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terça-feira, 30 de maio de 2017

Qual é o prazo prescricional da responsabilidade contratual? (parte 4)

Nas últimas três semanas[1], foram analisados os fundamentos jurídicos que levaram recente decisão do Superior Tribunal de Justiça[2] a afirmar a prescrição trienal da pretensão à responsabilidade contratual, à diferença do que a corte vinha a decidir no último decênio. Na coluna de hoje, última dedicada ao tema,será abordado o critério axiológico empregado pelo aresto.

A desatenção ao critério valorativo é pecado particularmente grave na interpretação de um Código Civil cuja filosofia de base assenta-se na correlação entre fato e valor como pressupostos da norma jurídica.

No Direito privado comum brasileiro, a responsabilidade negocial é tratada pelo Código Civil de maneira distinta da responsabilidade extracontratual. A razão é simples: a violação a direito absoluto e o inadimplemento de um direito de crédito são fontes das obrigações que não se confundem nem na tradição seguida por nosso Direito[3], nem na natureza das coisas, noção cuja importância está em conexão com a exigência primária de justiça de tratar igualmente aquilo que é igual e desigualmente aquilo que é desigual, exigindo ao juiz que "diferencie adequadamente[4]".

Na responsabilidade civil extracontratual protegem-se bens jurídicos gerais, em atenção ao comando neminem laedere. O contato entre ofensor e ofendido tende a ser efêmero, surgindo, no mais das vezes, de uma circunstância fortuita, não resultante de um escopo compartilhado pelos sujeitos envolvidos de regrarem seus mútuos interesses patrimoniais. O contato entre vítima e lesante, ademais, surgindo com o dano e em razão do dano, esvai-se tão logo a reparação tenha lugar. A relação obrigacional surgida é, pois, pontual. O fundamento dessa espécie de responsabilidade reside, basicamente, numa reprovação ética à injusta violação de direitos alheios derivada de uma falta de diligência, lato sensu compreendida.

Diversamente, na responsabilidade negocial, a relação entre os sujeitos se protrai no tempo e costuma decorrer de uma sucessão de condutas voltadas à obtenção do fim comum, voluntariamente buscado pelos que se colocam como partes de um negócio jurídico, correspondendo o escopo ao adimplemento do pactuado[5]. A violação que a norma impositiva do dever de indenizar tem em conta é a de um direito de crédito. As relações derivadas de um negócio jurídico, ademais, podem se estender longamente no tempo, gerando, em razão de sua duração, um grau de pessoalidade no vínculo e uma confiança qualificada entre as partes. Basicamente, há (embora em escalas diversas conforme a espécie contratual em causa), um crédito de confiança a ligar os contraentes, de modo que o dever de indenizar traduz a reprovação a um atentado contra determinada relação especial de confiança legítima existente entre as partes.

Do ponto de vista eminentemente pragmático, não são poucos os casos em que, havendo conflito entre as partes em razão de alegações de incumprimento contratual, estas se põem a negociar, a fim de evitar anos de brigas nos tribunais. Quando o prazo é mais longo, terão as partes mais tempo e tranquilidade para dedicar-se a uma negociação complexa.Em situação diversa, em face de um dano produzido no âmbito extracontratual, sendo pontual o contato entre o lesante e sua vítima, não há, como regra, interesse em manter a relação interpessoal, de modo que o prazo prescricional pode perfeitamente ajustar-se à exiguidade temporal.

No que toca ao regime jurídico, as diferenças são muitas e podem ser encontradas na disciplina distinta que uma e outra espécie de responsabilidade reservam aos seguintes temas: a) capacidade das partes; b) ônus da prova; c) avaliação da culpa; d) importância dos graus de culpa; e) termo inicial para fixar o ressarcimento; e f) possibilidade de disciplinar consensualmente a extensão do dano e de excluir a obrigação de reparar.

Da mesma forma que o Direito brasileiro, outros importantes ordenamentos, como os da Itália, Espanha e Portugal, reconhecem a distinção entre as duas modalidades de responsabilidade e preveem prazos prescricionais distintos para o exercício dos direitos lastreados em uma e outra fonte das obrigações[6].

Não se compreende, desse modo, como a previsão de regras diferentes para disciplinar institutos distintos e destinados a tutelar necessidades práticas tão diversas poderia violar o princípio da isonomia previsto no artigo 5º, caput, da Constituição da República, como afirma o julgado, forte na lição do jurista que cita[7]. A dicotomia entre responsabilidade contratual e extracontratual é tradicional e encontra abrigo na legislação brasileira. Seu reflexo na disciplina da prescrição deve, assim, ser respeitado.

A segurança jurídica passa pela correta aplicação das regras do ordenamento e pela acurada atenção às múltiplas distinções que permeiam os institutos jurídicos e implica, também, uma linha de coerência decisória que, ao menos tendencialmente, afaste mudanças bruscas de orientação, em atenção ao princípio da confiança do cidadão e na continuidade da jurisprudência[8], já que da instabilidade decisória resulta grande abalo para a vida jurídica da comunidade[9].

Durante dez anos, o Superior Tribunal de Justiça firmou orientação majoritária no sentido de que a responsabilidade contratual está sujeita à prescrição decenal constante do artigo 205 do Código Civil. Para atender o direito e garantia fundamental da segurança jurídica aos jurisdicionados (artigo 5º, caput, da Constituição Federal), o Superior Tribunal de Justiça tem autovinculação aos seus próprios precedentes[10], só se justificando a alteração quando, para tanto, houver fundadas razões, apresentando-se a mudança do entendimento como via para a melhor conjugação entre o Direito e a realidade[11].

No Direito brasileiro, a apreciação das regras pertinentes evidencia que, à diferença da responsabilidade extracontratual, o prazo prescricional geral para a responsabilidade contratual é de dez anos, conforme disposto na regra constante do artigo 205 do Código Civil. Substituí-lo pelo prazo trienal, aplainando em um mesmo molde diferentes espécies de danos, provindos de diferentes fatos e cujas consequências são regidas por diferentes valores e regimes, não atende às diretrizes que travejam o Código Civil, razão pela qual a viragem jurisprudencial pretendida pelo recente aresto do Superior Tribunal de Justiça não tem razão de ser.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).

 

[1] O estudo completo dos autores a propósito tem o título de "Responsabilidade contratual: prazo prescricional de 10 anos" e se encontra na Revista dos Tribunais 979/215-240. A primeira, a segunda e a terceira parte foram publicadas neste Boletim Conjur em 8, 15 e 22 de maio.

[2] REsp 1.281.594/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. j. 22.11.2016.

[3]Grosso, Giuseppe. Il sistema romano dei contratti. 3. ed. Torino: Giappichelli, 1963, p. 3 e ss; Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 3. ed., 2. reimp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, t. XXII p. 53.

[4]Nesse sentido: LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Trad. Portuguesa de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 594.

[5]Martins-Costa, Judith. Comentários ao novo Código Civil.Do inadimplemento das obrigações. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. V, t. II. p. 160-162.

[6] Arts. 2.946 e 2.947 do Código Civil italiano; arts. 1.964 e 1.968 do Código Civil espanhol; arts. 309 e 498 do Código Civil português.

[7] "A propósito, o Prof. Gustavo Tepedino [...] leciona que não se justificam os argumentos trazidos pela doutrina e jurisprudência para aplicação diferenciada do prazo geral decenal às hipóteses de reparação civil derivada de inadimplemento contratual em detrimento do lapso trienal previsto no inciso V do § 3º do art. 206 do Código Civil de 2002, que se destina, em respeito ao princípio constitucional da igualdade (art. 5º, II, da CF/88), a todas as pretensões de reparação civil, sejam decorrentes de responsabilidade extracontratual, seja de responsabilidade contratual, sempre que não houver previsão legal específica" (REsp 1.281.594/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. J. em 22.11.2016).

[8] LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Trad. Portuguesa de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 443.

[9]MaximilianoCarlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 151-152.

[10] ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 640-641.

[11] LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Trad. Portuguesa de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 442-443.

terça-feira, 23 de maio de 2017

Qual é o prazo prescricional da responsabilidade contratual? (parte 3)

Nas colunas anteriores, foi posto em discussão recente aresto do Superior Tribunal de Justiça[1] que concluiu ser trienal a prescrição da pretensão à responsabilidade contratual com argumentos de ordem literal, sistemática e axiológica. Na semana passada, analisou-se o fundamento literal empregado pela decisão, de modo a esclarecer que a expressão "reparação civil" constante do artigo 206, parágrafo 3º, inciso V, do Código Civil se refere em caráter primário à responsabilidade extracontratual. Cumpre agora abordar o argumento sistemático invocado pela Corte.

Trata-se de providência que se afigura de rigor, pois o dado literal é apenas o ponto de partida à devida inteligência da regra contida no artigo 206, parágrafo 3º, inciso V, do Código Civil e deve ser sucedido e complementado pelo método lógico-sistemático. Afinal, "a verdade inteira resulta do contexto, e não de uma parte truncada, quiçá defeituosa, mal redigida"[2], sendo vedado ao Direito – que é ordenamento, e não caos – não guardar uma lógica entre os seus comandos.

No direito dos contratos, a regra é a execução específica. Se houver mora, o credor poderá exigir que o devedor cumpra exatamente aquilo a que se obrigou mais as perdas e danos decorrentes da inobservância do tempo, lugar ou modo pactuados, conforme se infere da leitura dos arts. 389, 394 e 395 do Código Civil. Se houver inadimplemento definitivo, o credor poderá optar entre a execução pelo equivalente e, observados os pressupostos necessários, a resolução, além de poder exigir, em qualquer caso, o pagamento das perdas e danos, de acordo com o previsto no artigo 475 do Código Civil[3].

A coerência reclama que o credor esteja sujeito ao mesmo prazo para exercer as três pretensões que a lei põe à sua disposição para reagir diante do inadimplemento[4].

Como já foi observado, carece de sentido afirmar que o credor tem um prazo para exigir o cumprimento e outro para o pagamento da indenização[5]. Se a pretensão ao adimplemento ainda não foi encoberta pela eficácia da prescrição e, portanto, o contratante pode exigir a observância ao avençado, a lógica reclama que também lhe seja possível, no mesmo lapso temporal, responsabilizar o devedor pelos danos decorrentes do descumprimento. Pode-se afirmar o mesmo a propósito da execução pelo equivalente e da resolução. Se o credor ainda pode reclamar a prestação substitutiva ou a extinção da relação contratual, deve-se igualmente lhe reconhecer a pretensão indenizatória decorrente do inadimplemento definitivo.

Nesse cenário normativo, a entender-se incidente a regra geral contida no artigo 205 do Código Civil, e não a prescrição trienal, resta preservada a integridade do ordenamento. Diante da mora, o credor tem, como regra geral, o prazo de dez anos para exigir a execução específica. Diante do inadimplemento definitivo, a regra geral igualmente confere ao credor dez anos para exigir a execução pelo equivalente ou, observados os pressupostos legais, a resolução. Seja em caso de mora, seja em caso de inadimplemento definitivo, o credor, sempre com fundamento na regra geral, tem, em adição, os mesmos dez anos para exigir o pagamento de indenização que lhe for devida.

Segue-se daí que a orientação defendida pelo recente o julgado do Superior Tribunal de Justiça põe em xeque a racionalidade do Código nesta matéria, pois, diante de um mesmo inadimplemento, leva à aplicação do prazo trienal para a indenização e do prazo decenal para os demais direitos que são reconhecidos ao credor também em face do inadimplemento do contrato.

A hipótese de mora é ilustrativa. Nesse caso, o credor teria dez anos para exigir o cumprimento da prestação, mas apenas três para exigir a indenização decorrente da inobservância do tempo, lugar ou modo pactuados por parte do devedor. Passados três anos, o devedor poderia, assim, obter o efeito equivalente à purgação da mora sem, todavia, ressarcir os prejuízos causados ao credor, o que contrastaria com a regra constante do artigo 401, inciso I, do Código Civil. O mesmo se verifica na hipótese de inadimplemento definitivo. O credor teria então dez anos para pleitear a execução pelo equivalente ou, se cabível, a resolução, mas apenas três para reclamar o pagamento das perdas e danos decorrentes do inadimplemento. O artigo 475 do Código Civil passaria, então, a ser aplicado pela metade.

A preservação da coerência do ordenamento jurídico exige que, como regra, o credor tenha à disposição o mesmo prazo para exercer os distintos direitos que possui diante do descumprimento, a saber, a execução específica, a execução pelo equivalente ou a resolução, somadas, em todas as hipóteses, às perdas e danos decorrentes do inadimplemento. O raciocínio em sentido diverso priva de lógica e de coerência o ordenamento e, portanto, não encontra abrigo entre nós.

Na semana que vem, em sequência à análise dos fundamentos suscitados pelo aresto, será analisado de maneira crítica o fundamento axiológico empregado pelo aresto do Superior Tribunal de Justiça para defender a aplicação da prescrição trienal da pretensão à responsabilidade contratual.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


[1] REsp 1.281.594/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. j. 22.11.2016.

[2] Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 106.

[3] Martins-Costa, Judith. O árbitro e o cálculo do montante da indenização, p. 5 (Texto ainda não publicado). No mesmo sentido, Zanetti, Cristiano de Sousa. A transformação da mora em inadimplemento absoluto. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, abril/2014, v. 942, p. 13-14; e Zanetti, Ana Carolina Devito Dearo. Contrato de distribuição. O inadimplemento recíproco. São Paulo: GEN-Atlas, 2015, p. 121 e ss.

[4] Martins-Costa, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Do inadimplemento das obrigações. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. V, t. II. p. 160-162; e Theodoro Jr., Humberto. Comentários ao novo Código Civil: dos atos jurídicos lícitos. Dos atos ilícitos. Da prescrição e decadência. Da prova. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, v. III, t. II. p. 310 e 332-334.

[5] Martins-Costa, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Do inadimplemento das obrigações. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. V, t. II. p. 160-162; THEODORO JR., Humberto. Comentários ao novo Código Civil: dos atos jurídicos lícitos. Dos atos ilícitos. Da prescrição e decadência. Da prova. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, v. III, t. II. p. 333; Maluf, Carlos Alberto Dabus. Código Civil comentado: artigos 189 a 232. Atlas: São Paulo, 2009, p. 111-112 e Carneiro, Athos Gusmão. Prescrição trienal e "reparação civil". Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. São Paulo: Revista dos Tribunais, jul./set. 2010, v. 13, n. 49, p. 18-19.

terça-feira, 16 de maio de 2017

Qual é o prazo prescricional da responsabilidade contratual? Parte 1



Por Judith Martins-Costa e Cristiano de Sousa Zanetti

O Código Civil de 2002[1] procurou disciplinar de maneira criteriosa a influência do tempo nas relações jurídicas. Guiada pela diretriz da concretude, ou operabilidade, a Comissão Elaboradora do Anteprojeto decidiu "estabelecer soluções normativas de modo a facilitar sua interpretação e aplicação do Direito"[2]. E o primeiro exemplo dessa diretriz está no tratamento dado à prescrição e à decadência. Baldados os esforços para se oferecer guia seguro à distinção entre uma e outra, "com graves consequências de ordem prática", resolveu-se enumerar, na Parte Geral, os casos de prescrição, em numerus clausus[3].

A diretriz da concretude, ou operabilidade, contudo, embora possa importar em simplificação de soluções (como é exemplo o tratamento dado à prescrição e à decadência), não se confunde com o oferecimento de soluções simplistas impermeáveis ao distinguo que está na base da técnica jurídica.

Não obstante o esforço de precisão levado a efeito pelo legislador no regramento do fenômeno tempo e direito, logo surgiu uma importante controvérsia acerca da regra que prevê o prazo prescricional de três anos para a "pretensão de reparação civil", no artigo 206, § 3º, inciso V, do Código Civil. Designadamente, discutiu-se se a pretensão à reparação de danos decorrente da violação de um contrato estava sujeita ao prazo prescricional de três anos, previsto na referida regra, ou se, diversamente, se enquadraria na regra geral, que prevê o prazo prescricional de dez anos, nos termos do artigo 205 do Código Civil, ressalvadas, naturalmente as hipóteses em que a Lei prevê prazo especial para determinadas espécies de contratos.

Dada sua relevância, a questão foi submetida à apreciação do Superior Tribunal de Justiça. A primeira decisão sobreveio em 2006 e concluiu pela aplicação do prazo de três anos também para a responsabilidade contratual[4]. No ano de 2008, a matéria foi submetida à apreciação da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, composta pela 3ª e 4ª Turma da Corte e responsável por julgar as questões de Direito Privado, a qual decidiu que o prazo prescricional se enquadrava na regra geral e, portanto, era de dez anos[5]. No ano seguinte, a matéria foi apreciada pela 5ª Turma, responsável por julgar as questões de Direito Penal, que concluiu pela prescrição trienal[6].

Na sequência, no período compreendido entre 2009 e 2011, sobrevieram sete julgados que decidiram pela aplicação do prazo de dez anos[7]. No ano de 2012 foi proferido julgado que manteve a prescrição de três anos, mas apenas pela circunstância de a decisão da instância inferior nesse sentido não ter sido impugnada em sede recursal[8]. No intervalo entre 2013 e 2015, houve mais 13 julgados: 12 concluíram pela prescrição decenal[9] e um pela prescrição trienal, novamente por não se tratar de matéria objeto de recurso[10]. No primeiro semestre de 2016, houve mais dois acórdãos, ambos favoráveis à prescrição decenal[11].

Ao longo de um decênio, de maneira majoritária, o Superior Tribunal de Justiça concluiu que a pretensão indenizatória fundada na responsabilidade contratual estava sujeita à prescrição de dez anos, conforme previsto na regra geral constante do artigo 205 do Código Civil. De fato, foram proferidos 22 acórdãos nesse sentido contra apenas quatro em sentido oposto. Não há dúvidas, portanto, sobre a constância e firmeza do entendimento segundo o qual a pretensão indenizatória, quando reportada a danos advindos da violação de um negócio jurídico, obedecia ao prazo decenal.

A orientação prevalente fundou-se no fato de a expressão "reparação civil", comumente, apontar à responsabilidade extracontratual, enquanto a responsabilidade contratual é denominada, de modo habitual, como "responsabilidade pelo inadimplemento do contrato", ou, mais sinteticamente, "inadimplemento", "incumprimento" ou "inexecução contratual".

De maneira surpreendente, no entanto, no final de 2016 sobreveio julgado que – paradoxalmente fundado no propósito de promover a segurança jurídica –, concluiu pela aplicação do prazo trienal também para as pretensões indenizatórias fundadas no inadimplemento contratual[12]. Acabou-se por chegar a uma solução simplista, que desatende à outra das diretrizes da Comissão Elaboradora do Anteprojeto, a diretriz sistemática, pela qual se há de compreender que o Código tem de ter uma unidade lógica[13].

O julgado chama a atenção por várias razões. A primeira delas é o fato de que tanto o relator quanto os demais ministros votantes reviram suas posições anteriores, para, então, afirmar que a "pretensão à reparação civil" indica não apenas a indenização por danos advindos de ilícitos absolutos, abrangendo igualmente a indenização devida em razão de danos provocados pelo inadimplemento contratual[14]. Para justificar a mudança de orientação, o julgado invocou três fundamentos jurídicos — o literal, o sistemático e o axiológico.

Em primeiro lugar, fundou-se na letra da lei, para afirmar que o termo "reparação civil" deve ser lido de maneira ampla, de modo a abarcar tanto a responsabilidade contratual, como a extracontratual; em segundo lugar, defendeu que essa interpretação mais bem se harmoniza com as demais regras que governam a responsabilidade contratual; e, em terceiro lugar, sustentou que o princípio constitucional da isonomia impede que haja prazos distintos para as obrigações fundadas em uma e outra espécie de responsabilidade.

As colunas subsequentes procurarão demonstrar que nenhum desses argumentos convence, pois não concretizam os valores nos quais abstratamente parecem repousar. Na coluna da semana que vem, dedicada à Parte II, será examinado o elemento literal constante do dado normativo. Na sequência, na Parte III, o texto legal será analisado em consonância com as exigências próprias à interpretação sistemática. Por fim, na Parte IV, serão postos em evidência os valores subjacentes à distinção promovida pela legislação.

Desse modo, os argumentos invocados pelo recente julgado do Superior Tribunal de Justiça para promover a mudança de sua própria orientação serão submetidos a escrutínio voltado a trazer à tona o que parece ter sido esquecido: as diretrizes da operabilidade, ou concretude, e a da sistematicidade, dois dos eixos fundantes sobre os quais se ergue a arquitetura codificada, constituindo, ao mesmo tempo, "travamento lógico e técnico" e a base da "sustentação ética" do Código Civil[15].

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


[1] O estudo completo dos autores a propósito tem o título de "Responsabilidade contratual: prazo prescricional de 10 anos" e se encontra na Revista dos Tribunais 979/215-240. Publicadas a partir de hoje, as quatro partes da coluna procuram sintetizar as ideias contidas em tal artigo.

[2] REALE, Miguel. Estrutura e Espírito do Novo Código Civil. In: REALE, Miguel; MARTINS-COSTA, Judith (coord.). História do novo Código Civil. Biblioteca de direito civil. Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 40.

[3] REALE, Miguel. Estrutura e Espírito do Novo Código Civil. cit, p. 40.

[4] REsp 822.914/RS. Terceira Turma. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros. j. em 01.06.2006.

[5] REsp 1.033.241/RS. Segunda Seção. Rel. Min. Aldir Passarinho Junior. j. em 22.10.2008.

[6] AgRg no Ag 1.085.156/RJ. Quinta Turma. Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima. j. em 03.03.2009.

[7] O REsp 616.069/MA. Quarta Turma. Rel. Min. João Otávio de Noronha. j. em 26.02.2008; REsp 1.121.243/PR. Quarta Turma. Rel. Min. Aldir Passarinho Junior. j. em 25.08.2009; REsp 1.222.423/SP. Quarta Turma. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. j. em 15.09.2011; REsp 1.276.311/RS. Quarta Turma. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. j. em 20.09.2011; REsp 1.150.711/MG. Quarta Turma. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. j. em 06.12.2011; Ag no REsp 1.057.248/PR. Terceira Turma. Rel. Min. Sidnei Beneti. j. em 26.04.2011; Ag no AREsp 14.637/RS. Quarta Turma. Rel. Min. Maria Isabel Gallotti. j. em 27.09.2011.

[8] REsp 1.346.289/PR. Terceira Turma. Rel. Min. Sidnei Beneti. j. em 11.12.2012.

[9] AgRg no Ag 1.401.863/PR. Quarta Turma. Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira. j. 12.11.2013; AgRg no AREsp 426.951/PR. Quarta Turma. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. j. em 03.12.2013; REsp 1.326.445/PR. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. J. 04.02.2014; REsp 1.159.317/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. j. em 11.03.2014; AgRg no AREsp 477.387/DF. Quarta Turma. Rel. Min. Raul Araújo. j. 21.10.2014; EDcl no AgRg no REsp 1.436.833/RS. Terceira Turma. Rel. Min. Sidnei Beneti, rel. p/ acórdão Min. Paulo de Tarso Sanseverino. j. 02.12.2014; AgRg no REsp 1.485.344/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Marco Aurelio Bellizze. j. 05.02.15; AgRg no REsp 1.516.891/RS. Segunda Turma. Rel. Min. Humberto Martins. j. 28.04.2015; AgRg no Ag 1.327.784/ES. Quarta Turma. Rel. Min. Maria Isabel Gallotti. j. 27.08.2013; AgRg no REsp 1.317.745/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino. j. 06.05.2014; AgRg no REsp 1.411.828/RJ. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. j. 07.08.2014.

[10] AgRg no AREsp. 54.771/PR. Quarta Turma. Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira. j. 05.03.2015.

[11] AgRg no AREsp 783.719/SP. Quarta Turma. Rel. Min. Maria Isabel Gallotti. j. 10.03.2016; e AgIn em REsp 1.112.357/SP. Primeira Turma. Rel. Min. Sérgio Kukina. j. 14.06.2016.

[12] REsp 1.281.594/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. j. 22.11.2016.

[13] REALE, Miguel. O projeto de Código Civil – Situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 5.

[14] AgRg no REsp 1.485.344 / SP, rel. Min. Marco Aurelio Bellizze, j. 5.2.15; REsp 1.159.317/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. j. em 11.03.2014; AgRg no REsp 1.411.828/RJ. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. j. em 07.08.2014; e EDcl no AgRg no REsp 1.436.833/RS. Terceira Turma. Rel. Min. Sidnei Beneti, rel. p/ acórdão, Min. Paulo de Tarso Sanseverino. j. em 02.12.2014.

[15] REALE, Miguel. O projeto de Código Civilcit, p. 3. 

Qual é o prazo prescricional da responsabilidade contratual? (Parte 2)

Por Judith Martins-Costa e Cristiano de Sousa Zanetti

Na coluna da semana anterior, chamou-se a atenção para recente julgado do Superior Tribunal de Justiça que concluiu ser trienal a prescrição da pretensão à reparação de danos oriundos do descumprimento contratual, nos termos do artigo 206, § 3º, inciso V[1], não obstante a Corte tenha se pronunciado majoritariamente em sentido contrário a esse entendimento ao longo de um decênio. Para justificar a mudança de orientação o aresto invocou, nesse particular, três fundamentos jurídicos – de ordem literal, sistemática e axiológica. Na coluna desta semana, será examinado o elemento literal constante do dado normativo.

Quem interpreta, interpreta texto alheio. Mas "o texto só fala a quem o interroga corretamente e compreende a sua linguagem"[2]. No direito posto, o emprego do termo "reparação civil" não secunda, mas contradiz a leitura defendida pelo recente julgado do Superior Tribunal de Justiça. Isso porque a noção de "reparação civil", conforme empregada pelo artigo 206, § 3º, inciso V, do Código Civil, somente se faz presente no título IX, do Livro I, da Parte Especial, dedicado à "responsabilidade civil", ou seja, primariamente, à responsabilidade extracontratual.

São quatro as ocorrências. No artigo 932, são relacionados os "também responsáveis pela reparação civil", a saber, os pais pelos filhos; os tutores e curadores pelos pupilos e curatelados; o empregador ou comitente pelos seus empregados, serviçais e prepostos; e os donos de hotéis e similares por seus hóspedes. O texto também se refere à restituição devida por quem houver participado de forma gratuita no produto de crime, mas a hipótese é de enriquecimento sem causa e não de responsabilidade civil[3]. No artigo 942, o texto legal dispõe sobre a responsabilidade patrimonial e prevê a solidariedade pela "reparação" na hipótese de coautoria. No artigo 943, esclarece que tanto o "direito de exigir a reparação", como a "obrigação de prestá-la" são transmitidos com a herança. No artigo 953, por fim, tem lugar a disciplina da "reparação" devida por "injúria, difamação ou calúnia". As mesmas regras figuravam nos artigos 1.518, 1.521, 1.526 e 1.547 do Código Civil de 1916.

Diversamente, no Título IV do mesmo livro da Parte Especial, dedicado, também em caráter primário, ao "inadimplemento das obrigações" não há qualquer referência à "reparação civil" nos artigos 389 a 405 do Código Civil. Tais dispositivos estão distribuídos em três capítulos, nos quais se encontram as "disposições gerais" do inadimplemento; a disciplina da "mora" e das "perdas e danos". Havia regras semelhantes nos artigos 955 a 963 e 1.056 a 1.061 do Código Civil de 1916, nas quais igualmente não se verifica qualquer menção à "reparação civil".

A leitura do Código Civil, portanto, leva a crer que o termo "reparação civil" se refira, fundamentalmente, à responsabilidade extracontratual. Por se tratar de uma regra restritiva de direitos, a norma que versa sobre prescrição não comporta interpretação extensiva, como já se notou[4]. Destacada pelo julgado do Superior Tribunal de Justiça, a tendência à redução dos prazos previstos no diploma anterior não permite desconsiderar o elemento literal que o intérprete tem diante dos olhos e que, nos códigos brasileiros, nunca foi empregado para disciplinar a responsabilidade contratual. Maiores ou menores, os prazos prescricionais a se observar são sempre os fixados pelo legislador.

Na percepção dos autores, em adição ao desrespeito do elemento literal constante do dado normativo, a mudança de orientação preconizada pela recente decisão do Superior Tribunal de Justiça põe em xeque a unidade lógica do Código. Pela sua importância, o tema será desenvolvido na próxima coluna, dedicada ao escrutínio do fundamento sistemático invocado pelo aresto.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


[1] REsp 1.281.594/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. j. 22.11.2016.
[2] Assim, LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Trad. Portuguesa de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 520-521.
[3] Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 3. ed., 2ª reimp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 161. t. LIII.
[4] Figueiredo, Gabriel Seijo Leal de. Pretensão indenizatória fundada e responsabilidade contratual: inaplicabilidade do prazo prescricional de três anos. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovani Ettore; MARTINS, Fernando Rodrigues (coords.). Temas relevantes do direito civil contemporâneo: reflexões sobre os 10 anos do Código Civil. São Paulo: Atlas, 2012, p. 178-180. Trata-se de orientação tradicional entre nós: Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 167.