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segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O dever de mitigação de danos no Brasil

Jornal Valor Econômico
Publicado em: 27 out 2014 | 09h 28m 40s

Na compra e venda internacional de mercadorias, diversas ordens jurídicas podem oferecer interpretações distintas para as obrigações das partes ou atribuir consequências diferentes para a inexecução, gerando variadas avaliações de risco e expectativas. Com intuito de diminuir as incertezas no comércio internacional, a Organização das Nações Unidas (ONU) elaborou em 1980 a Convenção das Nações Unidas sobre os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG), que já foi aderida por 81 países, incluindo, desde abril, o Brasil. Ressalte-se que a entrada em vigor no país não está mais sujeita a debate, pois no dia 17 de outubro foi publicado seu decreto promulgador.

Uma das características fundamentais da CISG é a "gestão da distância". Não se pode exagerar a importância do elemento espacial nos contratos sob a égide da CISG. No comércio internacional, longas distâncias entre as partes são a regra. Assim, a tradição das mercadorias envolve desafios logísticos relevantes, como a necessidade de armazenamento, a inspeção dos produtos, a observância às regras de importação etc.

Diante disso, a colaboração entre as partes é primordial. Enquanto o direito brasileiro impõe o cuidado do interesse das partes no contrato por meio do dever geral de boa-fé (que rege o direito contratual e cria deveres conexos de cooperação), na CISG a noção de boa-fé cumpre um papel interpretativo, podendo-se apenas cogitar a possibilidade de criação de obrigações acessórias.

Caso ocorra um descumprimento contratual, pode ser necessário conservar as mercadorias, tanto para o saneamento da desconformidade, quanto na pendência de sua restituição à contraparte, em caso de resolução do vínculo contratual (e não sendo possível resolver o contrato de forma amigável).

A restituição das mercadorias em um contrato internacional, além de poder gerar custos elevados de transporte, pode, também, ocasionar despesas importantes de conservação pela parte em cuja posse essas mercadorias se encontram transitoriamente, sempre no intuito de evitar o perecimento.

Quando o credor inocente detém temporariamente as mercadorias remetidas pelo devedor em desconformidade com o contrato, pode haver um nítido conflito de interesses. Esse credor poderia ficar tentado a adotar uma posição indiferente. Afinal, as mercadorias entregues em desconformidade não são suas e o prejuízo decorrente do inadimplemento pode ser indenizado pela parte faltosa. Assim, essa parte inocente poderia descuidar das mercadorias entregues e permitir o incremento de seu prejuízo, na confiança de transferir a conta das perdas e danos para a parte inadimplente.

Nesse contexto, a instituição de um dever de mitigar os danos (duty to mitigate the loss) decorrente do inadimplemento resolve esse conflito de interesses entre as partes por meio da modulação do dano recuperável sob a CISG. O artigo 77 da CISG impõe à parte inocente o dever de tomar medidas razoáveis para abrandar os prejuízos decorrentes do inadimplemento da contraparte.

Mas o descumprimento do dever de mitigar os danos afeta apenas a indenização por perdas e danos. Por conseguinte, tal dever não impede as partes de pleitear o cumprimento específico do contrato, com o conserto das mercadorias defeituosas ou sua substituição por outras conformes com o contrato, por exemplo. Ademais, a CISG não obriga o credor inocente a adotar qualquer medida disponível para redução desse prejuízo, mas apenas aquelas "que forem razoáveis, de acordo com as circunstâncias".

Esse importante dever, porém, é um tema pouco estudado no Brasil. Provavelmente pelo fato de não existir qualquer regra explícita no direito brasileiro de que o credor de uma indenização deve mitigar seus danos (sob pena de redução da indenização), fato é que a doutrina também não dava a devida importância a tal instituto.

Com a intensificação dos debates sobre a incorporação da CISG nos últimos cinco anos, esse cenário começou a mudar. Exemplo disso foi o entendimento da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, que fixou a ideia de que evitar o agravamento do próprio prejuízo é um reflexo do princípio da boa-fé objetiva.

Em 2010, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou tal entendimento, ao decidir que o dever de mitigar o próprio prejuízo é um preceito decorrente da boa-fé objetiva. Segundo o Tribunal da Cidadania, haja vista a necessidade do standard ético-jurídico da boa-fé objetiva ser observado pelos contratantes em todas as fases do contrato, não se poderia conceber a violação do duty to mitigate the loss.

Portanto, a adesão do Brasil à CISG traz uma nova perspectiva para a utilização do dever de mitigação de danos em nosso ordenamento, já que reforça a importância do instituto, existente nos países europeus há pelo menos um século. Esse fato, aliado à moderna noção de boa-fé objetiva permite antever a aplicação do dever do credor de mitigar seus próprios danos, sob pena de redução da indenização; algo que não se imaginava há algumas décadas.

Joaquim Tavares de Paiva Muniz, João Marçal Rodrigues Martins da Silva e Luis Alberto Salton Peretti são, respectivamente, mestre em direito pela University of Chicago e sócio de Trench, Rossi e Watanabe; pós-graduado em direito do Estado e da regulação pela Fundação Getúlio Vargas e associado de Trench, Rossi e Watanabe; e associado de Trench, Rossi e Watanabe, formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris (SciencesPo)

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Fonte: Valor | Por Joaquim Muniz, João Marçal e Luis Peretti

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