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quarta-feira, 1 de março de 2017

O paraíso dos conceitos jurídicos do jurista alemão Rudolf von Jhering (parte 3)

Em um manicômio qualquer, imagine-se, nos perderíamos nas curvas da dúvida sobre a clausura de um sábio que sonhou em ser uma borboleta, ou de uma borboleta que sonhou ser um sábio chinêsi. Veríamos luzes, ouviríamos passos, tocaríamos a própria pele, sulcada pelos inafastáveis efeitos do tempo. Um sonho dentro de um sonho, que traria menos conforto espiritual que angústias existenciais. O sonho de Jhering sobre o Paraíso dos Conceitos Jurídicos deve provocar as mesmas angústias e desconfortos 133 anos depois de sua publicação (1884-2017), numa espécie de déjà vu.

Tanto assim que, ao prefaciar a tradução inglesa de O Paraíso dos Conceitos Jurídicos (In The Heaven for Legal Concepts: A Fantasyii), em 1985, Jonh Lindsey não apenas recordou o fato de Hart ter chamado de tragédia intelectual a reduzida quantidade de traduções dos "montanhosos" trabalhos de Jhering, como também fez questão de registrar (a partir de Hart) que a similaridade entre o americano Holmes e o alemão Jhering, residia em que ambos atacavam o "erro intelectual fundamental sobre a natureza do direito e dos conceitos jurídicos", que consistiria "na crença de que os conceitos jurídicos são fixados ou fechados no sentido de que seria possível defini-los de maneira exaustiva, relativamente ao grupo de condições necessárias e suficientes", quase como se a palavra água molhasse, a expressão fogo ardesse, e a menção à ilusão causasse vertigem, ou a exaustiva definição de contrato fosse uma algema que vinculasse as partes.

Ao mencionar a Máquina de Partir Cabelos, Jhering ridiculariza o trabalho do jurista, reduzido a um mero manipulador de parcelas e partículas de conceitos, mas um manipulador qualificado: é um jurista teórico, aprovado em refinados testes de admissão para ingresso na ilustre confraria. Cita, ainda, uma atividade ersatz, consistente em fingir que resolveriam problemas, subindo no Pau de Sebo dos Problemas Jurídicos para que, como os caçadores das lebres, apenas se divertissem como num clube de caça, e a recolocação dos problemas novamente no topo do pau de sebo é crítica indigesta, mas importante. É como imaginar os ministros do Supremo Tribunal Federal subindo no pau de sebo para buscar a solução do problema sobre a constitucionalidade da disputa entre galos combatentes, mas recolocando novamente lá no topo o conceito agregado da "dignidade da pessoa humana".

Isso decorre da reflexão sobre a acusação de que as dificuldades dos problemas filosóficos, enfrentados por alguns juristas, não residiriam em problemas práticos, vale dizer, não possuiriam qualquer significado para a vida. Aliás, nada no "Paraíso dos Juristas Teóricos" poderia ser chamado de "prático", e a simples referência a tal expressão acarretaria a imediata expulsão do candidato, pois não haveria nenhuma espécie de vida no repouso celestial dos teóricos. Antes, seria o lugar da "ciência pura", da "lógica jurídica", destinado aos seres cientificamente saudáveis — ou possuidores de formas logicamente corretas e conceitualmente puras — que são o seleto grupo daqueles (espíritos e conceitos) que podem viver no paraíso. Lá os conceitos não precisam ter qualquer tipo de utilidade.

Pois bem, após visitar a Máquina de Partir Cabelos e o Pau de Sebo dos Problemas Jurídicos, o candidato ao paraíso é apresentado a algumas "máquinas de filosofia" (como a "máquina de construir", a "máquina da ficção", a "furadeira dialética" e a "máquina de conciliar passagens contraditórias"), que possuiriam um grande valor para finalidades jurídicas. Jhering descreve um espírito que trabalha na "máquina de construir", no exato momento em que ele está "construindo" um contrato.

Menciona-se que "a arte da construção" remontaria aos mais interessantes objetivos compensatórios da simplicidade das coisas, e que qualquer pessoa poderia entender a simplicidade da afirmação, embora o entendimento viesse depois. No entanto, os chamados "expertos" deveriam saber que o fenômeno jurídico mais simples envolve as maiores dificuldades, e, a respeito do contrato, que parece tão simples pra o candidato, é esclarecido que se está prestes a declarar o instituto "contrato" como sendo uma "impossibilidade lógica".

E a questão é colocada nos seguintes termos: quanto mais complicadas as condições, mais fácil sua construção; quanto mais fácil, mais difícil (relembrando a inversão de sentidos no universo de Lewis Carrol). Além dos contratos, as únicas coisas que estimulam o "construtor", que explica ao candidato a lógica das coisas, são as obrigações e a representação direta. O candidato então pergunta a seu interlocutor sobre a qual conclusão ele chegou sobre eles, obtendo como resposta que "como obrigações, que se referem a um direito inerente aos atos do devedor". O candidato não concorda com a explicitação, objetando que "se o ato não foi praticado, portanto, não é possível direito sobre ele".

O interlocutor então desdenha do candidato: "Existir? Logo se nota que você não é um dos nossos". No céu dos teóricos, tudo que é pensado, existe. De acordo com o pensamento do candidato (chamado de limitado), e que parece não ter superado ainda a categoria do tempo, os atos do devedor só existiriam no futuro, mas explica-se a ele que isso seria simplesmente uma questão de "aqui e agora", pois ele não está familiarizado com as fronteiras que obstaculizam o pensamento. Basta que se pense para que a coisa exista, pois pensamento e existência seria uma mesma e única coisa no paraíso dos teóricos.

Indagado sobre qual seria a conclusão do "construtor do contrato" sobre a representação direta, menciona-se que ela seria simplesmente impossível! E isso porque seria absolutamente inconcebível que o ato de "A" viesse a ser considerado como o ato de "B", uma vez que seria necessário que os atos do primeiro recaíssem no último, da mesma maneira que uma pessoa não poderia tomar um remédio por outrem, tampouco uma pessoa poderia executar um ato no lugar de outro.

Explica-se: o primeiro seria uma impossibilidade física, enquanto o segundo residiria em uma impossibilidade lógica, eis que o efeito somente poderia ser produzido na pessoa na qual se produziu a causa. Se o direito positivo dispõe que de um contrato celebrado por mandato alheio, e em nome alheio, somente derivariam direitos e obrigações para o mandante, mas não para o mandatário, procede com caprichosa arbitrariedade, que viola todas as leis do pensamento jurídico.

Fundamenta-se tal raciocínio com o resgate do Direito Romano, já que os romanos, sozinhos, teriam entendido isso adequadamente, uma vez que eles primeiro teriam admitido a substituição de uma pessoa, permitindo-lhe então suportar as consequências através da representação. Eles, a propósito, teriam permitido o mesmo tipo de representação direta na aquisição da posse e na aquisição da propriedade diretamente na pessoa do representado, mas isso teria sido muito grave, algo decorrente do período de declínio do pensamento jurídico romano, motivo pelo qual se aconselha ao candidato não ingressar em nenhum tipo de discussão com alguém no paraíso, pois ele não teria alcançado (ainda) a necessária estatura do refinamento do pensamento conceitual (numa clara demonstração de que também no paraíso dos teóricos prevaleceria a utilização de argumentos de autoridade).

Momentos depois o candidato é apresentado a outra máquina bastante interessante, chamada de "prensa-hidráulica-dialética de interpretação", através da qual se extrai qualquer passagem de um texto. A descrição de sua constituição é importante para compreender a crítica de Jhering. Nela são observadas duas bombas perto do cilindro principal. A primeira contém o "aparato dialético de infiltração", que é o injetor através do qual se introduzem pensamentos, pressupostos e ressalvas que eram completamente desconhecidos do autor da passagem interpretada. Ela seria uma descoberta dos teólogos, e que os juristas simplesmente teriam copiado, ainda que a cópia não resistisse à comparação. A engrenagem dos juristas teóricos teria a capacidade de render apenas a décima parte do que rendeu aos teólogos, que fazem penetrar sistemas inteiros em uma só palavra, mas isso seria perfeitamente suficiente para as finalidades jurídicas. A segunda bomba da máquina seria o "aparato de eliminação", engrenagem permissiva da remoção de expressões potencialmente problemáticas da passagem do texto interpretado. Explica-se ao candidato: através do uso devido, a máquina permitiria conciliar passagens contraditórias.

Atrás desta máquina havia uma outra, denominada de "furadeira dialética", que seria utilizada para se chegar ao centro das questões chamadas de difíceis (antecipando-se, em muito, aquilo que hodiernamente alguns juristas realizam na clivagem entre easy cases e hard cases). A "furadeira dialética" conteria a realização mecânica dos problemas de profundidade científica, e seu manejo requereria grande destreza por parte dos juristas teóricos, e qualquer escorregadela causaria a perfuração até o outro lado do objeto, o que seria um grande problema para os habitantes do paraíso dos conceitos jurídicos (ditos espíritos abençoados).

Depois das explicações devidas, o candidato é conduzido até a presença de outra engenhoca, chamada de "muro da vertigem", ou "a passagem secreta", que encerra o local. Trata-se de algo tão gigantesco que o candidato menciona que seus olhos mal conseguem ver onde termina. O espírito guia pede ao candidato para que ele aperte seus olhos, indagando-lhe se ele conseguiria vislumbrar algo se movendo lá em cima. O candidato então menciona que conseguiu enxergar um dos espíritos se movendo acima do "muro da vertigem", mas o que ele estaria fazendo lá?

Em resposta, explica-se que ele estaria em treinamento de "adestramento" contra fraudes ilusórias. O muro sobe intermitentemente, e na parte mais baixa, há uma passagem do tamanho do pé de um dos espíritos; conforme se prossegue nela, ela vai se tornando mais estreita, até que finalmente se tampe num ponto da dimensão de uma navalha. Chamada de "passagem da dedução dialética", o menor deslize na caminhada faz com que a razão cai no abismo do absurdo (non sense), e muitos foram os que caíram da parte mais alta.

O candidato então fica espantado com tantas máquinas e testes a que terá que se submeter para poder ingressar no "paraíso dos teóricos", quando resolve dizer em alto e bom som que provavelmente não comparecerá ao teste, por receio de falhar, ouvindo do espírito guia que isso seria problema dele, mas de qualquer sorte ele seria conduzido agora até a "a academia de história do direito", referência sobre qual continuaremos na próxima parte da série de colunas, para observarmos os usos e abusos que se realiza através da relação entre direito e história, um incesto que Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy chamou de "relação equivocada"iii. Continua.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


i A referência, evidentemente, é a Raul Seixas e seu Conto do Sábio Chinês.
ii R. VON JHERING. In The Heaven for Legal Concepts: A Fantasy. Trad. Charlotte L. Levy, Temple Law Quarterly, vol. 58, 1985.
iii GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e História: Uma Relação Equivocada. Londrina: Editora Humanidades, 2004.

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