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terça-feira, 10 de junho de 2014

ANALFABETOS VOLUNTÁRIOS


J. R. Guzzo
Jornalista

Quem não lê nem escreve nunca, embora saiba como fazer as duas coisas, não tem realmente nenhuma vantagem prática em relação a quem não sabe ler nem escrever – como ensina Mark Twain, não vale mais do que um analfabeto puro, simples e legítimo.

É um sujeito que conhecemos muito bem no Brasil: aquele infeliz que tem de decorar a cor do seu ônibus, porque não é capaz de ler os números e letras que aparecem no letreiro, ou assina o seu nome com um X, porque não aprendeu a escrever. Caso você esteja entre a multidão que nunca lê um livro, ou uma frase com mais de 140 toques, e nunca escreve nada mais longo do que isso, aqui vai uma notícia interessante: você é um analfabeto.

Eu? Sim, você mesmo. É uma pena; infelizmente, também é a verdade. Tanto faz que tenha se formado na universidade, seja um alto executivo multinacional ou nacional, disponha de um certificado de “celebridade”, por ser top model ou alguma coisa “famosa”, possa utilizar 150 “apps” no seu celular, conte com 1000 amigos no Facebook e, em casos extremos, tenha até sido presidente da República. O indivíduo que nunca lê nada é uma vítima do analfabetismo – vítima voluntária, certo, mas analfabeto do mesmo jeito.

Exagero? Se você se recusa a ler ou escrever porque acha chato, inútil, obsoleto ou por qualquer outro motivo, faça o seguinte teste: tente explicar, no duro, qual é realmente a diferença entre você e um analfabeto – além, naturalmente, da capacidade de ler letreiros, assinar seu nome num pedaço de papel e outras miudezas. Vamos ver quem consegue.

A maré está na vazante. A substituição do alfabeto por sinais como “rsrsrs”, “kkkkk” ou “J”, por exemplo: adiantou alguma coisa para melhorar os índices atuais de inteligência ou de cultura? Não parece. O tempo ganho com essa economia ortográfica não resultou no aumento da produtividade mental de ninguém – não levou à produção de mais ideias, digamos, ou de ideias melhores do que as que vemos por aí. Esse tipo de conquista, que aumenta o volume do som, mas não melhora a voz do cantor, só confunde ainda mais a linha divisória entre alfabetizados e analfabetos. Eis aí mais um fenômeno da vida moderna: a universalização da ignorância.

Não deveria ser assim. Como todos sabem, a “mobilidade”, a “nuvem”, a comunhão entre 1 bilhão de pessoas numa rede social e outras conquistas extremas da “conectividade” provocaram uma “revolução dentro da revolução” e outros prodígios. Não se consegue traduzir direito essa linguagem para o português comum; só nos garantem que a internet vem fazendo cair cada vez mais as barreiras entre quem tem e quem não tem “conhecimento”. Mas a impressão é que tais barreiras podem estar caindo do lado errado – ou seja, os que têm conhecimento vão ficando cada vez mais parecidos com os que não têm.

A tecnologia não pode ser culpada pelo avanço da ignorância entre os que deveriam ser os mais instruídos; é neutra e imparcial. A verdade é que não lê e não escreve quem tomou, livremente, a decisão de não ler nem escrever. Ninguém, graças a Deus e à Constituição, é obrigado a ler nada; na verdade, um dos direitos fundamentais do homem, e alicerce indispensável da liberdade de expressão e de imprensa, é, justamente, o direito de não ler coisa nenhuma. Mas o fato de algo ser lícito não quer dizer, automaticamente, que seja bom – assim como ter um direito não significa que você seja obrigado a usá-lo. Não há, aqui, uma questão de direitos. O que há é uma questão de escolhas.

A opção por fechar a cabeça a trinta séculos de sabedoria, de inteligência e de verdades acumulados por tudo o que o homem escreveu até hoje é lícita, mas é ruim. Qual o bem que poderia vir de uma escolha dessas? É como no comentário do jogador de baralho que desiste de disputar uma mão, diante das cartas miseráveis que acaba de receber: “O meu jogo não está nada bom. Em compensação, está muito ruim”. Esse entusiasmo em adotar a opção “perde-perde” em relação à leitura e à escrita vem se tornando um elemento cada vez mais comum no comportamento cultural dos jovens – considerando-se como jovem, aqui, quem tem entre 18 e 50 anos, ou seja, é gente que não acaba mais.

Há, felizmente, um bom número de exceções, mas são só isso, exceções. A regra, para os demais, é clara: ler é chato, escrever é inútil e ambas as coisas são típicas de um passado que está tão morto quanto a civilização asteca. Na verdade, vigora hoje em dia um desprezo ativo pela leitura – um “porre”, tanto maior quanto menos recentes são os autores. Se você já leu um livro de Eça de Queiroz, por exemplo, é melhor não ficar contando isso por aí – corre o risco de ser considerado um mala, e ainda por cima metido a besta. Escrever, então, pode ser até pior. A carta, em que as pessoas aprendiam a se expressar, transmitir emoções e juntar uma ideia com outra, é hoje um objeto extinto. Foi substituída por e-mails cada vez mais subnutridos, áridos e sem alma; um operador de código Morse escreveria com estilo melhor.

Há rapazes e moças que já estão com 25 anos de idade, às vezes mais, e nunca escreveram nada na vida. Redigir mais de 100 palavras em seguida, por exemplo, deixa um executivo de primeira linha exausto, como se tivesse acabado de escrever Os Lusíadas [uma das mais famosas obras de Luís Vaz de Camões]. Jornalistas que trabalham em rádio e televisão passam anos sem escrever uma palavra; precisam ler o papel que lhes foi entregue.

A grande maioria dos brasileiros que completam o curso superior sai da universidade com dificuldades extremas para conectar entre si os diversos mecanismos cerebrais que permitem ao ser humano comunicar-se por escrito; contentam-se em ser “o animal que fala”, como Aristóteles descrevia o homem primitivo. O mundo onde há animais que, além de falar, também são capazes de ler continua vivo, mas questiona-se cada vez mais o sujeito que tem um livro na mão.

A maneira realmente moderna de encarar a leitura é medir a sua utilidade com uma pergunta-chave: “Ler para quê?”. Hoje em dia é possível ficar sabendo qualquer coisa, em qualquer lugar e a qualquer hora – da data da Batalha de Tuiuti ao dia do aniversário de Cate Blanchett. Qual a necessidade de saber as respostas antes de serem feitas as perguntas? É um modo de encarar a vida – não é preciso mais aprender, basta chamar o Google. É errado pensar assim? Com certeza é melancólico.

Privar-se, por livre e espontânea vontade, do que escreveram Machado de Assis, Charles Dickens ou Victor Hugo – ou Nelson Rodrigues, Balzac e Fitzgerald, numa sucessão de gênios que passa de 100, talvez 200 nomes – é um desperdício que mete medo. Perde-se, sem ganhar nada em troca, o que nos deixaram as melhores mentes que a civilização humana já produziu – algo provado com fatos objetivos, e não com teses universitárias.

Shakespeare, que escreveu há 500 anos, continua sendo o autor mais representado, até hoje, em teatros de todo o mundo; não passa um único dia sem que alguma peça sua esteja em cartaz, em algum lugar. Vendeu tantos livros que não cabe nas listas de best-sellers de “todos os tempos” – calcula-se que tenha vendido entre 2 e 4 bilhões de exemplares, seguido de perto pela rainha das histórias de mistério, Agatha Christie. Dickens, que também faz parte desse grupo, pode ter vendido 1 bilhão de exemplares ao todo. É certo que o seu livro de maior sucesso e de circulação mais bem contabilizada, Um Conto de Duas Cidades, vendeu sozinho 200 milhões de cópias. Será que toda essa gente estava errada, e que só agora, depois da vinda ao mundo do iPhone, a humanidade começou, enfim, a entrar no caminho correto, dispensando-se da ultrapassada tarefa de ler? Será que abolir da vida a imaginação e a curiosidade, como tanta gente está fazendo, torna as pessoas mais inteligentes, produtivas ou eficazes?

Todas as vezes em que você perceber que está ao lado da maioria, é hora de fazer uma pausa e pensar um pouco.

Fonte: Revista VEJA – Edição 2377 – Ano 47 – nº 24 – 11 de junho de 2014. Pgs. 100-101 – Edição impressa.

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