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terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

A interpretação da doutrina do adimplemento substancial (Parte 1)

9 de fevereiro de 2015, 8h00

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Em minha primeira participação na coluna Direito Civil Atual, um espaço que poderá ampliar as oportunidades de diálogo entre a doutrina e a jurisprudência, ofereço aos leitores uma pequena contribuição sobre o instigante tema do adimplemento substancial[1]. Foi com grande satisfação que recebi o convite para integrar a Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, uma iniciativa muito necessária para o fortalecimento do Direito Privado brasileiro em suas bases teóricas clássicas, mas com os olhos postos no futuro. A satisfação também é ampliada pelo convívio, na coordenação desta coluna, com os colegas ministros do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Martins e Luis Felipe Salomão, dois nomes que orgulham a judicatura nacional.

A doutrina do adimplemento substancial é uma construção do Direito inglês, que remonta ao século XVIII, mas com crescente interesse no Brasil nas últimas três décadas. A recepção do adimplemento substancial no Direito Civil brasileiro é, em grande medida, resultado das lições do então professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Clóvis Veríssimo do Couto e Silva. Em suas aulas na pós-graduação, Clóvis do Couto e Silva apresentou a seus discentes vários institutos do Direito Comparado, como a violação positiva do contrato, a perturbação das prestações, a quebra da base do negócio e o adimplemento substancial. Um de seus mais brilhantes alunos era Ruy Rosado de Aguiar Júnior.

É por essa razão que os primeiros acórdãos a tratar sistematicamente desses temas no país foram de relatoria do desembargador Ruy Rosado, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Anos depois, quando nomeado para o Superior Tribunal de Justiça, o ministro Ruy Rosado trouxe para o cenário jurisprudencial nacional esses institutos e figuras jurídicas.

O primeiro acórdão do STJ sobre o tema data de 1995, relatado pelo ministro Ruy Rosado de Aguiar Junior. É o Resp 76.362/MT, julgado em 11 de dezembro de 1995 pela 4a Turma, com publicação no DJ 1o de abril de 1996. O caso já é clássico e seu resumo é este: a) dois segurados promoveram ação de cobrança para receber a cobertura securitária devida em razão de acidente de veículo; b) os segurados deixaram de pagar a última parcela na data do sinistro, o que foi confessado na inicial; c) apreciada a ação pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso, entendeu a corte que o segurado tinha "obrigação primordial" de pagar o "prêmio do seguro". Sem isso, nada poderia exigir da seguradora, na hipótese de se achar em estado de inadimplência.

No STJ, com base nas lições de Clóvis do Couto e Silva, o relator ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr. deu provimento ao recurso utilizando-se da doutrina do adimplemento substancial. Segundo ele "a companhia seguradora não pode dar por extinto o contrato de seguro, por falta de pagamento da última prestação do prêmio, por três razões: a) sempre recebeu as prestações com atraso, o que estava, aliás, previsto no contrato, sendo inadmissível que apenas rejeite a prestação quando ocorra o sinistro; b) a seguradora cumpriu substancialmente com sua obrigação, não sendo sua falta suficiente para extinguir o contrato; c) a resolução do contrato deve ser requerida em juízo, quando será possível avaliar a importância do inadimplemento, suficiente para a extinção do negócio".

A introdução da teoria do adimplemento substancial no STJ é um perfeito exemplo da virtuosa associação entre doutrina e jurisprudência, um diálogo cada vez mais raro em função do enorme acervo que os tribunais são levados a vencer todos os dias e, infelizmente, pela postura mais reativa que parte dos doutrinadores acabou por assumir em seus ofícios nas universidades e nos livros.

O surgimento do adimplemento substancial
A teoria do adimplemento substancial tem sua origem na doutrina e na jurisprudência inglesas, que a partir de 1779 desenvolveu a doutrina da "substancial performance". Atualmente, os autores ingleses, tomando como fundamento a gravidade objetiva do prejuízo causado ao credor pelo não cumprimento da prestação, formulam três requisitos para admitir a substancial performance: a) insignificância do inadimplemento; b) satisfação do interesse do credor; e c) diligência por parte do devedor no desempenho de sua prestação, ainda que a mesma se tenha operado imperfeitamente.[2]

No Direito inglês, há alguns precedentes antigos, sendo o relator Lord Mansfield o responsável pelo desenvolvimento da noção de condição precedente para tratar das obrigações que dependem do adimplemento da outra parte para poderem surgir.[3] Um bom exemplo disso está no caso Boone v. Eyre (1777), que teve por objeto um contrato celebrado por meio do qual o autor (Boone) traditaria uma fazenda e seus escravos, ao passo em que o réu (Eyre) pagaria o preço de 500 libras, somado a prestações anuais de 160 libras, com caráter perpétuo. Boone alienou a propriedade, mas não tinha direitos de transferir os escravos. Eyre, em um típico caso de exceptio non adimpleti contractus, sobrestou o pagamento das prestações anuais. Ao decidir o caso, Lord Mansfield entendeu que a obrigação de dar a coisa (os escravos) não seria uma condição precedente em face da obrigação de pagar as prestações anuais perpétuas. O preço já havia sido pago. Restaria apenas a conversão em perdas e danos.[4]

Trazendo para uma linguagem mais familiar ao Direito Civil brasileiro, pode-se dizer que, em face do adimplemento substancial, o direito potestativo à resolução do negócio não pode ser exercido em qualquer hipótese de inadimplemento. Essa é a "tradução" da solução de common law para os padrões linguísticos de civil law.

Otavio Luiz Rodrigues Junior, em seu livro sobre a revisão judicial de contratos[5], citando a obra de Edward Errante, refere-se a um exemplo hipotético de adimplemento substancial, que também permite compreender essa doutrina em sua concepção inglesa. As aspas correspondem ao texto do professor de Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo São Francisco e também coordenador da coluna Direito Civil Atual:

a) Uma empreiteira foi contratada para construir uma mansão, "tendo o contratante fornecido o projeto e as especificações da obra". No prazo de sua entrega, a empreiteira "apresentou a casa ao proprietário, ficando evidente a observância de todas as indicações arquitetônicas e o uso dos materiais acordados, exceto por faltarem maçanetas em duas portas".

b) Nesse caso, "considerou-se ter havido o cumprimento substancial da obrigação" pela empreiteira, "dada a insignificância das maçanetas no contexto da empreitada".

c) Assim, o contratante "não estaria liberado da prestação que lhe imputava o contrato – que é o pagamento da obra. Ser-lhe-ia lícito, porém, deduzir o valor das peças ausentes e o custo da instalação por terceiros".

d) De tal modo, em situações tais, a parte não poderá resolver a avença invocando a exceção do contrato não cumprido e será compelida a cumprir a sua respectiva prestação.

Porém, reserva-se a esse contratante o direito à parcela faltante ou às perdas e danos exclusivamente em relação à performance imperfeita do contrato.

É muito importante e necessário dizer que, no Direito inglês, no século XX, há poucos julgados que utilizam a substantial performance. Esse caráter rarefeito indica que, em sua origem, o instituto é usado com parcimônia e extremo cuidado. Os magistrados ingleses salientam que a regra é o cumprimento estrito dos contratos e que a ideia de que parcelas mínimas de uma obrigação não poderiam admitir o exercício de um direito potestativo resolutivo pleno está centrada no juízo de equidade, que desde os tempos de Henrique VIII serve para temperar os rigores do direito estatutário.

Não se pode, desse modo, aplicar a noção criada pelos ingleses sem que se desconsidere seu contexto histórico e sua visão restritiva. Outrossim, a vinculação do adimplemento substancial inglês com a boa-fé objetiva, em sua concepção atual, é um equívoco que muitos reproduzem, ignorando que se trata de uma doutrina do século XVIII, quando nem mesmo na Alemanha se havia cogitado uma cláusula geral como a da boa-fé objetiva, nos moldes de seu desenvolvimento na segunda metade do século XIX.

Essa comparação se torna ainda mais curiosa quando se atravessa o Canal da Mancha e se adentra ao Direito Continental, mais próximo a nossa realidade.

Veja-se, por exemplo, o caso da Itália.

O Direito italiano recepcionou a doutrina da substancial performance, com disposições no Código Civil. O adimplemento substancial tem por efeito não permitir o exercício do direito de resolução ao credor em face ao inadimplemento de pouca importância. Na Itália, os requisitos são objetivos, previstos em lei e se espraiam por tipologias negociais distintas.

A presença do adimplemento substancial na legislação, como se dá na Itália, diminui os custos argumentativos para seu uso pelo juiz, ao mesmo tempo em que limita seu emprego para além das bordas legais conhecidas de todos. Tem-se, portanto, maior segurança jurídica e um desestímulo à judicialização. As partes conhecem os limites de suas condutas e, por efeito, de suas pretensões.

Na próxima coluna, exploraremos a casuística do adimplemento substancial no Superior Tribunal de Justiça.

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF e UFC).


[1] O texto desta coluna corresponde, de modo parcial e com modificações, à palestra do autor na XXII Conferência Nacional dos Advogados, promovida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e realizada nos dias 20 a 23 de outubro de 2014, no Rio de Janeiro.
[2] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão Judicial dos contratos: Autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p.72.
[3] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Op. cit. p. 71.
[4] A íntegra do precedente inglês pode ser encontrada aqui: https://h2o.law.harvard.edu/cases/2417. Acesso em 6-2-2015.
[5] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Op. cit. p. 72.

Antonio Carlos Ferreira é ministro o Superior Tribunal de Justiça.

Revista Consultor Jurídico, 9 de fevereiro de 2015, 8h00

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