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quinta-feira, 21 de novembro de 2013

"Todos precisam entender que cumprir o contrato é fundamental"

Entrevista com Bruno M. Salama


Pergunta - Com base na pesquisa 'Citizens vs. Banks - Institutional Driver of Financial Market Litigiousness in Brazil", como o sr. analisa a atuação dos tribunais nos casos de conflitos relativos a contratos de crédito?

Prof. Bruno M. Salama – Errática. Existe grande espaço de incerteza nesses contratos, muito espaço para decisões em diferentes sentidos, o que leva à insegurança jurídica. Isso não quer dizer que a responsabilidade seja exclusivamente do Judiciário, mas sim resultado de um conjunto amplo de fatores.

Pergunta – Que fatores são esses?

Prof. Salama – São fatores estruturais de três espécies: políticos, econômicos e jurídicos. Os políticos têm a ver com a organização dos poderes do Estado. A Constituição de 1988 trouxe o Poder Judiciário da periferia para o centro dessa organização. O Judiciário passou a ser um agente inescapável do processo de construção das políticas públicas, ativo e não apenas reativo, o que o torna alvo de mais demandas e também mais influente.

Pergunta – E o que mais?

Prof. Salama – Existe ainda um fator conjuntural: o Brasil tem desenvolvido políticas de inclusão social baseadas em crédito e consumo, o que traz o custo do dinheiro, o crédito bancário, para o centro do debate político. Por fim, há uma disputa pelo crédito disponível para consumo e investimentos entre os setores privado e público e entre diversas áreas do setor privado. Isso gera mudanças constantes nas regras que estruturam a economia. É uma nova lei hoje, outra amanhã... Não há tempo de se criar jurisprudência e é claro que isto amplia a insegurança e atrai mais conflitos judiciais.

Pergunta – E os fatores econômicos?

Prof. Salama – O dado real é que os juros em geral são altos no Brasil, mesmo com o esforço recente do Banco Central para segurar essa taxa básica, já parcialmente revertido por causa da alta da inflação. Na ponta do tomador de crédito, ainda há taxas superiores a 100% ao ano. Ora, independentemente dos fatores que levem a isso, na nossa tradição jurídica, tanto por bons quanto por maus motivos, não é de se esperar que a Justiça aja de maneira idêntica ao julgar uma ação envolvendo um crédito concedido a juros de 6% ao ano e outro a juros de 60% ao ano. Há uma noção generalizada, e não apenas no Judiciário, de que quando os juros estão tão altos assim é porque há alguma coisa errada. É difícil assim fazer valer um contrato em que a taxa é muito elevada, mesmo que a taxa seja justificável do ponto de vista da estrutura de custos que determinam a taxa cobrada pelo banco. O problema é que se por um lado o Judiciário reage às altas taxas, por outro lado, ao abrir grande espaço para a intervenção nos contratos, o Judiciário acaba também funcionando como um incentivador do conflito e do litígio. Ou seja, por um lado o Judiciário é causador do conflito; e por outro, é vítima. Existem fatores estruturais no Brasil que tornam o crédito caro; isso é uma coisa. E existe também muito espaço para o oportunismo dos devedores; isso é outra.

Pergunta – E quais são os fatores jurídicos?

Prof. Salama – A cultura jurídica que se cristalizou no Brasil após a Constituição de 1988 embute a ideia da funcionalização do direito, isso é, de que o direito deva ser pensado como meio para se atingir fins concretos ligados a objetivos de política pública. Não é exagero, aliás, dizer que hoje no Brasil o lugar comum dos teóricos do direito seja a rejeição ao estudo e às aproximações exclusivamente exegéticas, filológicas e textuais. Nove entre dez estudiosos do direito dirão: o divórcio entre teoria e prática é insuportável, inaceitável, artificioso, esquizofrênico, nocivo, e assim por diante. Isso não é necessariamente ruim. Mas traz dificuldades.
Uma delas é aumentar o espaço para argumentos que possuem um forte caráter político. O exemplo mais claro é o reconhecimento que temos hoje da chamada "força normativa" dos princípios de direito. Na prática, isso quer dizer que o Judiciário pode ancorar seus julgamentos em princípios constitucionais amplos, abrangentes, nos quais com frequência há oposição entre grandes ideias como por exemplo a dignidade da pessoa humana e a segurança das regras específicas sobre determinado tema, como o que está escrito num contrato, por exemplo.

Pergunta – E esse modo de decidir do Judiciário, no caso dos contratos de crédito, contribui, ainda que indiretamente, para o aumento das taxas de juros praticadas pelo mercado?

Prof. Salama – Sim, e isso já está bem demonstrado. Dúvidas sobre a execução das garantias constitucionais e a imprevisibilidade sobre a recuperação do crédito são incluídas no cálculo do chamado spread bancário. Decisões judiciais não são a única causa dos juros altos, mas que contribuem, isto é um fato.

Pergunta – Por que há tanta litigância contra os bancos?

Prof. Salama – Realmente a quantidade é assustadora, quase insana. Há um estudo recente do CNJ mostrando que as instituições financeiras estão envolvidas em quase 13% das novas ações ajuizadas na Justiça Estadual. Embora seja difícil demonstrar o argumento cientificamente, eu acredito que esse número dispara à medida que a decisão do juiz não garante que o contrato será executado. Aqui temos outro capítulo do fenômeno da 'judicialização' da política pública de que se fala hoje, que está se dando no campo da política, da economia, da saúde... Num certo sentido, esse 'empoderamento' da Justiça é reflexo de uma fuga da política no Brasil. Fazer política não é só fazer bondades, anunciar generosos planos de subsídios, assistências e bondades. Fazer política é chegar a compromissos, é perder aqui para ganhar ali. Winston Churchill famosamente disse que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as outras. Por quê? Porque a democracia tem problemas, e um deles é o de que ninguém quer tomar responsabilidade política pelos difíceis compromissos que precisar ser feitos. No Brasil, os conflitos deixam de ser definidos em seus próprios fóruns, como o Legislativo e o Executivo, e desembocam no Judiciário.

Pergunta – No caso dos contratos, é um fenômeno tipicamente brasileiro?

Prof. Salama – Não, a migração de decisões de políticas públicas para o Judiciário é filha do estado de bem-estar social moderno. Mas no Brasil, no setor de crédito, o conflito parece um pouco fora da curva. De fato, em muitos lugares, como nos Estados Unidos, quando há uma grave crise financeira muita coisa vai parar no Judiciário. A diferença é que no Brasil essa questão não é conjuntural, mas sim estrutural. Não precisamos ter quebradeira bancária, maxidesvalorizações cambiais, nada disso: o litígio bancário é hoje simplesmente endêmico.

Pergunta – E como tem sido o papel do Banco Central nesse processo, como agente regulador e fiscalizador?

Prof. Salama – O Banco Central brasileiro está numa armadilha. De um lado, precisa combater a inflação. Por outro, faz parte de um governo que ancora parte de sua política de inclusão social e de crescimento econômico na concessão de crédito. Essa equação não é simples. Mas independentemente disso, o BC poderia fazer mais do que administrar o preço do dinheiro e a política monetária. Seria possível envolver-se ainda mais em iniciativas voltadas à ampliação da transparência do preço do dinheiro para que todas as partes envolvidas nos contratos de crédito e, posteriormente, o Judiciário, quando for chamado a julgar, tenham parâmetros mais seguros para decidir. É bem verdade que o BC já fez bastante, por exemplo, ao definir o custo efetivo total do crédito nos empréstimos imobiliário, mas acho que é possível fazer mais.

Pergunta – Há, então, um vazio institucional?

Prof. Salama – A coisa não é tão simples. O sistema Judiciário brasileiro não está organizado apenas para gerar ordem e previsibilidade. Ele é também parte do jogo, é juiz e jogador. E a dificuldade para se fechar acordos no Congresso acaba transferindo para o Poder Judiciário conflitos que idealmente seriam do campo da política.

Pergunta – Quais as recomendações para reduzir o nível dos conflitos?

Prof. Salama – Não existe um remédio fácil. Não se resolverá completamente os problemas do litígio endêmico no mercado de crédito no Brasil enquanto não se resolverem problemas estruturais do país ligados ao aumento da taxa de poupança e investimento. O governo, inclusive, sabe disso, e alguns de seus expoentes tratam do tema abertamente na imprensa. Mas tudo isso está no plano dos compromissos políticos, que são duvidosos e difíceis.
Uma coisa, no entanto, é certa: não teremos nunca um mercado de crédito normalizado enquanto a regra geral for o descumprimento dos contratos. Todos precisam entender que cumprir o contrato é fundamental. Adotar uma política aberta e sistematicamente pró-devedor pode ter consequências desastrosas. Não resolvemos o problema da hiperinflação com congelamentos, e não vamos resolver os problemas do mercado de crédito apenas empunhando o Código de Defesa de Consumidor. Qualquer sistema que sinalize que é fácil rever o que foi acordado, vai sempre ampliar os litígios. (José Marcio Mendonça)
 

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