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quinta-feira, 8 de março de 2012

O Contrato - Machado de Assis

QUEM QUISER celebrar um consórcio, examine primeiro as condições,
depois as forças próprias, e, finalmente, faça um cálculo de
probabilidades. Foi o que não cumpriram estas duas meninas de colégio,
cuja história vou contar em três folhas de almaço. Eram amigas, e não
se conheciam antes. Conheceram-se ali, simpatizaram uma com a outra, e
travaram uma dessas amizades que resistem aos anos, e são muita vez a
melhor recordação do passado. Josefa tinha mais um ano que Laura; era
a diferença. No mais as mesmas. Igual estatura, igual índole, iguais
olhos e igual nascimento. Eram filhas de funcionários públicos, ambas
dispondo de um certo legado, que lhes deixara o padrinho. Para que a
semelhança seja completa, o padrinho era o mesmo, um certo comendador
Brás, capitalista.

Com tal ajuste de condições e circunstâncias, não precisavam mais nada
para serem amigas. O colégio ligou-as desde tenros anos. No fim de
poucos meses de freqüência, eram as mais unidas criaturas de todo ele,
a ponto de causar inveja às outras, e até desconfiança, porque como
cochichavam muita vez sozinhas, as outras imaginavam que diziam mal
das companheiras. Naturalmente, as relações continuaram cá fora,
durante o colégio, e as famílias vieram a ligar-se, graças às meninas.
Não digo nada das famílias, porque não é o principal do escrito, e eu
prometi escrever isto em três folhas de almaço; basta saber que tinham
ainda pai e mãe. Um dia, no colégio, contavam elas onze e doze anos,
lembrou-se Laura de propor à outra, adivinhem o quê? Vamos ver se são
capazes de adivinhar o que foi. Falavam do casamento de uma prima de
Josefa, e que há de lembrar a outra?

— Vamos fazer um contrato?

— Que é?

— Mas diga se você quer...

— Mas se eu não sei o que é?

— Vamos fazer um contrato: — casar no mesmo dia, na mesma igreja...

— Valeu! nem você casa primeiro nem eu; mas há de ser no mesmo dia.

— Justamente.

Bem pouco valor teria este convênio, celebrado aos onze anos, no
jardim do colégio, se ficasse naquilo; mas não ficou. Elas foram
crescendo e aludindo a ele. Antes dos treze anos já o tinham
ratificado sete ou oito vezes. Aos quinze, aos dezesseis, aos
dezessete tornavam às cláusulas, com uma certa insistência que era
tanto da amizade que as unia como do próprio objeto da conversação,
que deleita naturalmente os corações de dezessete anos. Daí um efeito
certo. Não só a conversação as ia obrigando uma para a outra como
consigo mesmas. Aos dezoito anos, cada uma delas tinha aquele acordo
infantil como um preceito religioso.

Não digo se elas andavam ansiosas de cumpri-lo, porque uma tal
disposição de ânimo pertence ao número das cousas prováveis e quase
certas; de maneira que, no espírito do leitor, podemos crer que é uma
questão vencida. Restava só que aparecessem os noivos, e eles não
apareciam; mas, aos dezenove anos é fácil esperar, e elas esperavam.
No entanto, andavam sempre juntas, iam juntas ao teatro, aos bailes,
aos passeios; Josefa ia passar com Laura oito dias, quinze dias; Laura
ia depois passá-los com Josefa. Dormiam juntas. Tinham confidências
íntimas; uma referia à outra a impressão que lhe causara um certo
bigode, e ouvia a narração que a outra lhe fazia do mundo de cousas
que achara em tais ou tais olhos masculinos. Deste modo punham em
comum as impressões e partiam entre si o fruto da experiência.

Um dia, um dos tais bigodes deteve-se alguns instantes, espetou as
guias no coração de Josefa, que desfaleceu, e não era para menos;
quero dizer, deixou-se apaixonar. Pela comoção dela ao contar o caso,
pareceu a Laura que era uma impressão mais profunda e duradoura do que
as do costume. Com efeito, o bigode voltou com as guias ainda mais
agudas, e deu outro golpe ainda maior que o primeiro. Laura recebeu a
amiga, beijou-lhe as feridas, talvez com a idéia de sorver o mal com o
sangue, e animou-a muito a pedir ao céu muitos mais golpes como
aquele.

— Eu cá, acrescentou ela; quero ver se me acontece a mesma cousa...

— Com o Caetano?

— Qual Caetano!

— Outro?

— Outro, sim, senhora.

— Ingrata! Mas você não me disse nada?

— Como, se é fresquinho de ontem?

— Quem é?

Laura contou à outra o encontro de uns certos olhos pretos, muito
bonitos, mas um tanto distraídos, pertencentes a um corpo muito
elegante, e tudo junto fazendo um bacharel. Estava encantada; não
sonhava outra cousa. Josefa (falemos a verdade) não ouviu nada do que
a amiga lhe dissera; pôs os olhos no bigode assassino e deixou-a
falar. No fim disse distintamente:

— Muito bem.

— De maneira que pode ser que em breve estejamos cumprindo o nosso
contrato. No mesmo dia, na mesma igreja...

— Justamente, murmurou Josefa.

A outra dentro de poucos dias perdeu a confiança nos olhos negros. Ou
eles não tinham pensado nela, ou eram distraídos, ou volúveis. A
verdade é que Laura tirou-os do pensamento, e espreitou outros. Não os
achou logo; mas os primeiros que achou, prendeu-os bem, e cuidou que
eram para toda a eternidade; a prova de que era ilusão é que, tendo
eles de ir à Europa, em comissão do governo, não choraram uma lágrima
de saudade; Laura entendeu trocá-los por outros, e raros, dous olhos
azuis muito bonitos. Estes, sim, eram dóceis, fiéis, amigos e
prometiam ir até o fim, se a doença os não colhe — uma tuberculose
galopante que os levou aos Campos do Jordão, e dali ao cemitério.

Em tudo isso, gastou a moça uns seis meses. Durante o mesmo prazo, a
amiga não mudou de bigode, trocou muitas cartas com ele, ele
relacionou-se na casa, e ninguém ignorava mais que entre ambos existia
um laço íntimo. O bigode perguntou-lhe muita vez se lhe dava
autorização de a pedir, ao que Josefa respondia que não, que esperasse
um pouco.

— Mas esperar, o quê? inquiria ele, sem entender nada.

— Uma cousa.

Sabemos o que era a cousa; era o convênio colegial. Josefa ia contar à
amiga as impaciências do namorado, e dizia-lhe rindo:

— Você apresse-se...

Laura apressava-se. Olhava para a direita, para a esquerda, mas não
via nada, e o tempo ia passando seis, sete, oito meses. No fim de oito
meses, Josefa estava impaciente; tinha gasto cinqüenta dias a dizer ao
namorado que esperasse, e a outra não adiantou cousa nenhuma. Erro de
Josefa; a outra adiantou alguma cousa. No meio daquele tempo apareceu
uma gravata no horizonte com todos os visos conjugais. Laura confiou a
notícia à amiga, que exultou muito ou mais que ela; mostrou-lhe a
gravata, e Josefa aprovou-a, tanto pela cor, como pelo laço, que era
uma perfeição.

— Havemos de ser dous casais...

— Acaba: dous casais lindos.

— Eu ia dizer lindíssimos.

E riam ambas. Uma tratava de conter as impaciências do bigode, outra
de animar o acanhamento da gravata, uma das mais tímidas gravatas que
tem andado por este mundo. Não se atrevia a nada, ou atrevia-se pouco.
Josefa esperou, esperou, cansou de esperar; parecia-lhe brincadeira de
criança; mandou a outra ao diabo, arrependeu-se do convênio, achou-o
estúpido, tolo, cousa de criança; esfriou com a amiga, brigou com ela
por causa de uma fita ou de um chapéu; um mês depois estava casada.

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