hipótese temos a cláusula penal moratória[12]. A prestação dever ser cumprida pelo devedor que também arca com a cláusula penal. Há uma cumulação de prestações.

 

Explicadas as questões conceituais relevantes podemos responder a pergunta formulada. Determinada construtora prevê que, havendo atraso da prestação pelo consumidor, a multa (cláusula penal moratória) será de 2%. A construtora atrasa a entrega da obra. Deve ela pagar os mesmos 2% em favor do consumidor? Esses 2% incidirão sobre o valor do saldo devedor (o que o consumidor deve à construtora) ou sobre o valor total do contrato (valor do imóvel)? Responderemos em nossa próxima coluna da Carta Forense.



[2] O trecho transcrito é do REsp n. 955.134⁄SC, Relator Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 16⁄8⁄2012, DJe 29⁄08⁄2012 que, por sua vez, é mencionado no AgInt no AREsp 1006318/SE, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 21/09/2017, DJe 03/10/2017.

[3] Melhor seria prestação, pois a cláusula penal pode se referir a apenas uma prestação específica e não a todo contrato.

[4] Curso de Direito Civil, 4º volume, Direito das Obrigações, 1ª parte, 30ª edição, Saraiva, 1999.

[5] Caldas Aulete, IV volume, 1964, p. 3050.

[6] Rubens Limongi França. Raízes dogmáticas da cláusula penal, Dissertação para concurso de professor titular de Direito Civil FDUSP, p. 8.

[7] Op. cit., p. 10.

[8] Caudas Aulete, IV vol.p. 2704.

[9] Por todos, Christiano Cassettari cuja obra se chama multa contratual. A escolha "comercial" do nome do livro tem por efeito gerar equívoco ao leitor que não tiver profundo conhecimento técnico do tema.

[10] Em matéria obrigacional em que impera a autonomia privada e a liberdade contratual, as partes podem prever, em contratos paritários, o cumprimento da prestação e parte da cláusula penal, justificada pela existência de prejuízos apesar de a prestação ter sido exigida pelo credor.

[11] Op. cit., p. 204.

[12] Se o termo 'moratória' só deve ser aplicado às hipóteses de mora ou também de descumprimento de uma cláusula determinada a questão é controversa. De nossa parte, aplicamos os termos para ambas as hipóteses, pois sua consequência é idêntica: exigir a prestação e também a cláusula penal.



Cláusula penal e redução de ofício pelo juiz - Parte 1 - José Simão

Publicado no Carta Forense - 05/2014

Em mais uma acalorada discussão, nosso grupo virtual de debates jurídicos coordenado pelo Prof. Flávio Tartuce, tratou do seguinte tema: a redução da cláusula penal pelo juiz, nos termos do art. 413 do Código Civil, deve se realizar de ofício?

De início, cabe lembrar o conceito de cláusula penal que, popularmente, é denominada multa contratual. É a obrigação acessória a um contrato, pela qual o devedor se obriga a uma prestação determinada no caso de descumprimento do contrato ou de qualquer uma de suas cláusulas.

Nota-se, logo, que a palavra multa tem mais de uma acepção, razão pela qual om ideal é a utilização do termo cláusula penal na redação do contrato. A astreinte, ou multa cominatória, por exemplo, não se confunde com a cláusula penal. O caráter coercitivo da multa cominatória é evidente. Substitui o castigo físico do direito antigo, já que ninguém pode ser coagido a prestar um fato (nemo potest precise cogi ad factum)

A função da cláusula penal é dúplice: i) estimular o devedor a cumprir sua obrigação, tornando mais onerosa à prestação e ii) pré-fixação ou pré-liquidação das perdas e danos. A cláusula penal libera o credor do ônus de provar os prejuízos sofridos, pois gera presunção absoluta de dano (art. 416, caput, do CC/02).

Seu caráter é acessório e, por isso, a cláusula penal pode ser estipulada conjuntamente ou em ato posterior à obrigação principal (art. 409 do CC/02). Como corolário da acessoriedade, a nulidade da obrigação principal acarreta a nulidade da cláusula penal, mas o contrário não é verdadeiro. Nulo o acessório, o principal mantém-se válido (utile per inutile non vitiatur).

São duas as espécies de cláusula penal: 
i) compensatória: é aquela aplicada para a hipótese de descumprimento absoluto da obrigação (ex: se o inquilino desocupar o imóvel antes do fim do prazo locatício, paga multa de 3 aluguéis). Nessa hipótese, há uma alternatividade: ou se exige a prestação ou a cláusula penal.
ii) moratória: aplica-se às hipóteses de mora, ou de inadimplemento em que a prestação ainda é útil ao credor (art. 394 do CC/02 - ex: se o inquilino não pagar o aluguel no vencimento pagará multa de 10%). Nessa hipótese, há uma cumulatividade, pois paga-se a prestação acrescida da cláusula penal.

Sobre os limites da cláusula penal temos uma regra geral e algumas regras especiais.

a) Limitação decorrente da regra geral (art. 412 do CC/02): o valor da cláusula penal não pode exceder o valor da obrigação principal, sob pena de se tornar fonte de enriquecimento sem causa. A lógica da regra é evidente. Se a cláusula penal contém uma presunção absoluta de dano, ou seja, é devida ainda que não exista prejuízos, seu valor não pode exceder ao da obrigação principal. Se assim fosse haveria uma autorização do Código Civil ao enriquecimento injustificado do credor

Há, no próprio Código Civil, uma exceção. A cláusula penal, em regra, é o máximo da indenização a ser pleiteada. Entretanto, se houver previsão contratual ressalvando o direito de cobrança dos prejuízos suplementares, o valor da multa será o mínimo (art. 416, parágrafo único, do CC/02). Nessa hipótese, o credor prova o montante total de seus prejuízos, abrindo mão da vantagem da presunção de dano. Provando o credor que o valor total dos prejuízos é maior que o valor da multa contratada, terá direito à indenização pelos prejuízos excedentes.

Note-se que a possibilidade de o credor realizar tal prova necessita de expressa previsão contratual. No silencia do contrato, prevalece apenas o valor da cláusula penal

b) Limitação decorrente das regras especiais. Há alguns dispositivos, quer seja por previsão do Código Civil, quer seja em decorrência de leis especiais, que também geram limitação do valor da cláusula penal. Nestas hipóteses, havendo excesso, este deve ser desconsiderado (ineficácia do excesso), prevalecendo o limite imposto por lei para a cláusula penal.

b.1) art. 9° da Lei da Usura (Decreto 22.626/33): nos contratos de mútuo, a cláusula penal não poderá ser superior a 10% do valor da dívida;
b.2) Art. 52, §1° do CDC: O dispositivo prevê que a multa de mora não pode ser superior a 2% do valor da prestação. Esse dispositivo não se aplica apenas aos contratos de empréstimo (caput do art. 52), mas a toda e qualquer relação de consumo[1] . Nesse sentido temos:

" A jurisprudência deste Tribunal Superior já consolidou o entendimento de que a redução da multa moratória para 2% prevista no art. 52, § 1º, do Código de Defessa do Consumidor - CDC aplica-se às relações de consumo de natureza contratual.  Assim, os contratos de prestação de serviços de fornecimento de água, por envolver relação de consumo, estão sujeitos à regra do § 1º do citado artigo. (AgRg no REsp 1433498/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/04/2014, DJe 07/04/2014)"

b.3) Limitação da cláusula penal em matéria condominial - art. 1336, §1° do Código Civil. A Lei n° 4591/64 permitia que a multa fosse de até 20% e a disposição foi revogada pelo Código Civil. Assim, decidiu o STJ reiteradamente que para as taxas condominiais vencidas até 11/01/03, aplica-se a multa prevista na Convenção, de até 20%, já para as demais, o limite de 2% prevalece [2].

A questão que coloca, então, é a seguinte. Caso a cláusula penal esteja fixada pelas partes dentro dos limites da regra geral do artigo 412 do Código Civil e das limitações constantes em regras especiais pode o magistrado reduzir seu valor?

Essa é a questão que responderemos na nossa próxima coluna da Carta forense.

 


[1] "Ação revisional de "Instrumento Particular de Compra e Venda, Mútuo e Hipoteca" - Aplicação da Tabela Price que não implica anatocismo - Cobrança de juros que observou os limites legais - Atualização do saldo devedor feita adequadamente - Multa moratória, porém, que deve ser limitada a 2%, conforme o artigo 52, §1º do CDC - Recurso provido em parte." (TJ/SP, Apelação nº 0105449-75.2006.8.26.0053 7ª Câmara de Direito Privado, Relator LUIS MARIO GALBETTI, j. 04.09.2013)

[2] "A multa por atraso prevista na convenção de condomínio, que tinha por limite legal máximo o percentual de 20% previsto no art. 12, parágrafo 3º, da Lei n. 4.591/64, vale para as prestações vencidas na vigência do diploma que lhe dava respaldo, sofrendo automática modificação, no entanto, a partir da revogação daquele teto pelo art. 1.336, parágrafo 1º, em relação às cotas vencidas sob a égide do Código Civil atual" (REsp 746.589/RS, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 15/08/2006


Cláusula penal e redução de ofício pelo juiz - Parte 2 - José Simão

Publicado no Carta Forense - 06/2014

Multa contratual e um dilema: é possível ao juiz reduzir a multa sem pedido das partes?

Em nossa última coluna da Carta Forense fizemos algumas considerações a respeito do conceito de cláusula penal, suas espécies, e limitações impostas pelo Código Civil e algumas leis especiais.

Cabe, agora, responder a pergunta que foi lançada em nosso grupo virtual de debates jurídicos coordenado pelo Prof. Flávio Tartuce: a redução da cláusula penal pelo juiz, nos termos do art. 413 do Código Civil, deve se realizar de ofício?

A questão passa pela redação do artigo 413 do atual Código Civil que, contrariamente ao que dispunha o art. 924 do Código Civil de 1916 utiliza o verbo "dever" e não "poder". Comparemos os dispositivos

Código Civil de 1916

Código Civil de 2002

Art.924. Quando se cumprir em parte a obrigação, poderá o juiz reduzir proporcionalmente a pena estipulada para o caso de mora, ou de inadimplemento.

Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.

Pela redação do antigo Código Civil, havia para o juiz uma faculdade: reduzir ou não a cláusula quando a obrigação tivesse sido cumprida em parte. Fato é que para se evitar enriquecimento injustificado, a redução acabava ocorrendo como regra.

Imaginemos um contrato de locação prevendo que, na hipótese de o inquilino desocupar o imóvel antes do término do prazo avençado, ele paga a multa correspondente a três aluguéis. Trata-se de cláusula pena compensatória. Se a multa foi avençada para a hipótese de descumprimento total das prestações, o cumprimento parcial exige do magistrado a redução do valor da pena. Se o locatário aluga uma casa, por 30 meses, e lá permanece um mês, desocupando o imóvel, sua multa não pode ser igual àquela imposta ao locatário que permanecer por 29 meses.

A redação do art. 413 impõe ao juiz a redução da cláusula penal. "A penalidade deve ser reduzida". Isso porque se a lei deixasse a critério do julgador a redução, em situação extrema, a decisão poderia ser fonte de enriquecimento injustificado e de quebra da isonomia. Imaginemos dois locatários que permanecem por 15 meses nos imóveis locados. Ambos pedem a redução da multa pela metade. Como se tratava de aparente faculdade do juiz a redução da pena, um poderia ter seu pleito atendido e outro não. Apesar de idêntica situação, a discricionariedade do julgador poderia gerar quebra da isonomia.

A dúvida consiste em saber se a norma gera uma imposição ao juiz de reduzir a cláusula quando e se provocado pela parte ou se o dever existe independentemente da provação do interessado.

O tratamento da doutrina merece nota. Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona explicam em seu Novo Curso de Direito Civil que o verbo "dever" impõe ao juiz a redução da pena convencional, sob pena de uma das partes restar excessivamente onerada (v. II, 12ª edição, p. 366). Não informam se a redução ocorre independentemente de provocação ao juiz.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald não enfrentam diretamente a questão. Entendem que "se a impossibilidade de cumprimento se der após o percurso de boa parte do contrato, porém, será de bom alvitre que o magistrado reduza a multa em razão ao tempo de vigência da relação" (Direito das obrigações, 5ª ed, p. 603).

Tatiana Magalhães Florence, em artigo dedicado ao estudo da cláusula penal, conclui que o verbo "dever" gera o seguinte efeito: "com isso resta definitivamente afastada a possibilidade de as partes dispensarem a apreciação do Judiciário a respeito da redução da penal convencional". Não trata da redução de ofício (Obrigações, Coordenador Gustavo Tepedino, p. 529).

Há na doutrina uma afirmação peremptória de Rubens Hideo Arai que "agora a redução é de ordem pública e deve ser aplicada de ofício pelo juiz diante do caráter cogente da norma" (Obrigações, Coordenação Renan Lotufo e Giovanni Ettore Nanni, p. 746). Também Carlos Roberto Gonçalves (Direito Civil brasileiro, v. 2, 10ª edição, p.419):

"A disposição é de ordem pública, podendo a redução ser determinada de ofício pelo magistrado"

Carlos Alberto Dabus Maluf, ao atualizar a obra de Washington de Barros Monteiro, secunda a posição de redução de ofício com base no Enunciado 356 do CJF (Curso de Direito Civil, 38ª edição, p. 400). O Enunciado temo seguinte teor:

"Nas hipóteses previstas no art. 413 do Código Civil, o juiz deverá reduzir a cláusula penal de ofício."

O Enunciado em questão foi aprovado por apertada maioria. Antes da mudança do Regimento das Jornadas, bastava um único voto a mais para a provação de um Enunciado. Na época, forte foi a resistência à aprovação por uma questão simples: tratar o contrato por adesão e o contrato paritário como idênticos para fins da regra é algo que não pode ocorrer. Ademais, há ainda a distinção entre os contratos civis e os empresariais. Nestes últimos, novamente, a redução de ofício da cláusula penal é o que deve efetivamente ocorrer?

É em razão das especificidades de espécies de contrato que a questão merece melhor e mais profunda reflexão. A justificativa do enunciado é que a redução de ofício da cláusula penal decorre da função social do contrato que é norma de ordem pública nos termos do art. 2035 do Código Civil.

Novamente, a função social retorna como justificativa para a excessiva intervenção judicial sobre o conteúdo do contrato, sem que haja balizas mínimas a justificar a intervenção. Exemplifiquemos. Um contrato entre uma montadora de automóveis e uma fabricante de pneus em que a última descumpre parcialmente o contrato e a primeira promove a cobrança da cláusula penal. Sem requerimento de qualquer das partes, sem que haja pedido formulado, o juiz se intromete no programa contratual, sob fundamento da função social, para reduzir a multa pactuada. Esta intervenção, em um contrato firmado por hipersuficientes, é absolutamente descabida. Os contratos empresariais são, normalmente, amplamente debatidos contando a empresas com um corpo jurídico altamente qualificado. Não há qualquer tipo de vulnerabilidade a ensejar a intervenção do juiz sobre o conteúdo do contrato. A redução é uma afronta à autonomia privada.

Por outro lado, imaginemos um contrato por adesão em que uma das partes, o consumidor, assume multa evidentemente excessiva por imposição do fornecedor. Neste caso, em favor do vulnerável, deve o juiz efetivamente reduzir, ainda que não pedido, a cláusula penal.

O excesso de intervenção em afronta à autonomia privada nas hipóteses de contratos paritários, notadamente os de natureza empresarial, não se justifica em termos da lógica do princípio da função social. Aliás, a aplicação irrestrita do princípio entre iguais, na hipótese em que a proteção é desnecessária, reduz a força do próprio princípio e do Poder Judiciário que tem sua credibilidade colocada em xeque.

Se a grande valia do CDC foi dar mais justiça a uma relação notadamente injusta em desfavor do consumidor, não pode o Código Civil, que unificou as relações de direito provado, ser aplicado indistintamente às relações cíveis e às empresariais sem uma certa calibração. O Enunciado 356 tal como concebido pode representar bom exemplo da máxima de Cícero:

"Summum jus, summa injuria"