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quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Desprezo à jurisprudência consolidada é mal à sociedade

Por José Rogério Cruz e Tucci

 

O juiz é livre para formar a sua convicção desde que cumpra o dever constitucional de motivação da sentença. Nesse sentido, dispõe o artigo 131 do Código de Processo Civil que: “O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento”.

 

É evidente, por outro lado, que, versando a controvérsia sobre matéria de direito, impõe-se ao julgador o respeito à lei e à jurisprudência consolidada. Os precedentes judiciais ministram, sem dúvida, importante diretriz a quem detém a função judicante, até porque constituem, tal como a lei, fator de previsibilidade e segurança jurídica.

 

A jurisprudência firme constrói uma presunção em prol da justiça do precedente, até porque sem um razoável grau de confiança na anterior elaboração judicial, faltaria um dos fundamentos mais relevantes da evolução do direito. É desnecessário dizer, nesse sentido, que um juiz solitário, colocado diante do texto legal, sem qualquer mediação oferecida pelos precedentes judiciais, não poderia, em curto espaço de tempo, chegar a resultados de qualidade.

 

Importa frisar que, embora o juiz não seja escravo do precedente persuasivo, a sua observância é deveras relevante mesmo que tenha ele, julgador, diferente convicção acerca de uma determinada questão de direito. Curvar-se ao ponto de vista da maioria revela um dos mais importantes atributos do bom juiz: a humildade.

 

Todavia, em muitas ocasiões, a praxe tem revelado que em inúmeros julgados, lamentavelmente, os tribunais afastam-se da jurisprudência consolidada, em detrimento do direito dos cidadãos.

 

Em recente acórdão, o TJ-SP prestigiou sentença monocrática, entendendo que a falta de pagamento das custas iniciais, implicativa da extinção do processo sem julgamento do mérito, dispensa a intimação pessoal do autor.

 

E, para tanto, invocou aresto do STJ, que teria abordado situação análoga, a respaldar então o entendimento da turma, no sentido de dispensa da intimação da parte. No entanto, verifica-se facilmente, que o paradigma trazido para reforçar o aludido julgamento colegiado do TJ-SP, proferido no Agravo Regimental no Recurso Especial 1.129.569-PE (cujo número foi erroneamente citado no acórdão), de relatoria do ministro Massami Uyeda, tratava de hipótese muito diferente. Realmente, infere-se que nesse acórdão foi determinada a emenda da petição inicial, não atendida pelo litigante. Nesse caso, é óbvio que a lei processual não condiciona a extinção do processo à previa intimação pessoal do autor!

 

É de aduzir-se, por outro lado, que a situação decorrente da ausência de recolhimento das custas iniciais configura inércia da parte, a qual, prolongada por mais de 30 dias, leva à extinção do feito, desde que seja ela pessoalmente intimada (artigo 267, III, e parágrafo 1º, Código de Processo Civil).

 

Descortina-se, destarte, equivocada a fundamentação do citado acórdão do tribunal bandeirante, ao equiparar casos concretos substancialmente diversos, ensejando, assim, manifesto desprezo à jurisprudência sedimentada, sobretudo quando afirma, de modo inconsistente, que a orientação seguida pela sentença de primeiro grau encontra respaldo no apontado precedente do STJ.

 

Na verdade, a orientação que efetivamente predomina, acerca dessa questão, no âmbito da referida Corte superior é bem outra.

 

Com efeito, a teor de acórdão proferido pela 1ª Turma no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial 1.099.138-CE, de relatoria da ministra Denise Arruda, restou decidido que: “É pacífica a jurisprudência desta Corte no sentido de que: ‘não tem cabimento o cancelamento da distribuição pelo não pagamento das custas complementares decorrentes de incidente de impugnação ao valor da causa. Ademais, a extinção do processo sem julgamento do mérito, em face do não pagamento das custas, deve ser precedida de intimação pessoal do autor para fazer tal recolhimento’ (REsp. 266.330/SP, 5ª Turma, Rel. Min. Félix Fischer, DJ de 20.11.2000)...”.

 

Em idêntico senso, a 4ª Turma, no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial 822.858-SP, cujo voto condutor é da lavra do ministro Fernando Gonçalves, teve oportunidade de assentar: “Não há falar em extinção do processo, sem julgamento do mérito, em face do indeferimento da petição inicial, por não recolhimento de custas, sem a devida intimação pessoal dos autores, nos termos do artigo 267, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil...”.

 

Saliente-se, ademais, que, em situação absolutamente em tudo idêntica àquela examinada pelo TJ-SP (falta de pagamento de custas iniciais), a mesma 4ª Turma do STJ, no julgamento do Recurso Especial 195.244-RJ, relatado pelo ministro Aldir Passarinho Júnior, patenteou que: “Em caso de indeferimento da assistência judiciária postulada pelo executado em embargos do devedor, mormente após iniciado o processamento pela impugnação oferecida pelo exeqüente, a intimação para o recolhimento das custas respectivas deve se fazer pessoalmente, nos termos do artigo 267, III, parágrafo 1º, da lei adjetiva civil...”.

 

Desse modo, dúvida não subsiste quanto ao inarredável desacerto que conota o acórdão do TJ-SP, agravado pelo fato de invocar tese do STJ que não se aplica à hipótese acima retratada.

 

E tudo em flagrante desconsideração ao direito material do jurisdicionado, implicativa da ruptura do vínculo ético do juiz com a promessa de fazer Justiça no caso concreto!

 

José Rogério Cruz e Tucci é advogado, diretor e professor titular da Faculdade de Direito da USP e ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo.

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