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sexta-feira, 20 de junho de 2014

Cláusula penal e redução de ofício pelo juiz

Cláusula penal e redução de ofício pelo juiz – Parte 1.

José Fernando Simão

Publicado no Carta Forense - 05/2014


Em mais uma acalorada discussão, nosso grupo virtual de debates jurídicos coordenado pelo Prof. Flávio Tartuce, tratou do seguinte tema: a redução da cláusula penal pelo juiz, nos termos do art. 413 do Código Civil, deve se realizar de ofício?


De início, cabe lembrar o conceito de cláusula penal que, popularmente, é denominada multa contratual. É a obrigação acessória a um contrato, pela qual o devedor se obriga a uma prestação determinada no caso de descumprimento do contrato ou de qualquer uma de suas cláusulas.


Nota-se, logo, que a palavra multa tem mais de uma acepção, razão pela qual om ideal é a utilização do termo cláusula penal na redação do contrato. A astreinte, ou multa cominatória, por exemplo, não se confunde com a cláusula penal. O caráter coercitivo da multa cominatória é evidente. Substitui o castigo físico do direito antigo, já que ninguém pode ser coagido a prestar um fato (nemo potest precise cogi ad factum)


A função da cláusula penal é dúplice: i) estimular o devedor a cumprir sua obrigação, tornando mais onerosa à prestação e ii) pré-fixação ou pré-liquidação das perdas e danos. A cláusula penal libera o credor do ônus de provar os prejuízos sofridos, pois gera presunção absoluta de dano (art. 416, caput, do CC/02).


Seu caráter é acessório e, por isso, a cláusula penal pode ser estipulada conjuntamente ou em ato posterior à obrigação principal (art. 409 do CC/02). Como corolário da acessoriedade, a nulidade da obrigação principal acarreta a nulidade da cláusula penal, mas o contrário não é verdadeiro. Nulo o acessório, o principal mantém-se válido (utile per inutile non vitiatur).

São duas as espécies de cláusula penal:


i) compensatória: é aquela aplicada para a hipótese de descumprimento absoluto da obrigação (ex: se o inquilino desocupar o imóvel antes do fim do prazo locatício, paga multa de 3 aluguéis). Nessa hipótese, há uma alternatividade: ou se exige a prestação ou a cláusula penal.
ii) moratória: aplica-se às hipóteses de mora, ou de inadimplemento em que a prestação ainda é útil ao credor (art. 394 do CC/02 - ex: se o inquilino não pagar o aluguel no vencimento pagará multa de 10%). Nessa hipótese, há uma cumulatividade, pois paga-se a prestação acrescida da cláusula penal.


Sobre os limites da cláusula penal temos uma regra geral e algumas regras especiais.


a) Limitação decorrente da regra geral (art. 412 do CC/02): o valor da cláusula penal não pode exceder o valor da obrigação principal, sob pena de se tornar fonte de enriquecimento sem causa. A lógica da regra é evidente. Se a cláusula penal contém uma presunção absoluta de dano, ou seja, é devida ainda que não exista prejuízos, seu valor não pode exceder ao da obrigação principal. Se assim fosse haveria uma autorização do Código Civil ao enriquecimento injustificado do credor


Há, no próprio Código Civil, uma exceção. A cláusula penal, em regra, é o máximo da indenização a ser pleiteada. Entretanto, se houver previsão contratual ressalvando o direito de cobrança dos prejuízos suplementares, o valor da multa será o mínimo (art. 416, parágrafo único, do CC/02). Nessa hipótese, o credor prova o montante total de seus prejuízos, abrindo mão da vantagem da presunção de dano. Provando o credor que o valor total dos prejuízos é maior que o valor da multa contratada, terá direito à indenização pelos prejuízos excedentes.

Note-se que a possibilidade de o credor realizar tal prova necessita de expressa previsão contratual. No silencia do contrato, prevalece apenas o valor da cláusula penal


b) Limitação decorrente das regras especiais. Há alguns dispositivos, quer seja por previsão do Código Civil, quer seja em decorrência de leis especiais, que também geram limitação do valor da cláusula penal. Nestas hipóteses, havendo excesso, este deve ser desconsiderado (ineficácia do excesso), prevalecendo o limite imposto por lei para a cláusula penal.


b.1) art. 9° da Lei da Usura (Decreto 22.626/33): nos contratos de mútuo, a cláusula penal não poderá ser superior a 10% do valor da dívida;


b.2) Art. 52, §1° do CDC: O dispositivo prevê que a multa de mora não pode ser superior a 2% do valor da prestação. Esse dispositivo não se aplica apenas aos contratos de empréstimo (caput do art. 52), mas a toda e qualquer relação de consumo[1] . Nesse sentido temos:


" A jurisprudência deste Tribunal Superior já consolidou o entendimento de que a redução da multa moratória para 2% prevista no art. 52, § 1º, do Código de Defessa do Consumidor - CDC aplica-se às relações de consumo de natureza contratual.  Assim, os contratos de prestação de serviços de fornecimento de água, por envolver relação de consumo, estão sujeitos à regra do § 1º do citado artigo. (AgRg no REsp 1433498/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/04/2014, DJe 07/04/2014)"


b.3) Limitação da cláusula penal em matéria condominial - art. 1336, §1° do Código Civil. A Lei n° 4591/64 permitia que a multa fosse de até 20% e a disposição foi revogada pelo Código Civil. Assim, decidiu o STJ reiteradamente que para as taxas condominiais vencidas até 11/01/03, aplica-se a multa prevista na Convenção, de até 20%, já para as demais, o limite de 2% prevalece [2].


A questão que coloca, então, é a seguinte. Caso a cláusula penal esteja fixada pelas partes dentro dos limites da regra geral do artigo 412 do Código Civil e das limitações constantes em regras especiais pode o magistrado reduzir seu valor?


Essa é a questão que responderemos na nossa próxima coluna da Carta forense.

 


[1] "Ação revisional de "Instrumento Particular de Compra e Venda, Mútuo e Hipoteca" - Aplicação da Tabela Price que não implica anatocismo - Cobrança de juros que observou os limites legais - Atualização do saldo devedor feita adequadamente - Multa moratória, porém, que deve ser limitada a 2%, conforme o artigo 52, §1º do CDC – Recurso provido em parte." (TJ/SP, Apelação nº 0105449-75.2006.8.26.0053 7ª Câmara de Direito Privado, Relator LUIS MARIO GALBETTI, j. 04.09.2013)

[2] "A multa por atraso prevista na convenção de condomínio, que tinha por limite legal máximo o percentual de 20% previsto no art. 12, parágrafo 3º, da Lei n. 4.591/64, vale para as prestações vencidas na vigência do diploma que lhe dava respaldo, sofrendo automática modificação, no entanto, a partir da revogação daquele teto pelo art. 1.336, parágrafo 1º, em relação às cotas vencidas sob a égide do Código Civil atual" (REsp 746.589/RS, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 15/08/2006).

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Cláusula penal e redução de ofício pelo juiz - Parte 2

02/06/2014 por José Fernando Simão

Em nossa última coluna da Carta Forense fizemos algumas considerações a respeito do conceito de cláusula penal, suas espécies, e limitações impostas pelo Código Civil e algumas leis especiais.

Cabe, agora, responder a pergunta que foi lançada em nosso grupo virtual de debates jurídicos coordenado pelo Prof. Flávio Tartuce: a redução da cláusula penal pelo juiz, nos termos do art. 413 do Código Civil, deve se realizar de ofício?

A questão passa pela redação do artigo 413 do atual Código Civil que, contrariamente ao que dispunha o art. 924 do Código Civil de 1916 utiliza o verbo "dever" e não "poder". Comparemos os dispositivos

 

Código Civil de 1916

Código Civil de 2002

Art.924. Quando se cumprir em parte a obrigação, poderá o juiz reduzir proporcionalmente a pena estipulada para o caso de mora, ou de inadimplemento.

Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.

 

Pela redação do antigo Código Civil, havia para o juiz uma faculdade: reduzir ou não a cláusula quando a obrigação tivesse sido cumprida em parte. Fato é que para se evitar enriquecimento injustificado, a redução acabava ocorrendo como regra.

Imaginemos um contrato de locação prevendo que, na hipótese de o inquilino desocupar o imóvel antes do término do prazo avençado, ele paga a multa correspondente a três aluguéis. Trata-se de cláusula penal compensatória. Se a multa foi avençada para a hipótese de descumprimento total das prestações, o cumprimento parcial exige do magistrado a redução do valor da pena. Se o locatário aluga uma casa, por 30 meses, e lá permanece um mês, desocupando o imóvel, sua multa não pode ser igual àquela imposta ao locatário que permanecer por 29 meses.

A redação do art. 413 impõe ao juiz a redução da cláusula penal. "A penalidade deve ser reduzida". Isso porque se a lei deixasse a critério do julgador a redução, em situação extrema, a decisão poderia ser fonte de enriquecimento injustificado e de quebra da isonomia. Imaginemos dois locatários que permanecem por 15 meses nos imóveis locados. Ambos pedem a redução da multa pela metade. Como se tratava de aparente faculdade do juiz a redução da pena, um poderia ter seu pleito atendido e outro não. Apesar de idêntica situação, a discricionariedade do julgador poderia gerar quebra da isonomia.

A dúvida consiste em saber se a norma gera uma imposição ao juiz de reduzir a cláusula quando e se provocado pela parte ou se o dever existe independentemente da provação do interessado.

O tratamento da doutrina merece nota. Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona explicam em seu Novo Curso de Direito Civil que o verbo "dever" impõe ao juiz a redução da pena convencional, sob pena de uma das partes restar excessivamente onerada (v. II, 12ª edição, p. 366). Não informam se a redução ocorre independentemente de provocação ao juiz.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald não enfrentam diretamente a questão. Entendem que "se a impossibilidade de cumprimento se der após o percurso de boa parte do contrato, porém, será de bom alvitre que o magistrado reduza a multa em razão ao tempo de vigência da relação" (Direito das obrigações, 5ª ed, p. 603).

Tatiana Magalhães Florence, em artigo dedicado ao estudo da cláusula penal, conclui que o verbo "dever" gera o seguinte efeito: "com isso resta definitivamente afastada a possibilidade de as partes dispensarem a apreciação do Judiciário a respeito da redução da penal convencional". Não trata da redução de ofício (Obrigações, Coordenador Gustavo Tepedino, p. 529).

Há na doutrina uma afirmação peremptória de Rubens Hideo Arai que "agora a redução é de ordem pública e deve ser aplicada de ofício pelo juiz diante do caráter cogente da norma" (Obrigações, Coordenação Renan Lotufo e Giovanni Ettore Nanni, p. 746). Também Carlos Roberto Gonçalves (Direito Civil brasileiro, v. 2, 10ª edição, p.419):

"A disposição é de ordem pública, podendo a redução ser determinada de ofício pelo magistrado"

 

Carlos Alberto Dabus Maluf, ao atualizar a obra de Washington de Barros Monteiro, secunda a posição de redução de ofício com base no Enunciado 356 do CJF (Curso de Direito Civil, 38ª edição, p. 400). O Enunciado tem o seguinte teor:

"Nas hipóteses previstas no art. 413 do Código Civil, o juiz deverá reduzir a cláusula penal de ofício."

O Enunciado em questão foi aprovado por apertada maioria. Antes da mudança do Regimento das Jornadas, bastava um único voto a mais para a provação de um Enunciado. Na época, forte foi a resistência à aprovação por uma questão simples: tratar o contrato por adesão e o contrato paritário como idênticos para fins da regra é algo que não pode ocorrer. Ademais, há ainda a distinção entre os contratos civis e os empresariais. Nestes últimos, novamente, a redução de ofício da cláusula penal é o que deve efetivamente ocorrer?

É em razão das especificidades de espécies de contrato que a questão merece melhor e mais profunda reflexão. A justificativa do enunciado é que a redução de ofício da cláusula penal decorre da função social do contrato que é norma de ordem pública nos termos do art. 2035 do Código Civil.

Novamente, a função social retorna como justificativa para a excessiva intervenção judicial sobre o conteúdo do contrato, sem que haja balizas mínimas a justificar a intervenção. Exemplifiquemos. Um contrato entre uma montadora de automóveis e uma fabricante de pneus em que a última descumpre parcialmente o contrato e a primeira promove a cobrança da cláusula penal. Sem requerimento de qualquer das partes, sem que haja pedido formulado, o juiz se intromete no programa contratual, sob fundamento da função social, para reduzir a multa pactuada. Esta intervenção, em um contrato firmado por hipersuficientes, é absolutamente descabida. Os contratos empresariais são, normalmente, amplamente debatidos contando a empresas com um corpo jurídico altamente qualificado. Não há qualquer tipo de vulnerabilidade a ensejar a intervenção do juiz sobre o conteúdo do contrato. A redução é uma afronta à autonomia privada.

Por outro lado, imaginemos um contrato por adesão em que uma das partes, o consumidor, assume multa evidentemente excessiva por imposição do fornecedor. Neste caso, em favor do vulnerável, deve o juiz efetivamente reduzir, ainda que não pedido, a cláusula penal.

O excesso de intervenção em afronta à autonomia privada nas hipóteses de contratos paritários, notadamente os de natureza empresarial, não se justifica em termos da lógica do princípio da função social. Aliás, a aplicação irrestrita do princípio entre iguais, na hipótese em que a proteção é desnecessária, reduz a força do próprio princípio e do Poder Judiciário que tem sua credibilidade colocada em xeque.

Se a grande valia do CDC foi dar mais justiça a uma relação notadamente injusta em desfavor do consumidor, não pode o Código Civil, que unificou as relações de direito privado, ser aplicado indistintamente às relações cíveis e às empresariais sem uma certa calibração. O Enunciado 356 tal como concebido pode representar bom exemplo da máxima de Cícero:

"Summum jus, summa injuria"

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